Areias 

(haicais)


Renato Tapado



Eu sinto o que me será sempre inacessível.

Clarice Lispector, Um sopro de vida.






1

água do mar, estrela límpida, pegadas

o azul cai, aqui não há ninguém

(letras perdidas na areia)







2

entre o mar e as árvores

um minideserto

(daqui é imenso)







3

no meio do deserto

só vento, arbustos, pó

e estou repleto







4

navego há cem noites

a gaivota pousa o sol nascente

terras oblíquas







5

o barco, imóvel, balança

a gaivota grita em silêncio

eu abro o caderno







6

pão de centeio e chá

a porcelana branca, um filete de luz

não há nada a fazer amanhã






7

o pássaro pára

no silêncio da chuva

a gramínea dança







8

algo vejo aqui

na chuva do Rio Vermelho

(mas já perdi)







9

dia cor de chumbo:

no mar verde-musgo

o passo da garça







10

silêncio nos galhos

só a coruja lança um grito

e fecha meus olhos







11

é no mar que eu vejo

que as coisas são azuis

como não posso ser







12

ventania, cheiro de águas

janelas e portas batendo

(atrás da vidraça espero)







13

tempo para esperar:

daqui vislumbro, perdido,

um floco de neve







14

fugaz companhia:

no lago imóvel

o salto do peixe







15

sem dor ou palavra

se aproxima sem armas

o beija-flor







16

imóvel, à espreita

mascando a fome ínfima

a lagartixa







17

noite sem lua:

apago as luzes

para enxergar alguém







18

lua quase nascendo:

em breve serei outro

alguém estranho, eu mesmo







19

deserto:

a luz da lua sobre a telha

e tudo se esclarece







20

diante da mata

o grito da aracuã

- e não escrevo nada







21

o dia cinza

o tempo todo para preencher

(as mãos vazias)







22

viro a página

tantas árvores, ninguém

desperdício de folhas







23

diante do ruído do mar

e dos gritos das gaivotas

me escuto







24

tarde de vento sul

o pássaro pousa no barco branco

(mas logo parte com fome)







25

as folhas suportam o vento

os pássaros suportam a chuva

(da minha janela escrevo)







26

o tempo austral é longo

(a gaveta aberta, o fogão aceso)

pela telha quebrada chove







27

pensei ser noite

quando quis acender a vela

e era







28

um cão esteve aqui

ossos espalhados, conchas

(algo ainda vive)







29

a praia de doze quilômetros

doze graus acima de zero

siris irrisórios







30

fora da janela o grilo

o copo de vinho vazio

cozinha cheia de silêncio







31

sobe a fumaça do café

o teto é uma constelação

(a bússola quebrada)






32

o rádio toca algo ao longe

(abrigo de lã e nylon)

talvez, no céu cinzento, um pássaro







33

o bar cheio, as vozes altas

ruídos de vidros e de passos

(lá fora o silêncio)







34

no trapiche vazio e úmido

espero o vento passar

(e a noite não passa)







35

barcos se movem na neblina:

aqui algo partiu

(e tento me lembrar)







36

são oito horas e desperto

lá fora o frio anima a solidão

carrego neve nas mãos







37

água do rio a zero grau

minhas mãos, imóveis, doem

escuto o salto da truta







38

montanhas de gelo

página branca, um floco que cai

(e algo me cala)







39

pesco todas as tardes

no mar inquieto

acumulo perdas







40

diante da montanha

só escuto a chuva

e não digo palavra







41

sem dor, sem amanhã

só com a chuva e a montanha

o martim-pescador







42

a montanha imóvel

a gaivota fugaz

o mar à espera







43

na beira da praia

tento me lembrar

o que nenhuma gaivota esquece







44

floresta e lago escuros

na chuva fria da tarde

só um pássaro







45

o mar e eu intactos

nem sempre o peixe salta

permaneço à espera







46

a ostra e seu silêncio

escuto o ruído das ondas

e me calo







47

a água batendo nas pedras

meu corpo diante do mar

gaivota muda, página branca







48

o charuto aceso, o café no fim

de leste a oeste o céu é cinza

(o papel em branco)







49

a coruja desperta o vento sul

a noite violeta, a geladeira vazia

na mesa a folha de papel







50

o barco parado e suas luzes

tremendo na água escura

(e eu, aqui, à espera)







51

nada me detém

campo, montanha ou lago

mas paro







52

no caminho de areia

percebo que não tenho

os pés no chão







53

lua, céu enorme, duas horas

eu tenho insônia

enquanto o tempo dorme







54

nessa paisagem

tudo tem um fim

que não quero encontrar







55

lua minguante

minha língua não sabe

o gosto da noite







56

preparo meu café

programo meu dia

e tudo me escapa







57

é lua cheia

esqueço o dia de ontem

(e amanhã?)







58

além da estrada de terra

só há ausência

então começo a andar







59

não sei que horas são

mas tenho o que fazer

carrego pedras







60

o gato adormecido

sem paixão sonha

e eu desperto







61

abro o caderno em branco

olho a praia interminável

e digo adeus







62

tudo vai embora

foge, fogo

queimo meus dedos







63

montanhas na penumbra

silêncio na lagoa escura

e eu passo, inquieto







64

mar negro, montanhas escuras

ao longe apenas uma luz

aqui meus olhos brilham







65

quarto de madeira, janela, tormenta

o barulho da água no telhado

a página seca







66

caminhos de terra, pedras, bússola

no mapa não vejo um final

então começo







67

noite de frio e silêncios

o fogão à lenha estala

lanço papéis ao fogo







68

o dia amanhece

tenho os olhos pesados

não vejo a hora de partir







69

na noite imóvel

só escuto passos mínimos

pegadas de gato no papel







70

passarinho faz caca

no vôo sobre a página

palavra que cai







71

lá fora a ventania

aqui, com a chama acesa,

a página treme







72

bar fechado

a maré repete o mar

(eu, lápis na mão, bocejo)







73

no mar vai anoitecer

não fiz nada o dia inteiro

e tudo parece tarde demais







74

os telhados são cor-de-barro

as andorinhas azuis

(lá embaixo nada me espera)







75

entre o mar azulado

e o céu cor-de-fogo

eu, a lua e a estrela







76

no sul eu pouco falo

e no inverno se intercala

o grito da gralha azul







77

estrada de terra

ruído do rio passando

o resto é silêncio







78

tirando água do barco

o homem me lembra

que não tenho o mar







79

na sombra do jasmim

o desenho de um perfume

me lembra o que perdi







80

relâmpago fugaz

minha memória acolhe

o instante - e nunca mais







81

estalo na fogueira

desperto e não percebo

que é um sonho - ou era







82

barulho de cachoeira

nada permanece

nada vai embora







83

o carteiro não chega

então aproveito

para escrever