CHICO BUARQUE: 30 CANÇÕES
(1965-2011)
Renato Tapado
ÍNDICE
Introdução
A carência e a espera: "Pedro pedreiro" (1965)
A dança do desengano: "Sonho de um Carnaval" (1965)
Rimando amor e dor: "A banda" (1966)
O mestre-sala e a princesa: "Quem te viu, quem te vê" (1966)
Do sorriso à mudez: "A Rita" (1966)
A graça e a indiferença: "Januária" (1967)
Canção de um outro exílio: "Sabiá" (1968)
Samba sem pedir licença: "Apesar de você" (1970)
O náufrago do asfalto: "Construção" (1971)
Burla e pesadelo: "Acorda, amor" (1974)
Pirraça e repressão: "Meu caro amigo" (1976)
A crueldade do amor: "Olhos nos olhos" (1976)
Malandragens e mercado: "Homenagem ao malandro" (1977) / 79
Sinal fechado para a infância: "Pivete" (1978)
O adeus a um país: "Bye, bye, Brasil" (1979)
Amor volátil, perfume inútil: "Já passou" (1980)
A deusa e o pagão: "Eu te amo" (1980)
Meninice e delinquência: "O meu guri" (1981)
À margem da cidade: "Pelas tabelas" (1984)
O amor culpado: "Mil perdões" (1983)
A ofegante liberdade: "Vai passar" (1984)
O amor depois do amor: "Anos dourados" (1986)
Pintura a gol: "O futebol" (1989)
Aquela batucada mudou: "Baticum" (1989)
O amor entre ruínas: "Futuros amantes" (1993)
Canção do desejo fugaz: "Bolero, blues" (2006)
A musa oceânica: "Renata Maria" (2006)
Distância e alumbramento: "Nina" (2011)
Balada do amor fugaz: "Essa pequena" (2011)
Viver para cantá-la: "Barafunda" (2011)
Bibliografia
Créditos das canções
Introdução
Francisco Buarque de Hollanda, nosso Chico Buarque, é um dos artistas brasileiros mais populares, consagrados e mundialmente conhecidos. Autor de mais de 300 canções (incluindo diversas parcerias), oito livros, quatro peças de teatro (duas delas com parceiros e uma adaptação), dois roteiros para cinema (e ainda tendo participado como ator em seis filmes, além da sua presença em documentários), Chico é quase uma unanimidade nacional, tendo conquistado até mesmo Nelson Rodrigues (que escreveu: "Toda unanimidade é burra").
Suas composições, de excelente poesia e música impecável, são cantadas inclusive pela geração mais nova, assim como existe um sem-número de gravações de suas obras por diversos intérpretes brasileiros e internacionais.
Uma das mais altas qualidades do compositor é exatamente a junção inextricável entre letra e música, conformando a canção. Para o próprio Chico Buarque, é impossível separar a letra da música. Como já declarou, ele só compõe as duas simultaneamente, quando é o único autor, ou cria a letra para a música de outros compositores, como o fez com seu mestre, Tom Jobim, por exemplo. Mas nunca criou primeiro uma letra e depois uma música em seu violão. Tudo vem ao mesmo tempo.
Este livro tem a intenção de aproximar o leitor-ouvinte desse maravilhoso universo de Chico Buarque, comentando não só as letras e seus significados, mas sua relação com a música e seus sentidos possíveis. Para isso, comento 30 canções que abarcam 46 anos de carreira que vão desde o surgimento do primeiro disco - um compacto -, de 1965, até o CD "Chico", lançado em 2011. Este não é um livro acadêmico, mas destinado a um público heterogêneo interessado na obra de Chico Buarque. Como não sou musicólogo, preferi chamar de comentários - e não de análises - os textos sobre as canções. As letras não constam no livro por impedimento dos direitos autorais, mas abaixo de cada título está o link para ter acesso à letra correspondente.
As composições foram escolhidas aleatoriamente e estão comentadas por ordem cronológica, atendendo a uma preferência pessoal que identifica nelas uma particular qualidade como canção.
É como um retrato do estilo Chico Buarque que o leitor-ouvinte vai desfrutar com a sua memória, seu gosto e sua inteligência.
Renato Tapado
A carência e a espera: "Pedro pedreiro" (1965)
www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=pedroped_65.htm
Uma das primeiras canções de Chico Buarque, gravada num compacto de 1965, já tem a marca de uma inquietação social, não diria estritamente "política" - adjetivo com o qual se quis, em certas épocas, classificar parte da obra de Chico -, mas sensível à história brasileira. E essa marca já se encontra no título: tanto Pedro é um nome comum e apenas um nome - sem sobrenome que possa indicar algo de sua família, de sua origem - como "pedreiro" revela sua condição de trabalhador, operário, portanto de classe baixa.
Mas no primeiro verso da canção aparece a palavra "penseiro" como um segundo adjetivo que se adiciona à profissão ("pedreiro") e que, ao mesmo tempo, indica outro lado da personalidade do personagem ou, talvez, de sua condição, a de ser não apenas um pedreiro, mas um pedreiro que pensa. E esse pedreiro pensa em quê? Pode ser em sua "sorte", no aumento salarial, em sua família, em sua situação, num futuro incerto. Ele pode estar refletindo sobre a possibilidade um futuro ou, ao contrário, sobre a morte certa.
Aqui, entretanto, esse traço - de reflexão, de pensamento - vem apresentado pelo "narrador" por meio de uma palavra inventada, "penseiro", à moda de Guimarães Rosa, como o próprio Chico Buarque admitiu. Revela-se nesse verso um duplo procedimento, comum a muitos artistas modernos, o de criar palavras novas modificando levemente um vocábulo existente (pensar, pensamento, pensante...), expondo essa invenção, o que supõe um distanciamento do narrador em relação ao narrado. Ao escrever "penseiro", o compositor se coloca em seu papel - exatamente este: o de compor algo novo -, ao contrário do pedreiro, que constrói o que é projetado por outros. Apesar dessa divisão social, e mesmo ciente dela, o criador/narrador, ao falar do pedreiro, se solidariza com ele, com sua precariedade, sua condição difícil.
Mas o primeiro verso ainda não terminou: continua com a expressão "esperando o trem". Não só deduzimos que o pedreiro fica pensando enquanto está esperando o trem como também adivinhamos que essa espera pode ser alongada, quase eterna, indicando a própria inalterabilidade de sua condição social (o que vai ser afirmado durante toda a letra).
É interessante perceber que este verso é veloz, ele mesmo, como um trem, pois elide um possível artigo ("O Pedro") e um verbo auxiliar ("está esperando") para compor uma imagem fugaz, concentrada, quase cinematográfica, algo que sugere um sentido de urgência.
O segundo verso reforça essa imagem urgente e a torna mais complexa, ao elidir também um possível artigo ("a manhã") e construir uma ambiguidade: não se sabe se o pedreiro carece de esperar a manhã (assim como precisa esperar o trem) ou se é a manhã que carece de esperar o trem. Hipótese aparentemente insólita, mas que, no jogo de significados que surgem da leitura de um texto poético como este, não deve ser descartada. No primeiro caso, a espera da manhã reforça a situação precária do trabalhador, que sai de casa ainda de madrugada e espera, então, a chegada do trem e da manhã, isso como obrigação, necessidade. No segundo, a manhã, na mesma condição do pedreiro, também está à espera do trem, o próprio tempo espera, fundindo-se com o operário. É como se essa espera fosse mais vasta, mais abrangente, configurando essa expectativa estendida de que falei anteriormente, sugerindo uma repetição, um cotidiano sem surpresas.
Ora, repetição essa que está inscrita nas próprias sílabas escolhidas por Chico (os sons de "ê"), além do travamento, do tropeço que indicam em "Pedro", "pedreiro" e "trem".
A desigualdade social se expressa, por outro lado, nos versos seguintes, pois há "quem tem bem", e há "quem não tem vintém". Para estes, como Pedro, se reservam outras possibilidades e esperas: a da diversão fugaz (o Carnaval), a do dinheiro que vem como um presente, uma surpresa (a loteria federal).
Mas esse cotidiano é sem surpresas, e só resta esperar, espera tão repetitiva que aparece 45 vezes na canção! Para preencher tanto tempo, o pedreiro pensa, e assim o tempo passa, e ao passar "a gente vai ficando pra trás", vai perdendo as oportunidades (que na verdade não vêm), Pedro vai sendo ultrapassado pela vida.
Neste momento da canção, o narrador se solidariza novamente com o pedreiro ao dizer "a gente", incluindo-se no mesmo incômodo, recurso ao qual Chico recorrerá em muitas outras composições. Ou seja, ao mesmo tempo em que o compositor reconhece a diferença entre ele e o operário de quem fala - por exemplo, ao criar a palavra "penseiro", operação de um poeta -, ele se vê a si mesmo num mesmo cotidiano desconfortável e, nesse caso, há uma igualdade de condição, ainda que pontual, entre o artista e o trabalhador.
Outros elementos na letra que apresentam as dificuldades da vida do pedreiro são a espera do aumento salarial, a origem nordestina em busca de trabalho e melhor nível de vida no Sudeste, e a permanência da espera por uma vida melhor que se prolongará no nascimento de seu filho.
Essa espera ("quem espera nunca alcança", dirá Chico Buarque em outra canção), no entanto, além de ser interrompida momentaneamente pelo Carnaval (outra imagem recorrente na obra de Chico, como oposição ao cotidiano difícil e até triste), pode ocultar uma expectativa transcendente, a espera de uma "coisa mais linda que o mundo, maior do que o mar". A transcendência, aqui, se dá tanto pela imagem hiperbólica quanto pela beleza, o que vem irromper no mundo sem aviso, algo belo e vasto. Não será uma possível definição da arte?
No entanto, na vida de Pedro, "se dá o desespero de esperar demais". Como em outras composições de Chico, aqui há o recurso à ambiguidade que enriquece os sentidos possíveis da escritura: "desespero" como angústia pelo que não chega nunca, mas também des-esperar, ou seja, deixar de esperar, não contar mais com o que poderia vir, desiludir-se. Resignação ou lucidez? Provavelmente, ambas as coisas, já que o personagem é "penseiro". É quando, num pensamento, ele opta por abdicar da espera e voltar a não ter expectativa de futuro, ser apenas o pedreiro de todo dia: "Pedro pedreiro quer voltar atrás/quer ser pedreiro pobre e nada mais/sem ficar esperando, esperando/esperando". Mas essa des-espera também é uma espera, pois quem pensa, como Pedro, não pode esquecer, está impossibilitado de voltar a um estado de inocência, agora que ele já sabe das coisas do mundo, ele que é "penseiro". Então, Pedro pedreiro espera "o dia de não esperar ninguém". Reforço da ambiguidade referida anteriormente, uma espera de não esperar, uma contradição que não se resolve: o personagem está preso dentro do círculo da espera, exatamente como uma esfera da qual não pode fugir.
O que resta a Pedro? Não a ilusão de um futuro melhor, apenas a possibilidade do imediato e mínimo: a chegada do trem que o levará ao trabalho. Essa microespera, ajustada às obrigações cotidianas, é a que lhe pode trazer, efetivamente, um resultado positivo: nada mais do que isso. A espera maior, aquela, talvez, de algo "mais lindo que o mundo, maior do que o mar", se reduz, ao final, ao ato de esperar "nada mais além/da esperança aflita, bendita, infinita/do apito do trem".
A canção se desenvolve num crescendo, em três partes: a primeira, com 13 versos; a segunda, com 17; e a terceira, com 26; e a quarta encerrando o ciclo, como freando a espera, desacelerando o desejo, representando, quem sabe, a abdicação diante do impossível. A linguagem, simples - com exceção da palavra "penseiro" -, com rimas fáceis, como "trem/também/bem/vintém", "Carnaval/federal", "morte/Norte", "fundo/mundo", "mar/sonhar", "demais/mais", se atém à humildade da própria vida narrada, sem a complexidade poética que vai marcar, depois, diversas composições de Chico Buarque.
Se prestarmos atenção à melodia, veremos que ela se acelera - como o ritmo de um trem e da própria vida em correria de um pedreiro -, por exemplo, no terceiro, quinto e sexto versos, como também a repetição de "esperando" se dá num crescendo (do mais grave ao mais agudo), reforçando a intensidade da espera. Do mesmo modo, na sequência que vai de "esperando a festa" até "esperando o dia", a melodia vai de um final de verso mais alto, "festa", como ponto máximo do desejo de sair do cotidiano, até o mais baixo, "dia", justamente o dia a dia a que o sonho de Pedro tem de descer.
Retornamos, assim, ao ponto inicial, fechando o círculo: o pensamento de Pedro, que partiu do ato de esperar o trem, viajou até a possibilidade de um aumento, de um futuro melhor, de um prêmio da loteria, de algo lindo, mas depois de um tempo voltou ao simples ato de esperar o transporte, sem solução: um trem "que já vem, que já vem"..., repetidamente, reforçando a frustração da expectativa de algo inalcançável: metáfora da condição encerrada em que se desenvolve, sem graça, a vida do personagem.
Isso tudo, em 1965, primeiro ano do Golpe Militar de 1964, primeiro disco de Chico Buarque, no qual ele já aponta para uma das características marcantes de sua obra: a crítica da realidade brasileira sem ser panfletária, em forma poética, sem sacrificar a qualidade da escritura pela presença do tema social. Por outro lado, a canção é um samba, que não deixa de ser alegre e se torna, mesmo, popular. Mistura de senso crítico da realidade com qualidade poética e musical, aliado à força de uma tradição à qual o compositor rende homenagem: a música popular das primeiras décadas do século XX, de antes da bossa nova, que Chico tanto conhecia e admirava, ainda que, neste caso, seja uma canção original, pois "Pedro pedreiro" se afasta tanto do samba tradicional quanto da bossa nova, iniciando a carreira de um compositor que vai marcar a história da música popular brasileira do século XX.
A dança do desengano: "Sonho de um Carnaval" (1965)
www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=sonhodeu_65.htm
O primeiro verso desta canção já indica uma oposição que retrata a situação do protagonista (conflito que também se detecta na composição anterior, "Pedro pedreiro", em cujo compacto, no lado B, foi gravada "Sonho de um Carnaval"): "Carnaval, desengano" Por um lado, a imagem do Carnaval como festa que transcende o cotidiano, apontando para uma vida diferente; por outro, o desengano, a desilusão de que uma vida diferente seja possível. Mas se em "Pedro pedreiro" escutamos um narrador que nos fala de um trabalhador, em "Sonho de um carnaval" escutamos uma voz em primeira pessoa, que diz: "Deixei a dor em casa me esperando". Em apenas dois versos, toda uma situação complexa já se desenha: há um sujeito identificado como a voz que escutamos, o que dá certa intimidade à elocução; há uma dor nesse sujeito, o que, ao mesmo tempo, o torna familiar e universal; há o Carnaval como fator de fuga dessa dor, de festa e de alegria; mas, no final, há o desengano. Mesmo círculo fechado da canção anterior, "Pedro pedreiro".
"E brinquei, e gritei, e fui vestido de rei": nesta enumeração, Chico Buarque realiza uma concentração de sentidos em poucas palavras, recurso que já utilizou na primeira canção e será, também, uma de suas marcas poéticas. Aqui, estão a festa como fuga do cotidiano e, mais do que isso, o grito - de desabafo? De desespero? De júbilo? -, a entrega a uma fantasia... Mas logo "desce o pano": a alegria durou pouco.
A melodia, nesta primeira parte, começa em uma nota mais alta ("Carnaval") e desce, mesmo, com o "pano" final: coerência entre o significado da letra e a música, tão presente na obra de Chico Buarque. A repetição do "e" antes de cada ação ("brinquei", "gritei", "fui") parece denotar a busca frenética do sujeito da canção pela felicidade, ainda que passageira, da festa. A nota mais alta (mais aguda) está exatamente em "gritei", no desabafo do protagonista. Mas esse bem-estar se dissolve no final, o que, de certa maneira, já estava anunciado na primeira palavra, "desengano", que justamente vai rimar com o "pano" que desce, identificando o fim de um sonho.
Na segunda estrofe, se identifica a causa da dor: "essa morena me deixou sonhando". É curioso notar que, na música brasileira, não há louras, mas são inúmeras as "morenas" e "negras"... Chico se mantém nessa tradição, que atesta a mestiçagem que é a origem do próprio samba, marca brasileira. Essa "morena" está gravada na memória do sujeito narrador, que se lembra da "mão na mão, pé no chão", talvez em um baile do mesmo Carnaval, mas "hoje nem lembra não". A concentração, de novo, em poucas palavras, dá a imagem fugaz do encontro-desencontro, quando "desce o pano", não só do espetáculo "Carnaval", mas da própria encenação do amor.
Mas afastando-se desse caso amoroso pessoal, o sujeito da letra nos leva à festa popular, encontro coletivo no qual (na terceira estrofe) "era uma canção, um só cordão". Como em "Pedro pedreiro", aqui Chico Buarque esboça uma solidariedade do indivíduo com o coletivo, mas se em "Pedro pedreiro" essa solidariedade se nota como a visão de um narrador sobre a vida sofrida de um trabalhador, em "Sonho de um Carnaval" é o próprio sujeito da canção que se mistura ao povo, talvez como um modo de não se sentir solitário, de diluir sua dor individual na festa massiva. Por isso, ele tem "uma vontade/de tomar a mão/de cada irmão pela cidade". Abandonado pela "morena", com que ele desfilou, "mão na mão", agora ele toma a mão dos que, como ele, brincam no Carnaval, que considera "irmãos". Essa entrega ao outro, que é anônimo, traz a "esperança" que está no primeiro verso da próxima estrofe. Agora, em vez de "desengano", o Carnaval vem associado à esperança.
Nesta quarta e última estrofe, o sujeito procura atenuar sua dor pessoal e dirige sua esperança aos outros: "que gente longe viva na lembrança", talvez uma forma de, sem esquecer a morena, mantê-la viva na memória, mas sem dor; "que gente triste possa entrar na dança", referindo-se a todos os que, como ele próprio, podem apaziguar o sofrimento em meio ao Carnaval; e, finalmente, "que gente grande saiba ser criança", abandonar-se à inocência, à alegria da infância já perdida, mas que pode, em momentos como esse de festa, ser recuperada. A repetição desta estrutura ("que gente...") enfatiza a esperança, mas também a ideia de uma busca coletiva, impessoal, que transcende o próprio sujeito da canção para abranger toda a coletividade.
Nesse ato de misturar-se ao coletivo, há um movimento, também, de deixar a passividade. Num primeiro momento, o sujeito narrador foi "deixado" pela morena, sonhando, como consequência do abandono. Ou seja, ele foi passivo de uma ação da amada. Lembremos que "passividade" tem a ver com "paixão", ou seja, indica sofrimento, como a Paixão de Cristo. Mas, num segundo momento, é ele quem deixa a dor abandona-a, então se torna sujeito ativo para fugir do sofrimento. E essa fuga se completa no ato de ligar-se ("cordão" como bloco de Carnaval, "cordão" como forma de união) ao coletivo. Assim, há um desvio do drama individual rumo à sua cura em meio ao social.
Esta canção, composta antes de "Pedro pedreiro", tem a mesma concentração, a linguagem enxuta, uma poesia em que o acontecido se conta não numa "narração", mas em versos às vezes mínimos, com apenas dois substantivos ("Carnaval, desengano"), poucas rimas, com cortes entre esses versos mínimos e outros nos quais se conta a ação, configurando um texto apoiado, desde sempre, na música, como o próprio Chico Buarque sempre fez questão de salientar.
Nas duas canções, há a presença do aspecto social. Em "Pedro pedreiro", como crítica. Aqui, como possível afirmação do individual. Esse diálogo entre o individual e o social, já presente desde o início da carreira do compositor, aparecerá em diversos momentos como aspecto importante de sua obra, como veremos na próxima canção, um verdadeiro "clássico": "A banda".
Rimando amor e dor: "A banda" (1966)
https://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=abanda_66.htm
Esta canção antológica, que conquistou cedo um lugar destacado na história da música popular brasileira, depois de vencer o Festival da Canção, foi tida por alguns como despreocupada, leve e alegre, em contraste com a situação do País na época. Algo assim como um alívio, que permitiu a todos cantar contentes. O próprio Chico Buarque declarou tê-la composto como uma espécie de pequena provocação, contrariando os que exigiam dele uma música "de protesto". No entanto, também nesta canção é clara a temática social, tanto quanto nas duas canções anteriores.
Nela, não é o indivíduo que deixa transparecer um drama pessoal, mas é o coletivo que traz a marca de um sofrimento. O sujeito que conta, ao contrário, está "à toa na vida" e não está sozinho, ele tem um amor. Esta situação sem conflitos amplia sua leveza e despreocupação com a passagem da banda pela rua, trazendo alegria. Além disso, a banda canta "coisas de amor". Une-se, aqui, o amor do sujeito da canção ao tema amoroso da música executada pela banda.
No entanto, a esse "idílio" logo se contrapõe uma dor, a das pessoas, da comunidade: "a minha gente sofrida/despediu-se da dor". Se compararmos esta canção com as duas anteriores, veremos que se desenham três situações. Na primeira, em "Pedro pedreiro", um indivíduo narra um drama social (o do operário) e se solidariza com ele, mas a distância. Na segunda, é o sujeito da canção que sofre, mas ameniza o seu sofrimento ao misturar-se à multidão. Na terceira, em "A banda", o sofrimento volta a ser social, mas o indivíduo sem dor (com amor) se sente parte da comunidade ("minha gente"). É interessante observar que o elemento comum às três situações é exatamente a dor, que, como veremos, não desaparece nunca: ela permanece em "Pedro pedreiro", é apenas amenizada em "Sonho de Carnaval" e, finalmente, retorna em "A banda".
E comum também às três canções é a presença da música, do Carnaval e da banda. Podemos pensar que, ao lado da solidariedade do narrador, do indivíduo dessas canções com o povo, também há a presença do artista que trabalha, de algum modo, contra a dor (pela beleza de sua criação), sem, no entanto, apagá-la, inclusive expondo o sofrimento comum.
Esta canção é ainda mais apegada ao gosto do público pelo fato de ser composta, em suas primeiras duas estrofes, em redondilhas, ou seja, versos de sete sílabas, tão arraigados na tradição popular, além de serem quadrinhas, com rimas simples em vogais "a" e "o", mas também repetições em "i", por exemplo, em "vida", minha", "sofrida" e "despediu-se".
No entanto, na letra, apesar do interesse de todos pela música, não há uma participação direta nela, como em "Sonho de Carnaval", cujo protagonista se mistura ao povo. Em "A banda", as pessoas a veem passar, mas não a seguem, apenas o "velho fraco" se dispõe a dançar no terraço. É uma admiração sem aquela entrega que se dá no Carnaval.
A forma inicial muda na terceira estrofe. Nela, os versos passam a ter 11 sílabas ou 12, se contarmos a palavra depois da pausa como sendo do mesmo verso. Os versos se estendem para narrar os fatos, consequência da passagem da banda: o homem sério, o faroleiro, a moça... Eles são desviados de suas ocupações do momento, que são como um retrato do cotidiano: o ganhar dinheiro, o contar vantagem, o contar estrelas. A mesma palavra depois da pausa final dos versos - "parou" -, repetida, reforça a irrupção de algo inusitado na vida: a própria música. O mesmo acontece na quarta estrofe com os personagens "moça triste", "meninada" e "rosa triste". Agora, são apresentadas as transformações que a música operou nelas: o sorrir, o abrir-se, o assanhar-se. Nas duas estrofes, o que era a "minha gente" vai se individualizando, se personificando no homem sério, na moça, na rosa, no velho fraco, etc. A música mexe com todos, não deixa ninguém imune aos seus efeitos. Até a Lua surgiu, sugerindo um grande poder da música, da arte. No entanto, esse fato extraordinário, que foi a passagem da banda, foi exatamente isso: algo extra-ordinário. Passada a banda, "tudo tomou seu lugar" no cotidiano que, antes da banda, era sofrido.
O sujeito da canção volta a falar em primeira pessoa: "meu desencanto". Olhando para os outros, sempre a distância, percebe "cada qual no seu canto/em cada canto uma dor". Aquela dor que, por ser de todos, era coletiva, volta a ser individual. A música, que uniu a todos por seu poder terapêutico comum, ao terminar, agora, deixou cada um de novo em seu isolamento, sofrendo sozinho. Não só cada personagem da canção (a moça, o velho...), mas também o sujeito que conta, que se sente separado do conjunto das pessoas que vê de longe.
Tudo isso cantado numa marchinha, mas não exatamente de Carnaval, porque no fundo ela contém um resto triste, que termina em "desencanto". Nas duas primeiras partes/estrofes, a melodia desce ("vida"/"sofrida") e sobe ("chamou"/"dor"), e finalmente descansa no final do quarto verso ("amor") - que, aliás, se repete. Essa forma equilibrada, singela, é coerente com o próprio encanto produzido pela banda. Já as quatro partes posteriores possuem versos mais longos, narrativos, com uma melodia menos variável, mais homogênea em suas frases musicais. Mesmo assim, persiste um tom alegre, reforçado pelos acordes em tom maior. Essa alegria tem a ver com essa ideia de comunidade, intensificada pelo coro feminino que entra em seguida. É interessante perceber que, justamente quando a banda já passou e o sujeito da canção volta a falar em dor, o coro já não comparece, deixando o cantor/narrador sozinho ao terminar a canção. Um final em que está presente o desencanto que apontamos anteriormente.
Mas isso não foi obstáculo para que essa composição fosse cantada com alegria por todo o Brasil nesses anos pós-Golpe Militar de 1964, até porque teve imensa repercussão por conta do prêmio no Festival da Canção, transmitido pela televisão. Além disso, a letra não é difícil de cantar, principalmente a primeira estrofe, de frases musicais singelas. Uma unanimidade, que atingiu até Nélson Rodrigues, para quem "toda unanimidade é burra". O seu lirismo, seu aspecto doce, meio passadista ao resgatar a passagem de uma banda pela rua trazendo alegria inesperada, cativou o público.
Chico Buarque declarou que esse lirismo foi proposital para ir na contramão dos que exigiam dele, como compositor, canções que denunciassem a situação política do País. Chico sempre se negou a ser um "porta-voz" do que quer que fosse, nunca se dispôs a obedecer a exigências de outrem na forma de compor. No entanto, mesmo nesta canção aparentemente tão leve e ingênua, está a marca do seu inconformismo e de sua crítica à situação de sua gente, "sofrida".
É interessante notar que, para o compositor, essa primeira fase de sua obra, ele não a via exatamente como uma "carreira" verdadeiramente profissional. Chico tinha dúvidas e só se sentiu realmente maduro - como homem e como artista - alguns anos mais tarde. Na época de "A banda", compor e se apresentar em shows ainda tinha um pouco de diversão, do jovem que começou a tocar violão de ouvido, largou a Faculdade de Arquitetura e se arvorou pela música. Apesar dos compromissos que foram crescendo, sobretudo a partir do sucesso de "A banda", Chico Buarque podia sentir que estava se divertindo, um pouco "à toa na vida", não por falta de atividade, mas por não encarar ainda, na época, tudo aquilo como uma "profissão". Mas na própria canção isso se espelha de modo admirável: alguém que está em uma situação sem conflitos, curtindo a vida, e vê o sofrimento de sua gente, que pode ser atenuado momentaneamente pela música. Veremos mais tarde, em outras canções, que a dor de todos também chegará a ser, diretamente, a dor de Chico Buarque.
E mais uma vez Chico resgata um gênero mais antigo - neste caso, não um samba, mas uma marchinha - para compor, com sua poesia singular, algo novo no panorama brasileiro.
O mestre-sala e a princesa: "Quem te viu, quem te vê" (1966)
https://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=quemtevi_66.htm
Alguns aspectos das outras canções vistas anteriormente se concentram em "Quem te viu, quem te vê": o amor desfeito, o binômio indivíduo/sociedade e o Carnaval como espaço onde se encontram a música, a festa e o coletivo. Mas, ao contrário de "A banda", agora a letra é mais longa, mais difícil de ser cantada e se elabora como uma narração mais completa em primeira pessoa, contada pelo homem que foi abandonado. Outra variação: se antes o Carnaval, a música, era algo "externo" ao sujeito (ele vai ao Carnaval em "Sonho de Carnaval"; ele vê a distância a banda passar), nesta canção o protagonista/narrador é parte interna de uma escola de samba: um mestre-sala.
E se inicia dirigindo-se àquela que foi sua amada, outra novidade: o sujeito da canção falando diretamente a outra pessoa (aqui, a mulher de quem foi apaixonado), configurando uma relação entre indivíduo e indivíduo, com a ressalva de que é um monólogo, pois o falante não obtém resposta.
Aliás, o desencanto, tão presente nas outras canções, já se expõe no título, misto de ironia, crítica, talvez amargura. Já na primeira estrofe, se opõem as qualidades da ex-amada ("mais bonita", "favorita") ao distanciamento imposto pela separação, não isento de algum ressentimento ("hoje a gente nem se fala"). A vida externa, a vida social, corre ao largo da vida privada do sujeito ("a festa continua"), mas ele permanece marcado pela separação e, mais do que isto, pelas possíveis causas dessa separação que provocam nele a crítica social: a ascensão social da "cabrocha", como ele afirma: "Suas noites são de gala/nosso samba ainda é na rua". Não somente critica o afastamento dela pela vaidade, pela cobiça, mas também se coloca ao lado do coletivo ("nosso samba"), enquanto ela se isola em seu novo ambiente rico.
Essa fusão entre o sujeito e o coletivo também ocorre na estrofe-estribilho, na qual "o samba saiu procurando você", substituindo seu próprio desejo pelo samba. Quanto a ela, se tornou irreconhecível: "quem não a conhece não pode mais ver pra crer". E o sujeito da canção não a reconhece, mas "jamais a esquece": a separação amorosa e social é uma ferida.
Avançando na letra, se vão acumulando novas oposições críticas: antes, ela era "a mais brilhante", infatigável. Atualmente, ela se mantém apartada e dá "chá dançante onde eu não sou convidado". A incompatibilidade entre as duas esferas sociais, a do Carnaval e a do chá dançante, se reforça mais adiante em "hoje eu vou sambar na pista/você vai de galeria". Separação mais dramática, quando se verifica que a vida desse sujeito abandonado quase dependia da cabrocha: "o meu samba se marcava/na cadência dos seus passos/o meu sono se embalava/no carinho dos seus braços". O protagonista vê a vida do casal como uma música e uma dança, às quais ele se entregava, dia ("meu samba") e noite ("meu sono). Como ela jamais se esquece, ele ainda tenta uma tênue aproximação, apesar do ressentimento: "hoje de teimoso eu passo/bem em frente ao seu portão". Duplo distanciamento: a teimosia, que prova que sua procura é recorrente, mas fracassada; o portão, que materializa a separação entre os ex-amantes e entre os dois níveis sociais absolutamente incompatíveis, quando ele mora em um "barraco" e ela se transformou - realizando sua fantasia (a partir da imagem da própria roupa que usava na escola de samba) - em uma "princesa" sempre acompanhada da "mais fina companhia". O afastamento se completa na imagem do próprio desfile: ele, como sambista, na avenida; ela, como "turista", na galeria.
No final, quase resignado, ele admite que ela pode ter "saudade", mas, em sua nova classe social, não deve deixar transparecê-la: "não dê na vista", resguardando as aparências sociais.
A canção está estruturada em dois blocos que se alternam: uma estrofe, que cada vez é diferente, e o estribilho, que se repete cinco vezes. Nas estrofes variadas, o sujeito da canção vai apresentando seu drama, o oposição entre a situação do passado e a presente (por meio do uso alternado de verbos no presente e no pretérito), enquanto no estribilho ele canta a perplexidade resultante da mudança do comportamento dela. Assim, nas estrofes narrativas, o tom é de tristeza, com acordes menores, como um relato em voz baixa do que aconteceu. O curioso é perceber que, ao contrário, o estribilho se inicia de modo alegre, num acorde em tom maior (no verso "Hoje o samba saiu procurando você"), o que contrasta com a tristeza anterior. É de se notar, igualmente, que a música atinge sua parte mais aguda aqui, na palavra "saiu", como a marcar a intensidade da procura. Além do mais, na terceira vez em que entra o estribilho, há um coro contrastando com a voz individual, intimista, das outras partes. É como se o seu lamento, antes privado, agora procurasse ganhar a rua apoiando-se em outras vozes. Daí porque, talvez, o samba é quem procura a ex-amada, e não o sujeito da canção. Da mesma maneira - e seguindo a coerência da canção -, há a presença, no estribilho, de "Quem não a conhece" e "Quem jamais a esquece", referindo-se não ao próprio sujeito que lamenta, mas a outros, a todos os que, na rua (no samba) a tenham conhecido.
Nesta canção, se mesclam, como vimos, o drama individual e o social, este como divisão em classes. O indivíduo, portanto, sofre duplamente, pois a partir da ascensão social se esboça uma discriminação, uma exclusão. A própria estrutura da letra se divide em duas: uma, nas estrofes-estribilho, nas quais não aparece referência ao "eu", e sim ao "samba", a "quem"; já nas outras estrofes, o "eu" é explícito, se refere a si mesmo, como em "eu era mestre-sala", "eu não sou convidado", "o meu samba", "de teimoso eu passo", "eu não sei bem com certeza", etc. Duplicidade que se inscreve também no tempo, em presente e passado.
Além disso, é interessante notar como o tempo se apresenta nas canções de Chico Buarque. Em "Pedro pedreiro", o tempo passa, escoa, mas não traz um futuro promissor. Em "Sonho de Carnaval", algo se perdeu e, apesar do contentamento efêmero, não se recupera mais. Na canção "A banda", do mesmo modo, a passagem fugaz da alegria não apaga a dor à qual todos voltam. E em "Quem te viu, quem te vê", o tempo deixa feridas sem cura.
Impossibilidade de um final feliz? Inevitabilidade do desencanto? Talvez, como se pode atestar da próxima música, que trata de outra separação: "A Rita".
Do sorriso à mudez: "A Rita" (1966)
https://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=arita_65.htm
No primeiro LP (long-play) de Chico Buarque, de 1966, além dos sucessos anteriormente gravados em compacto, há canções como "A Rita", que veio a se tornar um clássico.
Diferente das outras, é um samba "clássico", alegre, tem algo da obra de Noel Rosa, com quem, aliás, Chico foi muito comparado no início de sua carreira. Aliás, na letra há referência direta a Noel.
A letra já começa com "A Rita levou meu sorriso", o que condensa o desgosto do sujeito que narra o acontecido: outra separação, marcada pela metonímia "sorriso", em lugar de alegria. Mas em seguida, "no sorriso dela meu assunto", Chico entrega à mulher o sorriso, a alegria ou, talvez, um sorriso irônico, como se ela não apenas tivesse deixado o homem sem sorriso, triste, mas roubado o sorriso, passando ela mesma a exibir alegria. Um duplo desgosto. Há mais: "meu assunto", que se pode entender por "minha fala, o que eu tinha a dizer", como um dos sentidos possíveis, dele a Rita também se apropriou. E por que não a Rita como assunto, como tema vital, indispensável, sem o qual ele não poderia mais viver feliz? Mas há, aí, ambiguidade: posso ler, como uma frase, "No sorriso dela, meu assunto" ou "Meu assunto, levou junto com ela"; e outra: "E o que me é de direito, arrancou-me do peito". Como se não bastasse ir embora algo vital, esse abandono é fruto de uma injustiça, cometida, ainda, como ato violento da ex-amada ("arrancou-me...", imagem de uma intensidade que também se encontra em Vinicius de Moraes: "rasga o meu coração/crava as garras no meu peito em dor", na canção "Serenata do adeus").
As marcações de pausa na melodia podem não coincidir exatamente com as pausas da letra, que às vezes não obedecem a uma sintaxe tradicional. Inclusive, há inversões sintáticas, se leio: "E o que me é de direito, arrancou-me do peito" (em vez do mais comum "arrancou-me do peito o que me é de direito"). Ambiguidades, essas, que estão presentes, sob várias formas, na obra de Chico como forma de embaralhar e enriquecer o sentido.
Mas diz o sujeito da canção: "E tem mais", indicando o peso de tantas coisas perdidas. Rita levou também "seu retrato, seu trapo, seu prato, que papel!", novamente abusando dos recursos sonoros dos encontros consonantais em "tr" e "pr", reforçado pelos sons percussivos de "p" repetidos, que fazem pensar, mesmo, nos ruídos produzidos por esse abandono. Abandono que leva a imagem da amada (o retrato), quem sabe dificultando, no futuro, a memória que poderia ter desse amor. E os elementos que indicam que houve convivência, intimidade, cumplicidade ("trapo", metáfora de roupas; "prato", em referência a tudo o que compartilhavam, mesa, cama...). E, além disso, ela levou "uma imagem de São Francisco" (santo conhecido pela simplicidade, humildade e amor à natureza, mas não podemos deixar de pensar numa ironia de Chico homenageando o próprio nome: Francisco...) e "um bom disco de Noel" - aí a referência-homenagem direta que Chico faz ao grande compositor de quem muito se disse que comparecia de várias formas em sua música.
Na segunda parte, que começa de novo com "A Rita", esta "matou nosso amor": a culpada da separação e do abandono. Como ela saiu sorrindo, pensamos em maldade, a mesma com a qual ela "de vingança, nem herança deixou", o que torna o próprio abandono mais completo, ao não deixar rastros, objetos atrás de si como catalisadores da memória (o "retrato", o "prato"). Ou seja, ela não deixou nada ao qual ele possa se agarrar, algo de que possa desfrutar. E, apesar de uma vida de poucos recursos "(não levou nenhum tostão, porque não tinha, não", ela "causou perdas e danos" sentimentais, existenciais. Tão fundos que incluíram "meus planos", "meus pobres enganos", "o meu coração". O resultado dessa paixão nesse jovem foi catastrófico. O sujeito da canção perdeu seus projetos (de futuro?), sua própria inocência juvenil ("meus vinte anos"), jogando-o com violência na maturidade adulta. O jovem perdeu, ainda, seus "pobres enganos". A juventude, o amor, a vida em comum, são "enganos"? O ideal de amor, algo ingênuo? Assim como a fórmula "Carnaval, desengano", podemos pensar aqui em "amor, desengano"?
Mas resta uma perda derradeira: "E além de tudo, me deixou mudo um violão". Perda que marca, mais do que o abandono do amor e da inocência juvenil, a impossibilidade da expressão. Mas não de toda: afinal, Chico escreve "um violão" e não, como seria comum ao querer expressar o significado de "música", "o violão". Um violão afirma claramente que há outros violões, pelo menos mais um: o mesmo com o qual o narrador compôs esta canção de lamento.
Quatro vezes se repete o verbo "levou", destacando as perdas. Da mesma forma, em várias ocasiões a melodia sofre uma variação, por exemplo, indo de acordes ditos de "tensão" - no final do primeiro verso, do quarto e do oitavo - a acordes de "relaxamento" - no final do segundo verso e do quinto, registrando a narração do drama pelo sujeito da canção, intercalada de altos e baixos. Justamente, esta primeira parte finaliza com um acorde de tensão (no final do nono verso), preparando a entrada da segunda parte, que termina em um acorde de relaxamento: fim da apresentação do drama, fim da canção.
Também é interessante verificar que os pontos de máxima tensão, nos quais a melodia alcança notas mais altas, são exatamente na enumeração das perdas: "Levou seu retrato, seu trapo, seu prato", na primeira parte, e "Levou os meus planos, os meus vinte anos/Meus pobres enganos", na segunda. Não podemos deixar de perceber que a nota mais aguda recai justamente em "enganos": o grito do sujeito da canção contra o desengano, presente em outras canções, como vimos.
Observamos como a música, carregada de diversas significações, faz parte de todas essas canções da primeira fase da carreira de Chico: como parte do Carnaval, bálsamo contra a aridez do cotidiano em "Pedro pedreiro", "Sonho de um Carnaval", "A banda"; como possível canto de um sabiá devolvendo uma vida anteriormente perdida; como parte da vida mesma do personagem e pano de fundo do drama amoroso em "Quem te viu, quem te vê"; como sedução, conquista amorosa, em "Januária"; e, finalmente, como símbolo da crise existencial do sujeito da canção - a perda da possibilidade de expressão musical (a mudez do violão) como consequência do abandono amoroso.
Essa onipresença da música, à maneira de uma metalinguagem (o compositor inserindo nas composições a temática musical), expõe a constante reflexão de Chico Buarque sobre seus próprios instrumentos de trabalho criativo, assim como a poesia que escreve nas canções expõe, com frequência, uma reflexão sobre seus recursos literários. Tudo isso vai se tornar mais complexo à medida que a carreira de Chico Buarque evolui. Mas já aqui, no "primeiro" Chico - dos anos 1960 -, a possível "inocência juvenil" do compositor já se mostra falsa, e o que surge em suas canções é sua maturidade poética e musical, como se verá na canção "Januária".
A graça e a indiferença: "Januária" (1967)
https://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=januaria_67.htm
Este samba, todo em redondilhas (versos de sete sílabas) e rimas, é um dos mais simpáticos e leves de Chico Buarque, por sua letra singela - embora de elaborada riqueza poética -, por seu tema - a sedução, mesmo que não resolvida -, pela música em si, aparentada com a bossa nova, que o compositor escutou muito e tratou de imitar, mas muito precocemente se impôs sua voz própria e inconfundível.
O que mais chama a atenção, na primeira vez em que se escuta essa música, é o trabalho de poeta, como que utilizando recursos tradicionais da poesia de modo a mostrar que tem talento. Ou, talvez, em tom irônico. Vejamos.
Já nos primeiros versos, "Toda gente homenageia/Januária na janela", temos certo excesso na repetição de sons em "gê" ("gente", "homenageia", "Januária", "janela"), no par "ô"/"ê" ("toda gente homenageia") e as seis vogais "a" no segundo verso. Além disso, há duas sílabas fortes no mesmíssimo lugar, na terceira e na sétima sílabas ("gen" e "gei", no primeiro verso; "á" e "ne", no segundo), que podem coincidir, ainda (segundo a maneira de cantar), com os acordes que iniciam um compasso. Tudo armado em perfeita simetria.
Em consonância com as canções que vimos anteriormente, nesta também já a uma marca de separação desde o início: Januária está na janela, dentro de casa; os outros, na rua. Além da oposição entre uma única mulher, de um lado, e diversas pessoas lá fora.
Nos versos seguintes, "Até o mar faz maré cheia/pra chegar mais perto dela", além dos recursos de repetição sonora (o "r" em mar/maré/pra/perto; o "é" em até, maré, perto), temos novamente um exagero ("Até o mar..."), também esboçado em "Pedro pedreiro". Já se vê que tamanha beleza não será fácil de ser conquistada...
Nos versos seguintes, "O pessoal desce na areia e batuca por aquela", Chico forja, ao mesmo tempo, uma imagem de praia, tempo livre, diversão, e de sedução, de paquera. "O pessoal" traduz o "toda gente" anterior, e novamente estamos diante da presença da música. Tão importante nas outras canções vistas (o Carnaval em "Pedro pedreiro", em "Sonho de um Carnaval" e em "Quem te viu, quem te vê"; a banda, na canção do mesmo nome), aqui a música serve de recurso à conquista amorosa, dentro da tradição do samba - pois se trata de um batuque.
Mas "o pessoal" encontra a resistência daquela "que, malvada, se penteia/e não escuta quem apela". Nessa nova função da música - como instrumento de sedução -, tampouco há sucesso. E se as causas dos fracassos anteriores foram a situação social, a efemeridade, a separação e a dor, agora ele se dá pela indiferença: aquela que se penteia se preocupa, narcisicamente, consigo mesma, e mais nada.
Tão indiferente, em seu espaço interior (na janela), que já está desde cedo ali, aos olhares de "quem madruga". Repete-se, na segunda parte, mas de outro modo, a admiração geral ("Quem madruga sempre encontra") e a imagem hiperbólica dessa admiração ("Mesmo o Sol quando desponta/logo aponta os lados dela" - que, em algumas versões, traz "lábios" em vez de "lados", o que reforçaria o aspecto sedutor da cena). Mas, madrugada ou não, com Sol ou não, o objeto do desejo - Januária - permanece indiferente aos recursos de conquista de seus admiradores: "Ela faz que não dá conta/de sua graça tão singela". Ao contrário do provérbio ("Deus ajuda quem madruga"), na canção a expectativa é frustrada. E Januária, longe de se esconder, faz questão de continuar se mostrando, à mercê dos olhares, mas mantendo a distância insuperável.
Então, vem o fracasso dos pretensos conquistadores, frustrados: "O pessoal se desaponta/vai pro mar, levanta vela".
Além da estrutura em versos de mesmo tamanho e das rimas, a que já aludimos, a canção é estruturada também simetricamente: na primeira estrofe, do quinto ao oitavo verso, é o pessoal quem aparece diante de Januária. Na segunda, nos mesmos versos, é Januária quem surge em cena primeiro, e depois o pessoal vai embora. Toda essa simetria mostra o domínio de linguagem que o jovem compositor já possuía e que comprovou musicando o poema "Morte e vida Severina", de João Cabral de Melo Neto, em 1965, com apenas 21 anos de idade. Inclusive, das canções analisadas, esta é a primeira a ter uma forma fixa, num exercício poético de quem desde muito tempo já era bom leitor e que pensava, desde muito jovem, que poderia ser escritor.
Nesta canção, os verbos sempre no presente indicam um tempo contínuo, sem passado nem futuro, o que joga a ênfase na perenidade da situação na qual o desejo não é satisfeito. Além disso, a sensação de algo que não muda, de uma situação que permanecerá inalterada (a indiferença e a recusa de Januária), está inscrita nas próprias rimas em "ela" em toda a letra ("janela", "dela", "aquela", "apela", "janela", "dela", "singela", "vela").
A forma com que Chico Buarque cantou essa música em sua primeira gravação mostra leveza, lentidão, conformando um clima que tem a ver com a tranquilidade de um mar de baía e com uma bela moça na janela. Esse clima de calmaria só é matizado pelo sexto verso de cada estrofe, quando a canção atinge seu ponto mais agudo, criando, na primeira vez, uma intensidade no clamor dos batuqueiros, e na segunda vez, no objeto desse clamor: "a graça tão singela". Nesses dois pontos simétricos, se encontra o ápice do desencontro: o pedido dos homens e a negativa de Januária.
Veremos que, em muitas canções de Chico Buarque, encontramos essa realidade do desejo insatisfeito, que aqui se desenha na recusa de Januária, que "não escuta" "quem apela". Desencontro que está presente numa parceria histórica de Chico Buarque: com seu maestro Tom Jobim em 1968, na canção "Sabiá", que venceu um Festival da Canção.
Canção de um outro exílio: "Sabiá" (1968)
https://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=sabia_68.htm
Esta canção é histórica, pois marcou a primeira parceria entre Tom Jobim, criador da bossa nova e já conhecido mundialmente, e o jovem compositor de 24 anos Chico Buarque. Além disso, venceu o Festival Internacional da Canção, apesar de ter sido vaiada na fase nacional do festival, competindo com "Pra não dizer que não falei das flores", de Geraldo Vandré. Curiosamente, não está gravada por Chico Buarque. Tom Jobim a gravou várias vezes: com Frank Sinatra em 1969; em 1970 (no disco "Stone flower") e em 1980 (no disco "Terra Brasilis"), cantando ele mesmo; e em 1987 (no disco "Rio revisited", com Gal Costa).
"Sabiá", que não é um samba nem mesmo uma bossa nova, tem uma música mais intimista, com toques de nostalgia. A letra começa, justamente, em primeira pessoa, com a constatação de uma espécie de exílio: "Vou voltar/sei que ainda vou voltar". A repetição dos sons "vou"/"vol" não incomoda Chico Buarque, quem, aliás, escolhe de propósito palavras que poderiam ser consideradas "não poéticas" (como "paralelepípedo" em "Vai passar") ou expressões que encerram alguma cacofonia (como em "O Sol ensolarará", em "Dura na queda"). A repetição, no caso, denota o forte desejo do sujeito, que não está em seu lugar, além da certeza do retorno, algum dia ("sei que ainda vou voltar"). A noção de exílio se impõe mais enfaticamente na expressão "para o meu lugar": o lugar onde o sujeito se encontra, agora, não é seu, é uma terra estrangeira.
A terra própria, que ele sente como tal, "foi" e "ainda é", marca uma continuidade em sua história pessoal, ainda que esteja afastado dela. Uma continuidade cindida pela ausência. De novo, a repetição de sons marcando a intensidade da nostalgia, em "lá/lá", nesse lugar do qual ele saiu e onde "hei de ouvir cantar uma sabiá/cantar o meu sabiá", versos que provocam nossos sentidos com a presença da música, agora não humana, mas animal, nesse espaço de natureza que recebe de volta um sujeito que, não se sabe por que, deixou sua terra. Sons que são já tradicionais na própria música e na poesia brasileiras, e mesmo na vida cotidiana dos brasileiros: sons do sabiá, pássaro popular no País, que acabou se tornando oficialmente a ave nacional brasileira. Além disso, há a referência direta da letra ao poema clássico de Gonçalves Dias "Canção do exílio" ("Minha terra tem palmeiras/onde canta o sabiá"...). Aqui, também nesta canção de Tom Jobim e Chico Buarque, podemos talvez imaginar outro exílio: o Brasil arrebatado dos brasileiros após o Golpe Militar de 1964. A expressão "hei de ouvir" se coaduna com a certeza de "sei que vou voltar", e aí temos o intenso desejo do sujeito que partiu.
Na segunda estrofe, além de repetir a sentença que o sujeito se impõe ("Vou voltar"), temos a irremediável transformação, no tempo, do espaço que era familiar, doméstico, natal. "Vou deitar à sombra de uma palmeira/que já não há". De novo, a complexidade da letra de Chico Buarque nos coloca diante de pelo menos três sentidos possíveis: primeiro, a referência ao romantismo de Gonçalves Dias, à palmeira de "Canção do exílio", mas aqui, em "Sabiá", a realidade mudou ("aquela aquarela mudou", dirá Chico em "Bye, bye, Brasil"). O País não é mais mesmo, a tal palmeira não existe mais, embora persistam as situações que causam exílio na história brasileira. O que não impede que o desejo insista, criando para si - segundo sentido - uma situação non sense, "à sombra de uma palmeira/que já não há", eco, talvez, do non sense recuperado por Guimarães Rosa (autor admirado por Chico) em um dos prefácios de Tutaméia, como na quadrinha "Era uma casa/muito engraçada/não tinha teto/não tinha nada". Terceiro, houve a transformação de um espaço do passado, já que nada mais é como era antes, e a inevitável perda (da sombra da palmeira). O sujeito, então, trata de recuperar à força (mesmo que sem sentido) o que se perdeu. O mesmo se dá nos versos "Colher a flor/que já não dá", que também remetem às "nossas flores" do poema romântico. Mas agora o País é outro.
Nos versos seguintes, há uma esperança: "E algum amor/talvez possa espantar/as noites que eu não queria/e anunciar o dia". No entanto, fazendo parte, assim, de uma continuação da enumeração anterior (a palmeira e a flor sem sentido) - marcada pela conjunção "e" -, desconfia-se, aqui, da possibilidade desse amor. Além disso, há uma incongruência temporal. Antes, o sujeito falava de um desejo a ser buscado no futuro ("Vou voltar", "hei de ouvir", "Vou deitar"...). Nestes últimos versos, entretanto, o amor que poderá vir no futuro virá para espantar as noites que o sujeito não "queria", no passado (no pretérito imperfeito, quando o comum seria "quero", no presente). Pode-se pensar nas noites do passado, essas a que ele foi jogado por ter se exilado, por ter partido ou ser levado a partir (como o próprio Chico Buarque será, pressionado pela ditadura militar, viajando para a Itália em 1969, o que torna a canção não somente um retrato da situação do Brasil na época, mas profética em relação ao compositor). E seu desejo é o de, com um possível amor no futuro, esquecer essas noites que, em sua época, ele não queria, não as quis. Por outro lado, o sujeito da canção pode estar se referindo às noites que não quereria, que não gostaria de ter (no futuro do pretérito), mas usando o verbo de um modo mais popular, no pretérito imperfeito, com valor de futuro, de possibilidade. Finalmente, a vontade de sair da escuridão e receber "o dia", metáforas mais do que conhecidas, em sua oposição entre "luz" e "trevas". Abandonar uma etapa de nostalgia, talvez de dor, e começar uma fase nova.
Na terceira parte, a complexidade que se situava num plano possivelmente social (o exílio, a partida da terra natal, não se sabe se por razões econômicas, políticas...) agora se concentra no plano individual. Vemos que a causa última da sensação de perda vem de alguém: "Fiz de tudo e nada/de te esquecer". Parece ser o amor que ele espera vir, no futuro, uma compensação para o amor que ele perdeu no passado. No entanto, como nada é dado à compreensão facilmente na obra de Chico Buarque, aqui de novo se embaralham os sentidos, pois "te esquecer" pode ser referir à própria terra pela qual ele tem a nostalgia do exílio. Ou as duas coisas.
O que fica claro é que o non sense esboçado no desejo em relação ao futuro (uma palmeira que não existe mais, uma flor que já não há) se amplia, agora, em referências pessoais: "fiz tantos planos/de me enganar/como fiz enganos/de me encontrar/como fiz estradas/de me perder". A lógica equívoca, que faz com que o sujeito construa sua própria perdição, denota, talvez, o desespero de saber-se irremediavelmente perdido ou, então, abandona a lógica prosaica em função de sonhar com um futuro que, de tão esperado, rompe as fronteiras do "bom senso". Desespero ou insistência tal, que há quatro vezes o verbo "fiz", sem resultados para tanto esforço. Tudo, portanto, se dirige à expectativa de futuro, de consecução de desejo, menos os versos finais, que marcam a resignação do fracasso: "fiz de tudo/e nada te esquecer". Final infeliz, depois de tantos esforços. Os "enganos de me encontrar" sugerem que a tal terra à qual ele quer retornar não existe mais, ou a volta é impossível. As "estradas de me perder" indicam, do mesmo modo, que os caminhos pelos quais tentou um retorno a uma fase anterior não vingaram. Um estrangeiro em sua terra, um exilado, talvez metáfora do estranhamento geral causado pela ditadura militar, mas em todo caso imagem universal da sensação de não-pertencimento ao mundo, de alheamento, que está presente no romance Estorvo, que Chico Buarque publicou em 1991.
O desejo de retorno se inscreve na própria estrutura da canção, que volta a repetir: "Vou voltar/sei que ainda vou voltar" em cada início das quatro partes da letra, repetindo, além disso, a mesma estrofe no início e no fim da canção. E, mais do que o desejo de regressar, está o desejo de cantar este anseio, que aparece na insistência com que a canção entoa a vogal mais aberta de todas, "a", marca do ato de expressão musical (por exemplo, num "la-ra-rá" que utilizamos quando queremos aludir a uma melodia). Vogal, esta, que se estende no tempo, que dura, evidenciando, quem sabe, a espera, mas mais do que isso: o desejo de prolongar o tempo da esperança. Mas esta esperança cai, perde a força na própria estrutura melódica da terceira parte. Com efeito, nos versos 5, 7, 9 e 11 (de "de me enganar" até "de te esquecer"), temos todos os finais de frase descansando na mesma nota mais baixa, como uma espécie de resignação, de conformismo com a realidade visível, que não é a do sonho de voltar, mas a da ausência de tudo.
Assim, entre a esperança e a resignação, o que parece difícil é realmente a volta, deixando a letra uma sensação de fracasso. Não é à toa que essa canção foi vaiada por um público que preferiu o tom político da música de Geraldo Vandré. Mas "Sabiá" não é, ela também, um canto que clama por retomar um país que se perdeu?
Samba sem pedir licença: "Apesar de você" (1970)
https://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=apesarde_70.htm
Nesta canção, que se tornou um "hino" de protesto contra a ditadura militar de 1964-1985, o sujeito que se expressa volta a falar em primeira pessoa dirigindo-se a "você". Esse "eu" enfrenta todo o tempo um interlocutor não nomeado, mas que é a causa de seus dissabores. Com efeito, o sujeito da letra reclama do seu "sofrimento" e do seu "penar".
Mas o sofrimento, embora possa ser atribuído, nas canções que falam de dor, em geral, a um revés amoroso, aqui incorpora atitudes autoritárias de quem o causou. O primeiro verso da canção é claro: "Hoje você é quem manda", que, ao mesmo tempo em que denuncia o autoritarismo do outro, não deixa de ser irônico, com um recado velado. "Hoje" o outro "manda", mas "amanhã"... Quem sabe? Não é à toa que esta música foi cantada em todo o Brasil como forma de lutar contra a ditadura militar da época.
O autoritarismo do interlocutor do sujeito da canção se traduzia no mando e na censura: "falou, tá falado/não tem discussão". A ação autoritária se desdobrava também em um tempo sombrio (que faz eco com a "noite" de "Sabiá"), que incluía o castigo:
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão
Há, aqui, uma referência implícita não só à censura, mas também aos julgamentos sumários, nos quais a tortura e o assassinato "puniam" sem perdão.
Como já vimos em outras canções de Chico Buarque, o "eu" que se expressa na letra é solidário à comunidade à qual pertence, daí a presença de "a minha gente" (a mesma expressão se encontra em "A banda"). Essa solidariedade - o fato de o sujeito da canção se sentir parte de um mesmo grupo - é pontuada em toda a letra, ora a partir do próprio "eu" ("eu pergunto a você", "vou cobrar com juros, juro", "inda pago pra ver", "vou morrer de rir"), ora a partir do coletivo ("a minha gente hoje anda/falando de lado"), com destaque para as ocasiões em que o "eu" se funde com o coletivo: "a gente se amando/sem parar" e "nosso coro a cantar".
A imagem da tristeza e do medo é traçada nos versos "A minha gente hoje anda/falando de lado/e olhando pro chão, viu". Mas o "eu" da canção, além de reclamar da situação, responde ao outro com uma espécie de profecia: "Apesar de você, amanhã há de ser/outro dia", que abre o estribilho. O desejo de mudança não esconde certa ameaça: "Eu pergunto a você/onde vai se esconder/da enorme euforia". E também, nesse futuro desejado, se prevê a impotência do autoritarismo outro, antes tão poderoso: "Como vai proibir/quando o galo insistir/em cantar". É notória a imagem do "galo" não somente como símbolo da aurora (novamente, o dia em substituição à noite, a luz contra as trevas), mas igualmente do artista, do poeta (como, por exemplo, no poema "Galo galo", de Ferreira Gullar, ou no clássico de Thiago de Mello da época: "Faz escuro, mas eu canto").
Essa "aurora" social e política também se traduz na metáfora seguinte: "Água nova brotando/e a gente se amando/sem parar". Como o "dia" contra a "noite", a nova água brotará contra a estagnação das águas paradas, pantanosas, insalubres do presente. E o amor que, em outras canções é problemático, causando o abandono e a dor, aqui é uma promessa em consonância com os dias melhores que virão. Além disso, esse amor "sem parar" desborda o limite do "pecado", que havia sido inventado pelo interlocutor autoritário. Então, ambos, a água nova e o amor, têm sabor de liberdade.
Na parte seguinte da canção, se exacerba a irritação do sujeito da letra contra o estado de coisas e a ameaça ao autoritarismo vigente. Já nos dois primeiros versos, a certeza de uma mudança: "Quando chegar o momento/esse meu sofrimento/vou cobrar com juros, juro". O possessivo "meu" individualiza o sofrimento, mas em outros versos, como vimos, temos "minha gente", "nosso coro", que torna a dor coletiva. A vingança está estabelecida pela cobrança com juros e pela contundência dessa cobrança: "juro". Mas o sujeito vai mais além: mais do que o sofrimento, vai cobrar "esse amor reprimido" (contra o qual virá o "amor sem parar"), "esse grito contido" (falta de liberdade de expressão, de liberdade em geral para protestar), "esse samba no escuro". Nesta última expressão, podemos ler não somente a interdição à alegria e à expressão artística livre, mas também a censura específica contra os compositores, como o próprio Chico Buarque, tão molestado pelo governo militar com a censura prévia a suas letras.
A ironia, tão cara ao compositor, aparece nos versos: "Você que inventou a tristeza/ora tenha a fineza de desinventar", como se o interlocutor autoritário pudesse ser "fino", fineza que o próprio "eu" da letra não exerce, por sua indignação. A contundência da expressão se dá pelo verbo no Imperativo, "tenha", marcando quase uma ordem (na própria linguagem do autoritarismo, que ordena sempre). Aliás, a indignação continua: "Você vai pagar, e é dobrado/cada lágrima rolada/desse meu penar". O desejo de vingança é forte, com o reforço em "e é dobrado".
Na parte seguinte da música, a crença no futuro promissor se acentua com os versos "Inda pago pra ver/o jardim florescer/qual você não queria". Jardim florescendo com a "água nova" citada antes e a própria luz do dia, contra a noite. Tudo se concentra na imagem de um dia ensolarado dando vida nova ao presente opressivo. E essa luz nova justamente vai contra a opressão, o autoritarismo, a vida gastada: "Você vai se amargar/vendo o dia raiar/sem lhe pedir licença". Novamente, o desejo de vingança, de ressentimento contra o poder vigente, que no futuro não terá mais a prerrogativa de permissão ou proibição, pois o autoritarismo desaparecerá. Para completar, o sujeito da canção anuncia, sarcástico: "E eu vou morrer de rir". Não mais morrer por tortura ou assassinato, mas de alegria. O clima de ameaça e de certeza do porvir se concentra nos últimos versos: "que esse dia há de vir/antes do que você pensa".
Na última parte da música, se repetem as imagens anteriores, reforçando os sentidos de florescimento de uma vida nova, de quebra da ditadura, de aumento da liberdade:
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente
Como percebemos, estão aí as metáforas de uma renovação em "a manhã renascer" e "o céu clarear"; as referências à chegada de um tempo mais livre, sem "castigo", em "de repente, impunemente". A presença reiterada da arte, da música, como antídoto contra a vida opressiva: "esbanjar poesia" (transbordamento paralelo ao amor "sem parar") e "nosso coro a cantar", mostrando com o possessivo "nosso" o discurso abarcador, em que o "eu", sujeito da letra, como já vimos, se mistura a todo o grupo social no enfrentamento do autoritarismo.
Na última e pequena estrofe da canção, os versos novamente irônicos de Chico Buarque dizem: "você vai se dar mal", derradeira previsão de mau agouro contra a violência do presente. Discurso que se desdobra, apontando para um infinito, em "etc. e tal", expressão na qual cabe tudo aquilo que faltou dizer, que preencheria, certamente, muitas páginas.
"Apesar de você" mostra, em suas seis estrofes, uma regularidade e uma diferença. A regularidade está marcada pela alternância de estrofes diferentes entre si com a estrofe-estribilho ("Apesar de você/amanhã há de ser/outro dia"), que já concentra todo o sentido da canção. É reforçada, ainda, pela alternância entre tons maiores e menores (por exemplo, a primeira estrofe começa com um acorde em tom menor. Já o estribilho começa com um acorde em tom maior). É curioso verificar, inclusive, que a maior frequência dos tons maiores indica maior insistência do sujeito da canção (maiores desafios, ameaças, mais enfrentamento com o interlocutor autoritário), da mesma maneira que o estribilho "Apesar de você/amanhã há de ser/outro dia", iniciando-se em tom maior, dá à canção maior clima de celebração, de alegria. Aliás, há nesta parte da música, na primeira gravação, um coro a dar justamente um toque de coletivo, de canto comum ("nosso coro", como diz a letra).
Outra regularidade é que cada estrofe - com exceção da última, que termina num infinito "etc. e tal" - tem 12 versos. E, como é característico das letras de Chico Buarque, os versos, apesar de livres - ou seja, sem uma métrica-padrão -, são rimados. Assim, na primeira estrofe, há rimas em "manda/anda", "falado/lado", "discussão/chão/escuridão"... Como contraponto ao "eu" e ao "nós" que se desenham na canção, a palavra "você" aparece 15 vezes, repetição que não só torna onipresente esse interlocutor como também satura a necessidade do "eu" de se dirigir a ele, reclamando, lamentando, até ameaçando.
A diferença reside, na verdade, numa espécie de "evolução". Na primeira estrofe, se apresenta o problema, o drama do presente, que se desenvolve "hoje", com verbos também no presente ("é", "manda", "tem"), mais os gerúndios "olhando" e "falando". Logo, a letra vai partindo para expressões todas no futuro, insistindo na mudança que haverá do presente, livrando-se da situação de opressão. Exemplos: "amanhã há de ser/outro dia"; "onde vai se esconder/da enorme euforia"; "você vai pagar, e é dobrado"; "você vai ter que ver", etc.
A oposição entre esses dois estados - a situação presente e o possível futuro - se exacerba em direção ao porvir mais livre, democrático. No entanto, esse estado sem opressão ainda não chegou, daí a insistência do sujeito da canção, em uma elocução, na verdade, inacabada - dada justamente a permanência, ainda, do drama da opressão -, pois não termina, propriamente, e sim se desdobra em "etc. e tal", sugerindo que falta muito ainda por dizer.
É interessante observar, ainda, que esta canção, tão cantada nos anos 1970 como desabafo contra a ditadura militar, não deixa de ser alegre, dinâmica, e estimula justamente a cantar, como se fosse não somente um protesto duro contra o regime militar, mas igualmente uma música para combater o estresse causado por este regime. Da mesma forma que "A banda", só que nesta última a crítica ao estado social e político do País é mais velada, enquanto em "Apesar de você" a pungência da letra responde ao próprio endurecimento do regime militar pós-AI-5 (ou "Ato Institucional número 5"), que a ditadura decretou para ter ainda mais poderes antidemocráticos.
Essa alegria, entretanto (refletindo a situação do País, cada vez pior?), desaparece em outra canção emblemática do período, singular e um marco na carreira de Chico Buarque: "Construção", de 1971.
O náufrago do asfalto: "Construção" (1971)
https://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=construc_71.htm
Como o título sugere, se trata de uma construção (que, veremos, é a de um edifício), mas também a construção de uma história, do dia ou da vida de um trabalhador. Não menos importante é a construção da própria canção, cuja letra foi composta toda em versos dodecassílabos (de 12 sílabas), portanto uma forma fixa (não há nenhum verso livre), da poesia clássica - em vez das letras em redondilhas (sete sílabas por verso), típicas da poesia e da canção populares. Uma estrutura simétrica, rigorosamente articulada em duas estrofes de 17 versos cada, mais uma estrofe final de sete versos. Veremos como esses e outros elementos estruturais ajudam a compor os sentidos desta canção memorável, tida pela revista Rolling Stone (edição 37, de 2009) como a número 1 entre as cem canções brasileiras mais importantes.
O primeiro verso condensa dois aspectos relevantes de toda a canção: o primeiro é o anonimato do trabalhador, com a ausência de um sujeito explícito - "Amou daquela vez". Esse anonimato carrega um duplo sentido: do ponto de vista social, a não-importância do trabalhador, apenas um número a mais na enorme massa de operários do País; do ponto de vista individual, a ausência do nome traduz a falta de uma identidade e de uma singularidade como sujeito, como no caso de "Pedro pedreiro", ainda que, nesta canção, a identidade dada pelo nome (da mesma profissão que o protagonista de "Construção" como emblema de uma classe social baixa urbana) não salve o personagem de sua condição precária.
O segundo aspecto é a urgência da ação, deixando prever algo insólito, dramático ou definitivo: "como se fosse a última". À intensidade dessa ação, relaciona-se algo de finitude. Aspecto que é reforçado no segundo verso: "Beijou sua mulher como se fosse a última". Nos dois versos, ao anonimato do trabalhador se opõe sua humanização pelo amor, pela existência de uma mulher. E já aí - como é recorrente na obra de Chico Buarque -, aparece a ambiguidade: último beijo, mas talvez também última mulher, o que faz pensar novamente na ideia de finitude.
O verso seguinte amplia o universo familiar, humanizado, do trabalhador, ao mesmo tempo em que reincide sobre a noção de fim de algo: "E cada filho seu como se fosse único". Notem-se as rimas, nos três versos, com a vogal tônica "u" - vogal fechada, própria aos significados de escuridão, de encerramento, de término e, por que não dizer, de queda (o contrário da vogal "a", a mais aberta de todas).
No verso seguinte, o protagonista da canção sai desse universo familiar, que parece estar abandonando - como uma premonição - e parte para o espaço exterior, urbano, não sem alguma sensação de desconforto, de falta de estímulo, talvez de fraqueza e fragilidade: "E atravessou a rua com seu passo tímido". E essa partida é para o trabalho diário na construção civil, nesse dia que parece incomum. Então, "subiu a construção como se fosse máquina". De novo, há uma ambiguidade: a construção vista como uma máquina que vai se desenhando, se erguendo, desumanizada, fria. Mas também o próprio trabalhador anônimo fazendo parte dessa construção-máquina, ele próprio uma peça da engrenagem. E essa máquina vai avançando em seu labor de levantar o edifício: "Ergueu no patamar quatro paredes sólidas/tijolo com tijolo num desenho mágico". O mesmo operário que tem o "passo tímido" pode levantar "paredes sólidas", imagem que sugere a firmeza e a dureza da máquina-construção em oposição à vida do trabalhador, vida na qual algo dramático ou derradeiro parece estar prestes a acontecer. A construção é sólida, mas a vida é frágil. O "desenho mágico" vai se formando à medida que os elementos mínimos da construção vão se acumulando, não pertencem à vida do operário, não estavam, de antemão, em algum projeto seu. O projeto da construção, como se sabe, vem de fora, "de cima" - de um arquiteto ou um engenheiro. A "magia", aqui, não apaga seu anonimato, suas dificuldades, a sensação de que algo está no fim. Pelo contrário, o que vemos no operário, em meio ao seu trabalho maçante, repetitivo, cansativo, é: "Seus olhos embotados de cimento e lágrima".
Este verso introduz o sentimento no meio dessa realidade inorgânica. As lágrimas do operário, sem motivo definido, parecem vir dessa situação misteriosa que marcou uma espécie de despedida de sua família. No entanto, também sugere lágrimas pelo pó dos materiais com que trabalha o operário. Ou seja, a própria atividade diária produz lágrimas... Esse elemento orgânico, vital, expressão de um corpo que se desgasta, está em oposição flagrante com o inorgânico, duro e inumano que é o cimento, base da construção. Aqui se desenha, quiçá, a ideia da morte: a solidez do cimento impossibilita qualquer vida, é o oposto do maleável, do vivo, do líquido (a lágrima). Mas é esta mistura, "de cimento e lágrima", que embota os olhos do operário, é essa mescla cotidiana de tristeza e trabalho - ou de tristeza produzida pelo trabalho, como um produto a mais dessa construção - que seca seus olhos, o que cria um sentido contraditório: os olhos lacrimejam, mas estão secos pela ação do cimento, pela mistura desse pó (do trabalho, do cotidiano) às lágrimas. Não é fora de propósito relacionar, mais uma vez, o pó (ao qual todos voltarão, segundo o Gênese) à morte. Também é clara a metáfora da massa com a qual o pedreiro levanta uma parede, que se constitui de cimento e água, no caso uma água do próprio corpo do trabalhador, produzida pela tristeza de sua condição.
Mas há uma trégua nessa vida embotada: "Sentou pra descansar como se fosse sábado/comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe". A palavra "sábado" traz a ideia de folga, de tempo livre, a pausa nessa vida cansada. Associada a isso, a comida - embora seja aquela de todo dia, um simples feijão com arroz tradicional de operários -, é recebida como se fosse um manjar de um príncipe, tanta é a expectativa de saborear algo nesse cotidiano insípido. E isso nos aparece como algo extraordinário. Mas esse refrigério não apaga as vicissitudes de um dia a dia mesquinho: "Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago". Nova ambiguidade de Chico Buarque: a bebida dá a ideia de uma celebração, quando, provavelmente, se trata somente de um copo d'água. Mas, apesar de estar associada à excepcionalidade da comida de "príncipe", ela causa soluços. O verso aponta para dois sentidos possíveis, pelo menos: a enorme sede (com a enorme fome, que o faz se sentir um príncipe ao comer) o faz beber tão avidamente que passa a ter soluços. Por outro lado, esse soluço nos remete às lágrimas referidas anteriormente. Completa-se, então, um círculo que passa pelo descontentamento com a vida difícil, transitando por lágrimas e soluços. Mais uma vez, Chico nos entrega sentidos equívocos. Como se não bastasse isso, outra imagem se superpõe às anteriores: a de um náufrago, exacerbando a sensação de sede, que podemos pensar ser a sede de vida, de outra existência. Mas esse náufrago, ao deparar-se com o tão buscado objeto do desejo (a bebida), ao consumi-lo em grande quantidade, acaba soluçando. Justamente por ser algo excepcional (a bebida, como a comida).
O verso seguinte coloca o protagonista da canção em uma espécie de delírio, uma alegria exagerada pelo simples ato de comer e beber (terá sido cachaça em vez de água?), mas que, em seu contexto de trabalhador braçal, adquire uma ressonância fora do comum. "Dançou e gargalhou como se ouvisse música". A noção de delírio se dá pelo fato de a "música" estar ausente. Música que, novamente na obra de Chico Buarque, toma a dimensão de uma escapada da contingência rumo a uma transcendência, ainda que, neste caso do operário, mínima ou ilusória. Parece que o operário cria seu próprio espaço de celebração (de quê?), uma trégua estendida, que começou com a alimentação e terminou em uma pequena festa íntima. Destaca-se, ainda, a oposição entre "lágrima" e "dançou", entre "soluço" e "gargalhou". "É como uma elevação, um sair de si - e, sobretudo, sair do ambiente opressivo do trabalho, do cotidiano sem graça - para, em um espaço de devaneio, degustar a possibilidade de uma vida diferente. Mas, na letra de Chico Buarque, o destino é implacável: depois da elevação, vem a queda: "E tropeçou no céu como se fosse um bêbado". O "céu", metáfora do abismo, perde sua qualidade transcendental para assumir sua feição de lugar da finitude. A ironia amarga faz do indivíduo que se entregara a uma mínima "festa" íntima, imaginária, um "bêbado", fictício (se tomou água) ou não (se tomou cachaça), que em lugar do júbilo vê diante de si apenas o abraço da morte.
Machado de Assis escreveu em Memórias póstumas de Brás Cubas: "Melhor cair das nuvens que de um terceiro andar". Em "Construção", o protagonista cai dos dois espaços, o do devaneio ("céu") e o do real (a construção, talvez um andaime). Ele "cai na real", mas tarde demais. Antes, "flutuou no ar como se fosse um pássaro". Triste ironia, o operário que levanta edifícios, ele mesmo erguendo-se aos céus e flutuando, livre, sem o peso do cimento e de sua própria vida. Finalmente, "se acabou no chão feito um pacote flácido". Ademais, se nota a dupla oposição, entre "pássaro" (a leveza) e "pacote" (o peso da gravidade), ressaltada pela consoante inicial p, um som de batida, de golpe; e entre "flutuou" e "flácido", com encontro consonantal inicial "fl", marcando uma leveza que se transforma em coisa inerte, num ciclo que começou no chão, elevando-se até um ponto (um andaime? O céu?) para voltar ao chão - a própria metáfora da vida humana nascendo do pó e voltando a ele, conforme o Gênesis, já citado.
Em seu fim, o operário, depois das tréguas humanizadoras da comida, da bebida, da música imaginária, se desumaniza, se transforma em coisa ("pacote"), peso morto, sem rigor, sem firmeza ("flácido"), apenas com a certeza indiferente da morte. A agonia do protagonista ocorre "no meio do passeio público", espaço coletivo, de passagem, onde cai como corpo estranho (de outro lugar, de outra classe social) esse indivíduo sem nome, cuja parca identidade, desconhecida, se dissolve na massa. E mais: "Morreu na contramão atrapalhando o tráfego". Fim da estrofe, fim da história, fim do operário.
O destino do trabalhador se desdobra na morte, assim, em duas "gafes", duas situações inoportunas: "na contramão" (na contramão da vida, das pessoas que passam, que não são operárias) e "atrapalhando o tráfego", o fluxo de uma cidade que pode ser indiferente à vida (e à morte) de um simples operário, que aqui se apresenta como um estorvo (título de um romance de Chico Buarque, que já citamos). Sinal dos tempos?
Os próprios versos dão a tônica do drama - todos de 12 sílabas, cujas mais fortes são exatamente a primeira da última palavra de cada verso (todas proparoxítonas, em outra característica de Chico Buarque, que desdenhava o uso exclusivo de vocábulos "poéticos" para integrar à canção os registros mais abrangentes do português brasileiro). Eles são como "acelerados", cantados sem pausa até a sílaba tônica da proparoxítona final (exemplo: "E flutuou no ar como se fosse um pássaro"). Não há no meio do verso outra sílaba que, por sua força, provoque uma pausa, uma quebra do ritmo (como poderia ser, por exemplo, o caso do verso "O homem sério que contava dinheiro parou", de "A banda", no qual podemos considerar, pelo menos, três sílabas fortes, que forçam uma pequena pausa, "sé", "ta", "nhei", finalizando na última sílaba "rou"). Em "Construção", cada verso é cantado em uma cadência monótona e rápida, que só "para" no início da última palavra, justamente onde, com frequência, ocorre a rima (por exemplo, na primeira estrofe, "última", "última", "único", "tímido", "máquina", "sólidas", "mágico", "lágrima", "sábado", "príncipe", "náufrago", "música", "bêbado", "pássaro", "flácido", "público" e "tráfego"). Assim, a própria estrutura da canção leva a situação do operário a uma aceleração, uma precipitação até a beira do abismo - quando se "tropeça" na última sílaba forte. Aliás, essa sílaba é a única de cada verso (em toda a letra, sem exceção) que é mais alongada, estendida, encerrando um pequeno intervalo, justamente o intervalo desse "tropeço" sonoro.
Além disso, a monotonia da vida cotidiana do operário também se inscreve na repetição da expressão "como se fosse", que ocorre nove vezes na primeira estrofe e um total de 40 vezes em toda a canção! - já que as estrofes repetem a mesma estrutura, mas com modificações sutis, alternando a posição de palavras que apareceram na primeira estrofe, uma e outra vez, forjando, em cada nova versão da estrofe primeira, novos significados.
Assim, a segunda estrofe começa com
Amou daquela vez como se fosse o último
beijou sua mulher como se fosse única
e cada filho seu como se fosse pródigo
Como se vê, Chico Buarque troca as últimas palavras de cada verso - justamente as proparoxítonas, que têm a primeira sílaba como a mais forte de todas - por outras. Assim, temos "último", "única" e "pródigo", em vez de "última", "última" e "único", da primeira estrofe. Agora, o ato amoroso do operário se dá como se ele fosse o último, não ela. O último de uma série de homens, o que diminui a própria importância da relação amorosa? O último homem, o último sobrevivente? E, no segundo verso, "como se fosse única" indica que a mulher não é a única? Ou que, pelo menos em pensamento, ele não a considera normalmente "única", apenas no ato amoroso desse dia? Seja o que for, os dois versos reforçam a ideia de abandono e finitude.
No terceiro verso, "pródigo" é um adjetivo que poder ser aplicado a "cada filho", mas também ao próprio pai, pródigo em distribuir beijos aos filhos (ato final? Uma despedida?).
Depois, é quando o sujeito da canção sai à rua. Mas seu passo, de "tímido" na primeira estrofe, passa a ser "bêbado", antecipando o estado do operário rumo a um trabalho que não o satisfaz, emblema de seu cotidiano cambaleante, incerto, trôpego, como anunciando o desenlace.
Nos dois versos seguintes, o pedreiro sobe na construção "como se fosse sólido" (na primeira estrofe, "máquina"). Aqui, uma ironia sobre o gesto do homem, aparentando solidez, quando, na verdade, seu passo era "bêbado". Instabilidade do corpo, instabilidade da vida. E continua levantando "quatro paredes mágicas" (antes, "sólidas") num "desenho lógico" (antes, mágico). Chico opera uma substituição cruzada: a solidez se transfere das paredes ao corpo do operário; a magia, do desenho às paredes. Em toda esta parte da nova estrofe, as substituições da última palavra de cada verso acentuam o drama do pedreiro: sua instabilidade, a opressão da construção-máquina ("desenho lógico", desprovido de criatividade ou de qualquer autonomia do trabalhador), a irrealidade de tudo ("paredes mágicas"). Finalmente, seu olhar está seco de "cimento e tráfego", mesclando o espaço do trabalho (interior da construção) ao espaço externo, da rua, dessa cidade que não o acolhe e na qual ele não sente nenhuma segurança. Novamente aqui, se anuncia o desastre.
Então, é quando o protagonista tem direito a uma trégua. Como na primeira estrofe, nesta ele também descansa e sai da engrenagem-construção para descansar "como um príncipe" (pois um operário não descansa, trabalha) e comer "feijão com arroz como se fosse o máximo" (a derradeira degustação a que tem direito um condenado?) . Mas, como nos exemplos anteriores, nos próximos versos também a situação decadente do pedreiro se manifesta: primeiro, ele bebeu "como se fosse máquina". Mesmo no intervalo do trabalho opressivo, seu corpo não deixa de obedecer a essa estrutura, como uma peça a mais. O sentimento, a expressão (a dança, o soluço) também estão embotadas, como os olhos, num corpo "maquinizado", coisificado. Por outro lado, sua alegria se dá como se ele "fosse o próximo", talvez o homem da rua, do tráfego (de automóvel), mas não ele, mero operário, que não tem o que comemorar. Mas, igualmente - no rol das ambiguidades irônicas criadas por Chico Buarque -, pode-se pensar no trabalhador como o próximo a morrer, dentro do clima de decadência, queda, da canção, que evoluiu rumo ao desenlace trágico.
Na última parte da estrofe, o operário tropeça, não mais como se fosse bêbado, mas como "se ouvisse música". Desloca-se o estado de embriaguez para o de devaneio; o "céu" como possível metáfora de um sonho se transforma aqui na música que tantas vezes comparece na obra de Chico como contraponto à pobre vida cotidiana. E seu corpo se lança no ar, não mais como pássaro (metamorfose operada por seu devaneio), e sim "como se fosse sábado": dia de folga, pausa no trabalho, tempo de ócio e diversão. No entanto, tudo isso enfrenta o impacto da dura realidade, como na primeira parte da letra. Agora, ele despenca como um pacote "tímido" (antes, flácido) e agoniza no meio do passeio "náufrago" (antes, público). O primeiro adjetivo desqualifica o possível sonho do trabalhador, sua "viagem", que, em sua queda, se transforma em mera timidez. O segundo adjetivo torna náufrago não mais o pedreiro com sede, perdido em meio ao seu trabalho opressivo, mas o próprio espaço público onde ele morre, espaço no qual a vida se perde, desaparece, afunda: o meio social, a multidão urbana, a cidade na qual um simples trabalhador braçal não tem identidade e morre sem deixar vestígio na sociedade. Sociedade essa em cujo interior um pobre morto como o personagem da canção é um estorvo, "atrapalhando o público", tanto no sentido de deslocamento das pessoas como no de ser um estorvo aos olhos e à consciência desse público, o que não deixa de ser coerente com a "timidez" do corpo do trabalhador referida antes.
Vê-se como, em toda esta segunda parte da canção, as substituições de apenas uma palavra por verso tornam o drama do operário mais pesado, mais denso, aumentando a sensação que temos da queda no vazio: o próprio corpo do protagonista sendo um peso para essa sociedade.
Na terceira e última estrofe, prossegue a troca das últimas palavras dos versos. Como um pedreiro que, ao construir uma parede, vai colocando um tijolo ao lado de outro, numa fileira, e depois, em cima, outra fileira de tijolos, mas estes dispostos de outro modo, alternando, assim, sua posição, Chico Buarque vai construindo a letra da canção dispondo uma "fileira de versos" em cada estrofe, de tal forma que, em cada estrofe, uma palavra-tijolo vai em posição diferente. Em espiral, a letra vai reafirmando o mesmo, mas com sutis modificações. Esse modo de compor não é novo, pois já era praticado, por exemplo, por Dorival Caymmi em canções como "O vento", cuja primeira parte diz "Vento que leva o barco", mas a segunda diz: "Vento que vira o barco". Apenas uma palavra muda o destino dos pescadores.
Só que estas sutis modificações, como vimos, vão intensificando o drama do personagem. Na terceira parte, ele amou "como se fosse máquina", e não mais um ser humano: abandona-se, aqui, qualquer resto de amor, de vida familiar ou de sentimento de despedida ou nostalgia. Do mesmo modo, "beijou sua mulher como se fosse lógico", em coerência com o ser "máquina": tudo dentro da ordem, dessa engrenagem que já o desumanizou. Na construção, as paredes agora é que se tornam "flácidas", denotando que essa ordem, ainda que regule a vida do operário, é sem vigor, além de ressaltar, por analogia, a falta de força e de viço na própria vida do trabalhador: ao mesclar-se (como uma máquina) seu corpo com o seu trabalho, a flacidez que ele possui se transfere à própria coisa construída.
Nesse ponto, quando o trabalhador para na hora do descanso, é como se fosse "um pássaro". Justamente quando, nesta terceira parte da letra, a condição do operário vai se tornando mais dura, maior é o desejo da metamorfose: deixar de ser um pedreiro quase pedra e virar um "pássaro", em cujo voo ele chega a parecer um príncipe.
No entanto, nesta última parte da canção, tudo vai se acelerando rumo à conclusão dramática. Não só todos os aspectos do trabalho do pedreiro o vão tornando mais pesado, mas também a própria estrofe se acelera, descartando alguns versos da primeira e da segunda partes, como que indo ao essencial, desbastando elementos supérfluos (como o excesso de massa que o pedreiro vai eliminando ao levantar uma parede). Por isso, em vez dos 17 versos, agora são apenas sete.
Antes do fim, quando o operário é comparado a um príncipe, ele "flutuou". Como antes, o "voo" (a viagem-fuga desse cotidiano endurecido) precede a queda, aumentando a oposição entre o sonho das alturas e a realidade rasteira. Finalmente, o trabalhador "se acabou no chão como um pacote bêbado". Este verso condensa duas imagens, a de uma coisa (o ser humano transformado em um pacote, contendo, aí, implicitamente o adjetivo "flácido" usado anteriormente) e a de uma embriaguez que, longe de ser alegre, traduz o grotesco e o patético da situação: uma marca do desequilíbrio, da decadência, mesmo da perplexidade.
As duas primeiras partes da canção terminam com a morte do trabalhador atrapalhando "o tráfego" e "o público", respectivamente. Na terceira e última parte, essa morte atrapalha "o sábado". Vê-se que, assim como a condição do pedreiro vai sendo mais dramática ao longo das três estrofes, também sua morte vai tendo consequências maiores, "atrapalhando" cada vez mais essa cidade na qual a classe social mais baixa não tem vez. Com efeito, temos primeiro o "tráfego", um aspecto mais específico do meio urbano, a mobilidade das máquinas. Num segundo momento, aparece "o público". Já não são apenas as máquinas, os automóveis que passam, mas todas as pessoas que circulam pelo meio urbano é que se veem "prejudicadas" pela morte do operário. Mas, no terceiro e derradeiro momento, a morte do trabalhador atrapalha o próprio dia, tudo incluído aí, a vida pulsante da cidade.
Como vimos, a intensificação dos aspectos negativos do trabalho (e da vida) do operário vai a par da aceleração da queda, da primeira à última estrofe. A construção, de certa forma, permanece inacabada, assim como a vida do pedreiro foi cortada antes do tempo, precocemente, como retrato da vida de uma sociedade na qual os trabalhadores mais desqualificados sofrem a violência cotidiana de uma existência sem futuro.
Magistralmente, a construção poética de Chico Buarque, aliada à música séria, até dramática (incluindo os arranjos incisivos do maestro Rogério Duprat na versão original), abre um caminho de experimentação na obra do compositor, tornando mais complexa uma obra que, desde sempre, já possuía a marca da originalidade. Como exemplo posterior dessa qualidade, podemos citar a canção "O futebol", de 1989, que veremos mais adiante. Por outro lado, poderíamos pensar que, com a intensificação do autoritarismo e da repressão no período da ditadura militar, a própria composição de Chico Buarque se tornou mais dura, mais contundente naquele início dos anos 1970, justo depois de seu exílio na Itália. Mas o Chico gozador e brincalhão não desaparece, ao contrário: serviu-se dessas características para burlar a própria ditadura, como no caso de "Acorda, amor", a próxima canção.
Burla e pesadelo: "Acorda, amor" (1974)
https://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=acorda_74.htm
Esta canção revela uma das características mais marcantes de Chico Buarque: o humor irônico. De fato, para burlar a censura do regime militar da época, Chico criou esses personagens, "autores" da música, que se chamam Leonel Paiva e Julinho da Adelaide. Este último, inclusive, deu entrevista ao Jornal Última Hora de São Paulo. A canção foi aprovada sem nenhuma restrição da censura, que só percebeu o seu erro mais tarde.
"Acorda, amor": o sujeito da letra se encontra em seu espaço de intimidade, de súbito invadido pela irrupção de algo que vem perturbar a quietude doméstica. "Eu tive um pesadelo, agora/sonhei que tinha gente lá fora/batendo no portão/que aflição". A situação que se apresenta logo de início é emblemática do medo presente, principalmente nos anos de 1968 a 1973, quando a repressão do governo militar se tornou mais feroz no Brasil. Gente desconhecida, no meio da noite, batendo na casa: imagem de tantas invasões e sequestros que houve na época.
E a descrição do pesadelo continua: "Era a dura/numa muito escura viatura/minha nossa santa criatura". A ironia vai tomando conta da letra, na rima de "dura" com "viatura" - palavra do jargão policial -, seguida da expressão de espanto, de medo e perplexidade. Ironia que se revela abertamente em "Chame, chame, chame lá/chame, chame o ladrão, chame o ladrão", que é o recurso pensado no momento para se defender da polícia repressora ou do aparato parapolicial, numa inversão de papéis: a polícia é o delinquente, o ladrão é o agente de segurança. Tudo isso em ritmo de samba. E mais: numa melodia rápida, cujos versos se cantam acelerados, marcando a própria velocidade da ação parapolicial e a vertigem do susto (ao contrário, por exemplo, da melodia de "Apesar de você").
Mas o sonho não era sonho, e sim a pura realidade: "Não é mais pesadelo, nada/tem gente já no vão da escada/fazendo confusão/que aflição". Há uma linha de continuidade entre o pesadelo e a realidade, chamando a atenção para as causas reais do medo: a invasão do aparato parapolicial. Invasão que é flagrante em "tem gente já no vão da escada", marca da atividade repressora da ditadura militar da época. Além disso, essa invasão não é tranquila - como poderia ser a visita de um policial para um interrogatório -, mas "causando confusão", ruído, violência, meios de amedrontar o cidadão.
Quem invade a casa? "São os homens", expressão que até hoje se refere à polícia em geral. O horror da invasão, que deixa o morador paralisado em um momento inoportuno, no meio da noite em uma situação de intimidade ("e eu aqui parado de pijama"), vem acompanhado, na letra, da ironia própria de Chico: "eu não gosto de passar vexame", que logo vai rimar com "chame, chame, chame o ladrão". Deslocamento da noção de perigo para a graça, o humor. E agora, o perigo é real, não mais um pesadelo. Então, o pedido passa a ser real também à mulher: "Chame o ladrão".
Na segunda parte, o sujeito da canção, sempre se dirigindo à sua mulher (num espaço privado do casal, em oposição à violência externa perpetrada pelo Estado), faz referência às prisões da época, quando milhares de militantes, sindicalistas, intelectuais, artistas e trabalhadores foram sequestrados, mas com um toque irônico: "Se eu demorar uns meses/convém às vezes/você sofrer". A preocupação com a aparência social (marca, talvez, de certa classe média), que já estava presente na primeira parte - quando o personagem é pego de pijama -, aqui se dá pelo respeito à convenção social que equaciona "separação" com "sofrimento". Uma crítica à relação amorosa do casal?
Logo, a referência velada se dirige aos desaparecidos políticos: "Mas depois de um ano eu não vindo/ponha a roupa de domingo/e pode me esquecer", numa tripla ironia: o desaparecimento que, colocado em primeira pessoa ("eu não vindo"), parece indicar, também, o desejo do personagem de fugir de casa; a "roupa de domingo", um vestuário mais festivo, para uso social, quando aqui seria o caso de vestir luto (seria uma indicação da alegria, do desafogo da mulher ao saber que o marido desapareceu?); por fim, o conselho para esquecê-lo, quando, em uma relação amorosa que está bem, o esperado seria que ela não o esquecesse.
Na quarta parte da canção, que volta a começar com o mote "Acorda, amor", há uma avaliação da conjuntura política do período, em linguagem popular: "Se você corre o bicho pega/se fica não sei, não", com o desvio semântico em "não sei, não", mudando o ditado (como no caso de "Quem espera nunca alcança", na canção "Bom conselho", de 1972), o que ressalta a sensação permanente de insegurança. E o personagem alerta a mulher: "Atenção, não demora/dia desses chega a sua hora", referindo-se à perseguição política do final dos anos 1960 e início dos 1970 - quando ninguém estava imune à possibilidade de ter sua casa invadida para um interrogatório (nem o próprio Chico Buarque, que foi preso em casa e levado ao Ministério do Exército para ser interrogado, dias depois de decretado o AI-5, em dezembro de 1968) - e ao perigo que significava expressar o descontentamento com o governo: "Não discuta à toa, não reclame". Por fim, a repetição do estribilho "Chame o ladrão" se torna uma crítica irônica ao terrorismo de Estado, este, sim, ameaçador, mais perigoso que a delinquência comum.
Na pausa posterior (recurso tradicional do samba "de breque"), há uma espécie de "adendo", de recomendação do protagonista, levado pelas forças parapoliciais (ou paramilitares), à sua mulher: "Não esqueça a escova, o sabonete, o violão". Último toque de humor de Chico, apresentando o sequestro quase como uma ida a um hotel, como se o preso pudesse levar, por exemplo, um violão à cela! Além dos objetos de asseio pessoal - a escova de dentes, o sabonete -, uma espécie de salvaguarda individual contra a repressão massiva do Estado, que atacava a identidade e homogeneizava todos dentro do conceito de "subversão". Ao mesmo tempo, há a luta pela manutenção da atividade artística com o seu violão, tão importante aqui quanto na canção "A Rita", como vimos, mostrando que, volta e meia, Chico Buarque coloca elementos autobiográficos na composição.
O toque engraçado da canção justamente trata de burlar a seriedade da situação política, criticando-a não pelo lado do lamento, mas sim a partir de um fato que causa riso. Os versos são cantados em velocidade, eles mesmos subindo e descendo na escala musical, como um "drible", sinuosos, para tentar escapar da situação. A urgência e a ansiedade se encontram na própria melodia veloz e na repetição afobada ("chame, chame!"), quase um gaguejar de medo. Tudo isso como um "drible" na repressão.
Da mesma forma, o próprio Chico Buarque driblou a censura do governo, ao apresentar esta letra como sendo de autoria de uns tais Leonel Paiva e Julinho da Adelaide, quando na verdade a canção toda era de Chico.
É interessante notar que "Apesar de você", de 1970, já é uma crítica aberta à ditadura militar do período, mas em um tom mais poético, enquanto, aqui, justamente nos anos finais da época mais repressiva, Chico utiliza um humor mais aberto, mais irônico. Um pouco depois, vai usar um toque mais sutil, intimista e nostálgico: trata-se da canção "Meu caro amigo", um chorinho de 1976.
Pirraça e repressão: "Meu caro amigo" (1976)
https://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=meucaroa_76.htm
Nesta canção, Chico aborda outro problema decorrente da ação repressiva da ditadura militar, que foi o exílio. A letra é uma "carta" endereçada ao seu amigo Augusto Boal, um dos mais importantes dramaturgos do Brasil, que estava exilado em Portugal, e com quem Chico Buarque compôs "Mulheres de Atenas", de 1976. O próprio título da música é a abertura da carta dirigida ao amigo exilado.
Já nos primeiros versos, se entende que os dois amigos estão separados pela distância, talvez pelo tempo:
Meu caro amigo me perdoe, por favor
Se eu não lhe faço uma visita
Mas como agora apareceu um portador
Mando notícias nessa fita
O sujeito da canção busca um contato mais íntimo, mais próximo, já que não pode ser uma visita pessoal, e essa aproximação se dará por uma "fita" (a fita cassete da época). Em vez de haver uma mensagem por escrito (a carta), há uma fala gravada, o que torna essa correspondência mais viva e com o calor da voz, do corpo. Parece que, em meio a um sistema político que massificava e desumanizava, há aqui a tentativa de restabelecer os vínculos afetivos de indivíduo a indivíduo, de driblar a repressão e reconquistar a amizade.
Mas quais são essas "notícias" enviadas pela fita?
Aqui na terra 'tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol
Esta parte da canção, que traz acordes diferentes - à mudança de sentido, corresponde uma mudança musical -, vem dizer as "notícias". O que ocorre? Rigorosamente nada! O futebol de sempre, a música, sempre vigente (ainda que se possa pensar em uma "novidade" dos anos 1960-70, que é o rock), o tempo - mote para começar uma conversa, muleta da linguagem, mas sem conteúdo significativo: ou chove ou bate sol.
Entretanto, na estrofe seguinte, sim, há novidades. Tanto é diferente esta nova parte da mensagem, que começa com "Mas...", e a notícia principal, ao contrário daquelas contadas antes e que não diziam quase nada, é:
Mas o que eu quero é lhe dizer
que a coisa aqui tá preta
Tão "preta" está a situação, que os que ficaram no País têm que se valer de vários recursos para ir sobrevivendo. Nesta primeira parte, o protagonista da "carta-fita" diz: "muita mutreta pra levar a situação", indicando não apenas que é preciso sobreviver, mas sobreviver utilizando-se de meios nem sempre "lícitos" (como as "mutretas"), o que ressalta a excepcionalidade da vida no Brasil sob a ditadura militar.
Mas a persistência dos que ficaram os ajuda a ir vivendo, "de teimoso e de pirraça", bem como a "cachaça". Junto aos mecanismos de sobrevivência, os do divertimento, do encontro, da festa - motivo já presente em canções anteriores (o Carnaval, a música contra o duro cotidiano). Mas também "de pirraça", em tom jocoso, provocador. Porque, sem tudo isso, "ninguém segura esse rojão", outra referência sutil e dúbia, já que a expressão significa aguentar uma situação difícil, mas também a palavra "rojão" nos remete à violência armada do Estado.
Na continuação, o sujeito da canção - de quem o amigo longínquo deve estar sentindo saudades, marcando o tom dessa intimidade própria entre amigos - vai anunciando mais "novidades". Quais são elas? As mesmas de antes! Na verdade, nenhuma novidade: o futebol, a chuva, o sol... "Mas" a notícia principal "o que eu quero é lhe dizer" é a mesma, única: "a coisa aqui tá preta".
E o que há de se fazer para enfrentar as dificuldades, além das "mutretas", agora são "piruetas": a ginástica do artista, como num circo, para "driblar" as adversidades impostas pela ditadura. E essas piruetas, os que ficaram no Brasil vão fazendo "só de birra, só de sarro". Novamente, o tom jocoso, gozador, reforçando a teimosia em resistir, mas também em não esquecer a necessidade da festa (lembremos que birra também é cerveja em italiano, e combina aqui com a cachaça da parte anterior). Como dando maior coesão a essa dicotomia cotidiano duro versus festa, "pirraça" rima com "cachaça", ao mesmo tempo em que os sons de "rr" se repetem em "pirraça", "birra" e "sarro". Por outro lado, a situação política também acarreta dificuldades de trabalho, pois é preciso "cavar o ganha-pão". Lembremos que o próprio Chico Buarque, exilado na Itália, enfrentou a escassez de trabalho, até que decidiu voltar ao Brasil. E toda essa existência problemática exige também o ato de fumar, porque "sem um cigarro/ninguém segura esse rojão". Então, temos os três elementos que ajudam a sobreviver em meio a tempos difíceis: as estratégias para existir ("mutretas", "piruetas"), a festa, a diversão ("cachaça", "birra"), e o apoio do vício ("cigarro").
Na parte seguinte da canção, o protagonista indica que a censura à expressão também se dá de forma econômica: telefonar ao amigo no exterior é muito caro ("a tarifa não tem graça"). Por isso, porque o autor da "carta" está "aflito pra fazer você ficar/a par de tudo que se passa", ele decide enviar a fita. Para contar o quê? Nada! Novamente, a repetição, que vai se tornando irônica e marcando mesmo a presença sutil da censura. Tudo o que ele diz é a presença do futebol, da música, do tempo. Como sempre, ele não pode dar ao amigo exilado os detalhes da situação no País, apenas a sugere. O que ele pode falar, sim, é como se está conseguindo viver em meio a essa conjuntura opressiva. Agora, faz falta "muita careta pra engolir a situação", o que não impede de ter que aguentar, também, com certa resignação, "engolindo cada sapo no caminho". No entanto, sempre o outro lado está presente, solicitando sua presença como contrapeso a esse período difícil. Agora, se trata do amor, pois "sem um carinho/ninguém segura esse rojão". Quarto elemento, portanto, a se somar aos três anteriores para ajudar na sobrevivência: o amor, ao lado das mutretas, da cachaça e do cigarro.
"Meu caro amigo" é um chorinho, gênero musical brasileiro já um pouco esquecido pelo grande público, infelizmente, a não ser pela presença dos muitos músicos que, por todo o País, mantêm a presença dessa música tão importante na história da música brasileira. Gênero que despontou no final do século XIX, anterior à modernização do Brasil e ao próprio rock mencionado na letra de Chico Buarque, por isso mesmo exala desta canção uma impressão de nostalgia, de recordação do amigo distante, da recuperação de uma relação íntima e afetuosa.
Por outro lado, a canção possui uma melodia não só cantada rapidamente, como se tem a impressão, ao escutá-la, de que as notas formam uma espiral, deslocando-se à direita e à esquerda, não em linha reta (subindo e descendo, em notas agudas e graves), o que reforça justamente a noção de desvio da censura e da ação repressiva da ditadura (recurso similar ao utilizado na canção "Acorda, amor"). A não ser nos últimos três versos de cada estrofe (menos o estribilho), que começam com "Que a gente vai levando...", "Que a gente vai cavando..." e "E a gente tá engolindo...", nos quais a melodia segue uma linha uniforme, quase sem variações, destacando, em sua enumeração de atividades, a própria monotonia da vida cotidiana em seu esforço de sobreviver durante a ditadura militar. Daí a ocorrência dos verbos em gerúndio ("levando", "tomando", "cavando", "fumando", "engolindo", e "amando"), a expressão "a gente" (marca do dilema coletivo) e o próprio final da estrofe, sempre fechando-se em uma nota mais grave, de encerramento mesmo, que ao término da canção é a própria despedida: "adeus". Finalmente, a letra aponta outra justificativa para enviar a fita, além da saudade dos amigos: a impossibilidade de escrever, pelo fato de a censura também agir na correspondência: "o correio andou arisco". E a necessidade, sempre premente, de enviar "notícias frescas nesse disco". Aqui, o sujeito da canção se transforma em Chico Buarque ou o compositor se coloca, por fim, na pele e na voz daquele homem que busca no amigo exilado um interlocutor. Tanto é assim, que na letra vão aparecendo os nomes das pessoas reais que compõem a vida de Chico Buarque: a Marieta (Severo, ex-esposa de Chico), a Cecília (mulher de Augusto Boal), o Francis (Hime, compositor, com quem Chico fez 19 canções, incluindo "Meu caro amigo").
Não somente, no final da canção, Chico Buarque se desnuda em protagonista como faz questão de identificar a fita-carta com o próprio disco. Uma correspondência, então, não apenas a Augusto Boal, mas a muitos outros amigos dispersos pelo mundo e a todos os ouvintes, ao público em geral, transformando, assim, um drama e uma mensagem pessoais em algo coletivo (o drama de todos, a mensagem para todos).
Isso, se a censura deixasse:
Se me permitem, vou tentar lhe remeter
Notícias frescas nesse disco
Pois a censura deixou.
A crueldade do amor: "Olhos nos olhos" (1976)
https://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=olhosnos_76.htm
Muitas canções de Chico Buarque foram feitas tendo uma voz feminina como protagonista. É o caso da clássica "Olhos nos olhos", famosa pela interpretação de Maria Bethânia. Aqui, desaparece o tema da ditadura militar, da opressão diária, da vida difícil do trabalhador. Desenha-se uma relação amorosa, centrada no drama da separação, assunto recorrente na obra de Chico.
Já no primeiro verso - "Quando você me deixou, me bem" -, uma ambiguidade: houve o abandono, a separação, mas persiste o carinho ou o amor ("meu bem"). Portanto, já de início há a marca de um sujeito (a mulher) que sofre uma falta.
No segundo verso, outra ambiguidade: "Me disse pra ser feliz e passar bem". Ora, a princípio são votos de que a ex-mulher volte a ser feliz, mas, no final, a expressão "passar bem", como sabemos, muitas vezes denota um desdém, uma raiva ou um ressentimento.
A reação da mulher à separação foi violenta: "Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci". A presença do ciúme, sem maiores explicações, aponta para a possível causa da separação: outra mulher, o que provocou esse ciúme doentio que pode levar a reações "loucas". Trata-se de uma intensidade vivida por essa mulher abandonada, talvez relacionada à intensidade do amor, que infelizmente chegou ao fim, mas também à própria personalidade - apaixonada, intensa - da protagonista da canção.
Ora, aí é quando Chico Buarque introduz outra ambiguidade: "Mas depois, como era de costume,/obedeci". Essa possível paixão desenfreada da mulher que fala na canção, em vez de traduzir uma força de caráter, parece a ter levado ao oposto: a rotina da obediência. Passividade? Resignação?
Na segunda estrofe, o ciúme ou a loucura passa, e ela se dispõe a um novo contato, sem mágoas: "Quando você me quiser rever/já vai me encontrar refeita/pode crer". A ruptura do casal não foi completa, há, ainda uma margem para a amizade, sem rancor. A mulher, que sofreu o abalo da separação, se refaz ou, se quisermos, se faz de novo - se transforma em outra mulher? Não sabemos. Mas logo percebemos que essa retomada do contato com o seu ex-amor não significa algo assim tão tranquilo e sem mágoas:
Olhos nos olhos, quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais
Como um desafio lançado a ele, ela busca a sinceridade, a verdade, a coragem de olhá-lo nos olhos. Aquela "passividade" hipotética passa a ser, aqui, uma possível provocação. Além do mais, se ela "quase enlouqueceu", ele também - aos olhos dela - parece guardar alguma espécie de mágoa por não tê-la mais. Pelo menos, é isso que se depreende do trecho: "quero ver o que você faz/ao sentir que sem você eu passo bem demais". Desafiadora, ela procura anular, de antemão, qualquer sentimento sádico que ele possa ter, gozando com o sofrimento dela após a separação (sadismo que se insinua, também, na canção "Já passou", que veremos mais adiante). Então, esse alguém de "obediência" e "costume" se transforma em uma "nova mulher" (re-feita) que recusa uma relação (agora, de amizade) sadomasoquista. E mais: há uma ironia nessa provocação: se ele disse a ela "passar bem", ela devolve o golpe com "eu passo bem demais". Essa mudança se desenha na própria música: na parte inicial, a melodia e o ritmo são lentos, suaves, dando o tom de uma confissão sem drama. Mas na parte final da segunda estrofe, percebemos que a melodia se encaminha para notas mais agudas, sustentada por uma melodia sem muitas variações, incisiva em sua provocação ("quero ver o que você faz"). Além disso, entre uma estrofe e outra, o que se oculta é o motivo mesmo dessa mudança: entre as referências ao passado ("deixou", "obedeci"...) e a perspectiva de futuro ("quiser", "encontrar"), algo aconteceu. Outro amor?
E essa provocação se aprofunda. Não somente ela passa bem, mas, como ela declara nos versos seguintes:
E que venho até remoçando
Me pego cantando
Sem mais nem porquê
A felicidade gratuita, o rejuvenescimento, a despreocupação indicam que a situação pretérita não era tranquila nem feliz. Parece que, após o término de uma relação na qual ela talvez fosse "obediente", a mulher se dá conta de que, independente, vive melhor. Passagem da dependência à autonomia?
Sim, uma independência que se traduz na liberdade de amores que o tempo trouxe e que ela, não sem uma pitada de vingança, deixa clara:
E tantas águas rolaram
Quantos homens me amaram
Bem mais e melhor que você
Esta parte difere das anteriores pelo tom mais sombrio, triste, da harmonia, que deixa entrever um resquício de mágoa, apesar da nova situação da protagonista. O que contrasta com a noção de positividade que se desprende dos verbos "remoçando" e "cantando". Há, na verdade, uma segunda oposição: entre a situação passada ("rolaram", "amaram") e a presente ("venho", "me pego"). A mudança supõe uma melhoria, mas não sem deixar vestígios da ferida.
Numa sociedade, até então (anos 1970), bem mais machista que agora, a expressão "bem mais e melhor" (quantidade e qualidade) mostra a força da provocação dessa mulher que ousa, agora "independente", declarar ao seu ex-amor que ele é perfeitamente substituível.
E essa declaração vai acompanhada de uma melodia novamente suave, lenta, em tom baixo. É como se, depois da provocação, voltasse a confissão sem atropelos, descansada pela própria situação que a nova vida dá à voz feminina. Mas essa suavidade traz em seu interior, de novo, uma ironia. Essa ironia (a ponto de ser sarcástica?) é reforçada quando a canção retoma a primeira parte musical, mas com outros versos, começando assim: "Quando talvez precisar de mim". Agora, a dependência poderá vir dele, e ela é quem poderá exercer alguma espécie de poder, invertendo o sadismo, num clima que lembra "Mano a mano", de Carlos Gardel e José Razzano, de 1923. Além do mais, há um corte brusco entre a expressão, que pode ser dura para ele, "bem mais e melhor que você" e o imediato convite, abrindo a casa à visita dele. É como se ela disfarçasse o ataque, diluindo-o num tom mais amigável.
Como para diminuir o possível tom sarcástico ou apaziguar as tensões (pois a independência dela a dispõe a ter com ele uma relação de igual para igual), ela declara: "Cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim". Chico Buarque, mais uma vez, embaralha os sentidos e nos provoca dúvidas. A expressão "a casa é sempre sua" pode ser interpretada de várias maneiras. Por um lado, uma fórmula de gentileza, de deixar explícita a vontade de amizade. Por outro lado, o possessivo "sua" pode apontar para um padrão de relações amorosas na sociedade brasileira machista e conservador, aquele no qual o ex-marido sai de casa, deixando a esposa (e os filhos) no imóvel que, na verdade, foi comprado por ele (já que muitas mulheres, num tempo não muito distante, não trabalhavam de forma remunerada). Finalmente, o advérbio "sempre" faz pensar numa continuidade ou, pelo menos, numa passagem (do amor à amizade), mas talvez também na ironia de lembrar que ele, como "proprietário" da casa, tem direito a ela quando bem quiser. O que, mais uma vez, nos confunde: o direito à casa, como posse, dá ao homem o direito a uma relação (de que tipo?) com sua ex-mulher? Voltamos aqui ao dilema dependência-independência, do qual não se sai explicitamente.
Por fim, na última estrofe, a mulher-protagonista da canção repete o desafio:
Olhos nos olhos, quero ver o que você diz
Quero ver como suporta me ver tão feliz
Agora, sim, ela alude diretamente ao possível sofrimento dele ao vê-la feliz sem ele, ao ver como ela pôde ser re-feita - sozinha ou com a ajuda de seus novos amores? A canção volta às notas mais altas, agudas, numa melodia mais pungente, marcando a força do próprio enunciado: uma declaração quase agressiva, como um desabafo depois do sofrimento.
Em todo caso, é visível a transformação que se operou na protagonista, traduzida na própria estrutura da canção. A formação simples em rimas, em todas as estrofes (facilitando o canto), esconde a complexidade da mudança. Na primeira parte, se conta a situação passada, causa de dissabores. Depois, com os verbos no tempo presente, se expõe essa vida feminina em situação de gozo e paz, já longe do homem. Por fim, nos outros versos, há verbos num tempo futuro (como rever e precisar), anunciando um possível confronto no qual ela se mostrará, quem sabe, vitoriosa. Vingança? Talvez, sim.
Por outra parte, trata-se da transformação da mulher na sociedade brasileira do século XX, abraçando um papel cada vez mais independente e autônomo, tanto em termos de trabalho como dos costumes em geral. Mudança da mulher que força a mudança de toda a sociedade, e para a qual Chico Buarque não é apenas um observador, mas um artista ativo, como testemunham tantas outras canções de Chico a partir de uma voz feminina, um modo de falar das "minorias" (ou maiorias excluídas, como foi o caso das mulheres), das quais fazem parte também os que praticam outras sexualidades, além dos índios, os negros e aquelas figuras marginais até já meio esquecidas, como o malandro, tema da próxima canção.
Malandragens e mercado: "Homenagem ao malandro" (1977)
https://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=homenage_77.htm
As canções de Chico Buarque estão povoadas de figuras marginais, como a prostituta, o delinquente menor de idade, a mulher execrada (como "Geni") e aquele que, longe das convenções e da estrutura social de trabalho, salário e casamento, marcou época, sobretudo no Rio de Janeiro: o malandro. Personagem social tão importante para Chico, que este compôs toda uma "Ópera do malandro" (1979), da qual faz parte esta canção, "Homenagem ao malandro".
O samba já começa com uma declaração do autor:
Eu fui fazer um samba em homenagem
À nata da malandragem
Que conheço de outros carnavais
A malandragem, aqui, se refere não somente ao boêmio que não tem trabalho fixo, talvez nem residência definitiva, que sobrevive sem se apegar às formas mais comuns de sociabilidade (o casamento, o trabalho), mas também, provavelmente, aos compositores populares que, desde muito tempo, povoaram o Rio de Janeiro e a música popular e com os quais, seguramente, Chico Buarque se identifica ou admira. No entanto, a expressão "de outros carnavais" parece colocar certa barreira entre o compositor e a malandragem, pois eles só se encontram nessa época, uma vez por ano, ocasião (o Carnaval) em que todos - não só os malandros - fogem das convenções, do trabalho e do dia a dia comum para mergulhar na festa e na boemia.
Tanto é assim, que o narrador da canção não vive entre os malandros, ele vai até eles - ou até onde ele imagina que a vive a malandragem -, mas se decepciona:
Eu fui à Lapa e perdi a viagem
Que aquela tal malandragem
Não existe mais
O bairro da Lapa, no Rio de Janeiro, tradicionalmente, abrigou lugares de vida noturna e música, por onde circulava o malandro em bares, gafieiras, prostíbulos. O sujeito que fala na canção parece buscar algo que ficou no passado, que em sua época (final dos anos 1970) já havia desaparecido - fruto, talvez, do "crescimento econômico", do desenvolvimento do Brasil em meio a uma ditadura militar e à internacionalização da economia, do peso da censura e da repressão a tudo o que não se enquadrasse na "moral" militar.
Essa sensação de uma realidade já vencida, agora inexistente, se dá no desenho melódico, que apenas "sobe" e logo "desce" para notas mais graves, descansando no final de cada estrofe em "carnavais" e "mais" (formando a rima). São como declarações com ponto-final. Não é assim, entretanto, na estrofe seguinte, na qual se mostra a situação atual, sem aquela malandragem de antigamente.
Na segunda parte da canção, com efeito, vemos que, se esse malandro - o "autêntico" - parece ter desaparecido, outros "malandros" surgiram no País:
Agora já não é normal
o que dá de malandro regular, profissional
No primeiro verso, uma ironia: "não é normal" o "malandro regular, profissional". Ora, quem era "anormal" - fora do normal, do comum, das regras sociais - era o malandro "autêntico", o frequentador da Lapa. O "malandro" atual, se ele é "regular, profissional", ele é perfeitamente "normal" - o avesso do autêntico malandro, que nem era regular nem tinha uma profissão estabelecida. A crítica ataca os que se enquadram na acepção mais recente de malandro: o que rouba, desvia verbas, faz manobras políticas, realiza atividades ilícitas - e, óbvio, não frequenta a Lapa nem é compositor. O "malandro regular" é cheio de irregularidades. Por outro lado, também podemos pensar que a autêntica malandragem era "normal" no sentido de não afetar a sociedade, a economia ou a política do País, enquanto a "malandragem" atual - a "oficial" - afeta diretamente a política, a moral, o poder, a justiça.
Este "malandro" atual é retratado na canção como aquele que se utiliza da política, do poder, da mídia, de sua classe social e do dinheiro para exercer sua "malandragem":
Malandro com aparato de malandro oficial
Malandro candidato a malandro federal
Malandro com retrato na coluna social
Malandro com contrato, com gravata e capital
E, ao contrário do verdadeiro malandro - o boêmio da Lapa -, que muitas vezes tinha problemas de sobrevivência e, até mesmo, com a Polícia, o "malandro" atual, em sua impunidade "oficial" e sem dificuldades de sobreviver, "nunca se dá mal": é escorado pela política ("malandro oficial", "federal"), pela mídia ("retrato na coluna social"), pelo poder econômico ("capital"). É sempre, reiteradamente na letra, um "malandro com", possuidor de algo, enquanto o antigo malandro permaneceu sem: sem capital, sem gravata, sem automóvel, sem poder, sem prestígio.
Nesta parte, a melodia se repete, insistindo na figura do falso malandro, sem ser concluída, mas ficando em aberto no final de cada verso (com as rimas em "al"). Há uma coerência entre essa insistência, no plano sonoro, e a repetição ostensiva da palavra "malandro". Isso tudo sugere, pela própria estrutura harmônica (os acordes desses finais de versos são todos de tensão, exigindo um próximo acorde de resolução), a realidade da corrupção e do dinheiro que não tem freios. A canção só voltará a descansar nos acordes finais da parte seguinte, como em "tralha e tal" e "Central", como veremos a seguir.
Mas será que o autêntico malandro de outrora realmente desapareceu? Na verdade, não. É o que diz o narrador da canção:
Mas o malandro pra valer
Não espalha
Aposentou a navalha
Tem mulher e filho e tralha e tal
O malandro autêntico, "pra valer", deixou de ser o marginal de outrora, cuja valentia o fazia enfrentar as brigas noturnas. Abdicou de sua originalidade, sua marginalidade, do poder de fazer justiça pelas próprias mãos. Além do mais, se casou, tem filhos, adquiriu bens ("tralha")... Passou a ser um integrado ao sistema, à estrutura social (casado, pai, pacífico...). O que não deixa de aborrecer o narrador da canção, que pede: "não espalha", não contem o que aconteceu com o antigo malandro, como se fosse uma decadência ou mesmo o desaparecimento de uma época. Nesse ponto, podemos sentir certa nostalgia na voz do narrador. Não há mais boemia nem independência.
Mas o "desastre" é ainda pior:
Dizem as más línguas que ele até trabalha
Mora lá longe e chacoalha
Num trem da Central
O antigo malandro agora "trabalha", pecado máximo em se tratando de um autêntico malandro! Por isso mesmo, o narrador se refere às "más línguas", más exatamente por divulgarem a nova condição - rebaixada, humilhante - do antigo malandro, por não guardarem segredo de sua decadência (segredo para cuja manutenção o narrador da canção fez o pedido na estrofe anterior: "não espalha").
Como vimos, a canção volta a ter acordes de resolução apenas nesta parte final (em "tralha e tal" e "Central"). Essa resolução, quando a música volta ao nível inicial, reforça a ideia da resignação, do conformismo dessa nova vida do antigo malandro, agora presa ao mercado de trabalho como engrenagem daquela economia na qual quem manda é o capital.
O ex-malandro sucumbiu, finalmente, à nova realidade, pois tem que se submeter ao trabalho assalariado, já que não é político nem empresário. Antes, fora do mercado, agora se inseriu nele à força, por obra da modernização do País.
Além disso, o ex-malandro "mora lá longe", na periferia da grande cidade, lá onde a marginalidade mais pesada, aliada ao tráfico de drogas, vai corroendo aquela poética vida simples cantada nos versos da música popular, lugar que, a partir de então, com a deterioração social, passará a ser palco de uma criminalidade ostensiva. Por isso, o ex-malandro "chacoalha no trem da Central": é um empregado com poucos recursos, não tem a possibilidade de possuir um automóvel (como os "malandros" atuais, de gravata).
Um resultado do "milagre econômico" da ditadura militar? Ou a consequência inevitável do progresso do capitalismo brasileiro? Em todo caso, uma das consequências, sim, foi o aumento do número de crianças vivendo nas ruas, tema da próxima canção.
Sinal fechado para a infância: "Pivete" (1978)
https://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=pivete_78.htm
Um ano antes da Lei da Anistia - passo decisivo rumo à abertura política desenhada pelo governo militar -, Chico Buarque compõe "Pivete", expondo as desigualdades sociais de um país cujo lema oficial difundido pela ditadura militar era "Ninguém segura este país", baseado no falso "milagre econômico", um crescimento que não tornava o Brasil mais justo, ao contrário, pioravam os índices sociais. Justamente nesses anos, começou um amplo movimento sindicalista de protesto contra a política econômica. E uma das consequências dessa política foi justamente o aumento da miséria e do número de pessoas morando na rua, inclusive muitas crianças, que acabavam se tornando pequenos marginais. É a história contada em "Pivete", palavra que significa não somente "menino", mas criança delinquente, moradora de rua.
A canção traz uma espécie de "epígrafe", antes do início da letra propriamente dita, que é uma fala de um pivete do Rio de Janeiro, em sua forma de abordar os turistas estrangeiros: "Monsieur have money per mangiare?", misturando francês ("monsieur"), inglês ("have money") e italiano ("per mangiare"): "O senhor tem um dinheiro para [eu] comer?". Somente nesta pequena introdução, já se esboça a situação do País: uma economia cada vez mais atrelada ao capital estrangeiro e que produz miséria, crianças na rua com fome.
A canção se inicia, então, apresentando o pivete:
No sinal fechado
Ele vende chiclete
Capricha na flanela
E se chama Pelé.
Apenas nesses quatro primeiros versos, já toda uma situação social é exposta. Em primeiro lugar, o pivete se encontra na rua, em vez de estar na escola ou mesmo em casa, brincando, em horário extraescolar. Nem uma coisa nem outra, pois ele está trabalhando ("ele vende chiclete"), e o trabalho infantil é uma prática ilegal no Brasil. Em segundo lugar, está em uma zona de perigo, bem no meio da rua ("No sinal fechado"). Não podemos deixar de pensar, também, na ideia de interdição, de obstáculo: a vida normal, com escola e brincadeiras com outras crianças, mais o convívio com a família, está vedada a esta criança. Aqui, não há possibilidade de uma mobilidade social. Em terceiro lugar, a criança nem trabalha em uma empresa ou casa de família, onde, pelo menos, poderia ter algum apoio, mas sozinho no meio da rua, realizando qualquer atividade que possa ajudar na sobrevivência (vender chicletes, limpar os vidros dos carros). A "flanela" nos remete ao "flanelinha", atividade comum nas cidades do País. Por último, ele "se chama Pelé", apelido comum a muitas crianças negras no País, que jogam o futebol desde pequenas. Criança negra e pobre: duplamente exposta ao estigma social, ao preconceito e à exclusão.
Também não se pode esquecer a presença maciça dos meios de comunicação que, desde o início da ditadura militar, em 1964, desenvolveram uma ampla difusão do futebol no País, o que ajudou a formar, sem dúvida, a figura do jogador de futebol como pop star, hoje com salários milionários (como os atores de cinema ou os cantores).
A segunda estrofe diz:
Pinta na janela
Batalha algum trocado
Aponta um canivete
E até
Temos, aqui, uma terceira atividade (além da venda de algo barato - chicletes - e da limpeza dos vidros dos carros), que é simplesmente pedir dinheiro aos motoristas dos carros. Nem que para isso seja necessária alguma violência (apontar o canivete). Violência, essa, que ainda está longe (nessa época, final dos anos 1970) da atual, quando os canivetes nem existem mais e foram substituídos por armas de fogo (como não existe mais a navalha, usada pelo malandro, citada na canção que já vimos). O último verso aponta para uma fuga rápida, o moleque já estando com o dinheiro na mão.
Agora, na terceira estrofe, o espaço muda do local de "trabalho" (o meio da rua) para as ruas do Rio de Janeiro, onde o pivete anda sem rumo, sem objetivo definido - sem lar (o que é reforçado pela troca de verbos: "dobra", "desce", "se manda", "sobe"). Além disso, a expressão "se manda" também nos faz pensar na fuga, após o furto com o canivete. No final, a referência à favela do Morro do Borel, o tipo de lugar onde vivem muitos pivetes pobres, emblema da pobreza no País.
Dobra a Carioca, olerê
Desce a Frei Caneca, olará
Se manda pra Tijuca
Sobe o Borel
E é no "morro" - antes, na música brasileira, sinônimo de lugar simples e fonte de músicos, agora ícone de lugar violento e fonte de criminosos - que se desenvolve o tráfico de drogas. Canção profética, que há mais de 30 anos alude a um dos fenômenos de maior deterioração social do Brasil: o crescimento do tráfico de drogas associado à pobreza nos morros, não só do Rio de Janeiro, mas na periferia de todas as grandes cidades. Assim, na estrofe seguinte, o pivete
Meio se maloca
Agita numa boca
Descola uma mutuca
E um papel
No morro, ele se esconde ("se maloca", se oculta como um índio), busca maconha ("uma mutuca") numa boca-de-fumo (o ponto-de-venda da droga) e o papel para enrolar o cigarro.
Assim como a música, o Carnaval, a cachaça e o cigarro, em canções anteriores, combatem a dureza do cotidiano, aqui também o moleque se entrega ao vício para sonhar com uma vida diferente, com uma namorada ("mina"), e esporte e lazer, como o surfe ("prancha, parafina"):
Sonha aquela mina, olerê
Prancha, parafina, olará
Dorme gente fina
Acorda pinel
Por um lado, ele sonha com essa outra vida, que inclui o amor, o sexo, o lazer e um espaço social onde circula o dinheiro (aqui, tudo reforçado pelas rimas com "mina", "parafina" e "fina".) Por outro, no entanto, apesar de em sonhos ele se transformar em "alguém na vida", afastado da pobreza ("dorme gente fina"), o resultado é a perda da consciência, dos sentidos: uma ressaca da droga ("acorda pinel").
O sonho acabou. O dia seguinte devolve o pivete à dura realidade da rua, onde ele "zanza na sarjeta": imagem dupla, da miséria e da falta de perspectivas, de caminho a seguir. Para tratar de sobreviver, a criança "fatura uma besteira".
E os últimos dois versos dessa estrofe terminam com uma alusão histórica:
E tem as pernas
tortas
E se chama Mané
Trata-se, evidentemente, de Mané Garrincha, um dos maiores jogadores de futebol do Brasil, de quem, aliás, Chico Buarque foi amigo, tendo convivido com ele (e com Elza Soares, a esposa de Garrincha na época) quando esteve exilado na Itália, no início dos anos 1970. Mané Garrincha justamente era conhecido por suas pernas tortas, alvo de não poucas zombarias e críticas sobre sua "incapacidade" ou "impossibilidade" de se tornar um bom jogador. Como "Pelé", "Mané" também é um apelido (ou, pelo menos, era) alusivo a grandes ídolos populares. Mas também se referem ("Pelé" e "Mané", cuja rima os aproxima) às classes sociais mais baixas - de onde saíram os dois jogadores - e à possibilidade de um pivete que joga futebol um dia se tornar, também ele, um ídolo, uma pessoa "gente fina".
Não é o caso do pivete da canção, que não consegue a ascensão social. Seu refúgio, portanto, é na delinquência:
Arromba uma porta
Faz ligação direta
Engata uma primeira
E até
Do pequeno furto com o canivete, o pivete parte para o roubo de um carro, com técnicas que já aprendeu na rua (como a "ligação direta"). Repete-se o passeio do moleque, agora dirigindo um automóvel em via proibida: dupla contravenção, mas também, já que seu caminho (o caminho de um pivete pobre, de rua) está "interditado", e que está excluído da vida normal, só lhe resta uma passagem alternativa, marginal: "na contramão".
Dobra a Carioca, olerê
Desce a Frei Caneca, olará
Se manda pra Tijuca
Na contramão
Assim como o sonho não o transformou em "gente fina", apenas lhe trouxe uma ressaca e o deixou "pinel", agora o passeio de carro tampouco
proporcionou alguma alegria, mas problemas, já que, por inexperiência na direção, houve um acidente:
Dança paralama
Já era parachoque
Agora ele se chama
Emersão (Airtão)
O pivete, então, apesar de bater como carro e perder o paralama e o parachoque, se sente, em seu sonho de menino, o Emersão (Emerson Fittipaldi) ou o Airtão (Ayrton Senna). Novamente, a presença da mídia, que fabrica esses ídolos populares de um esporte, aliás, totalmente inacessível ao moleque.
Mas, para fugir dessa vida diária difícil, o pivete não hesita em "sonhar acordado", dirigindo tal qual um piloto de Fórmula-1, enfrentando, em sua aventura de criança, qualquer perigo:
Sobe no passeio, olerê
Pega no Recreio, olará
Não se liga em freio
Nem direção
Finalmente, a última parte da canção vai misturando os elementos das estrofes anteriores, dando a ideia de continuação, de permanência desse tipo de vida que, no final das contas, apesar de tantos passeios, até de automóvel, não tem saída:
No sinal fechado
Ele transa chiclete
E se chama pivete
E pinta na janela
Capricha na flanela
Descola uma bereta
Batalha na sarjeta
E tem as pernas tortas
Aqui, Chico Buarque utiliza um recurso já visto em "Construção": a repetição de versos anteriores, concentrados agora numa estrofe maior, com pequenas alterações - por exemplo, o pivete "transa chiclete" (em vez de "vende"); "descola uma bereta" (uma arma de fogo, em vez do canivete); e "batalha na sarjeta" (em vez de "zanza na sarjeta"). É como um resumo da vida do moleque, exposta nas outras partes da canção, mas também uma forma de indicar a falta de perspectivas.
A canção toda se estrutura em versos simples e curtos, com rimas fáceis, como a indicar a própria simplicidade (no sentido, aqui, de precariedade) da vida do personagem. Coerente com isso é o uso de expressões populares, gírias, que destoam de outras letras de Chico Buarque, mais sofisticadas. Aqui, por exemplo, temos "pinta", "batalha", "se manda", "agita", "descola"...
A monotonia dessa vida diariamente na rua se traduz nos verbos no tempo presente que encerram toda a ação, sem maiores adornos ou complementos, por exemplo: "vende", "capricha", "apronta", "dorme", etc. É uma enumeração, reforçada pelo conector "e", que se estende por toda a música, juntamente com a própria melodia, que é repetitiva, assim como a estrutura das estrofes.
A única variação é entre o primeiro grupo de duas estrofes e o segundo grupo, de três. Este tem a melodia mais dinâmica, indicando as próprias voltas que o pivete dá, mas a seguir a monotonia recomeça, repetindo os versos curtos.
O final da música insiste nessa repetição, dando a entender que essa situação do pivete continua, não se apresentando nenhuma solução nem mudança à vista no futuro.
Curioso é observar como Chico Buarque coloca a realidade séria dessa criança num samba alegre. É como um eufemismo, quando se usa uma palavra querendo ignificar o seu contrário, por exemplo, num dia de extrema chuva e frio: "Tempo bom, hein?". Do mesmo modo, nesta canção, para tratar de um tema tão dramático, Chico usa um tom alegre.
Mas, na verdade, em nenhum verso existe uma possibilidade real e concreta de uma mudança na vida do pivete. Haverá essa possibilidade em canções futuras de Chico Buarque? Em que Brasil?
O adeus a um país: "Bye, bye, Brasil" (1979)
https://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=byebyebr_79.htm
Ano decisivo na história brasileira, 1979 marcou a abertura democrática gradual com a promulgação da Lei da Anistia, que permitiu a volta dos exilados políticos. No mesmo ano, foi lançado o filme "Bye, bye, Brasil", de Cacá Diegues, com a música homônima composta por Roberto Menescal e letra de Chico Buarque. Justamente, a canção faz uma espécie de balanço do País na encruzilhada do fim da ditadura militar (que oficialmente só terminou em 1985), um futuro incerto e um passado carregado de feridas. Não por acaso, um slogan da ditadura era: "Brasil, ame-o ou deixe-o", e o protagonista desta canção, de certa forma, se despede deste país.
Embora a canção tenha, obviamente, muitos significados relacionados com o próprio filme, é possível tomar sua letra forma independente para pensar a cultura e a história brasileiras.
Na criação de Chico Buarque, há um sujeito que fala a partir de um deslocamento: ele está fora de casa, fora de sua cidade, longe da família. Uma espécie de exilado interno ou migrante. E que tenta se comunicar com seus próximos, ainda que com dificuldades:
Oi, coração
Não dá pra falar muito não
Espera passar o avião
De cara, encontramos alguém que tenta conversar com uma pessoa próxima, querida (um amor?), um contato íntimo, afetuoso, mas marcado pela distância (o telefone). Mas há obstáculos para a compreensão, como o ruído do avião. Já aqui, nos primeiros três versos, aparece um conflito sem solução ao longo da canção: o deslocamento, a perda de um lugar do sujeito, talvez de sua identidade; o consequente isolamento, a falta de vínculos; o desenvolvimento do País em sua dimensão tecnológica, afetando essas relações pessoais. Entretanto, o sujeito tenta superar o isolamento planejando um futuro encontro:
Assim que o inverno passar
Eu acho que vou te buscar
Apesar de estar implícita a ideia de exílio, sobretudo pela referência ao inverno, na verdade, ao longo da canção, vamos percebendo que este "inverno" pode significar o Sul, e o sujeito está mesmo no Brasil, mas em suas regiões mais quentes:
Aqui tá fazendo calor
Deu pane no ventilador
O que se confirma nos versos seguintes:
Já tem fliperama em Macau
Tomei a costeira em Belém do Pará
Por um lado, há um estranhamento inicial com a aparição de "Macau" na canção - uma antiga colônia portuguesa na China onde ainda se fala o português -, o que reforçaria a noção de exílio e deslocamento. Mas na verdade se trata da cidade de Macau, no litoral do Rio Grande do Norte. Por isso também a presença de "Belém do Pará". O sujeito da canção viaja, sim, mas pelo interior do Brasil. E se depara com as consequências desastrosas da política econômica - no caso específico, energética - da ditadura militar, que afeta o meio ambiente:
Puseram uma usina no mar
Talvez fique ruim pra pescar
Meu amor
Chico Buarque pode estar se referindo à usina hidrelétrica de Tucuruí, a maior do País naquele momento, construída de 1976 a 1984. Ou ainda à refinaria de petróleo na Base de Tapanã, no Ceará. Novamente, nesta canção, se mesclam o universo individual ("meu amor") e o social. Mas neste caso não especificamente o problema da desigualdade social - como se vê em outras canções -, mas o resultado de uma política econômica que vai devastando o País. Devastação do ambiente ("talvez fique ruim pra pescar"), mas também das práticas democráticas, já que a construção dessas usinas a partir da ditadura militar se deu - e se dá até hoje - sem a participação real e efetiva da população, que carece de informações sobre os reais impactos ambientais das obras (por isso, o advérbio "talvez", mostrando a incerteza do personagem). Além disso, nessa época o Brasil foi se abrindo ainda mais, de modo indiscriminado, ao capital estrangeiro. O que tem consequências nos quatro cantos do território e em todas as suas comunidades e etnias:
No Tocantins
O chefe dos parintintins
Vidrou na minha calça Lee
O que já se vinha desenhando como superposição entre o local e o estrangeiro aqui se torna exacerbado. Justamente numa época em que se vinha discutindo no Brasil - desde os anos 1960 - a possibilidade de uma cultura "nacional", Chico Buarque mescla, nesses versos, o "autenticamente nacional" - os índios parintintins - a um produto do mercado internacional - a calça Lee. É mais: os índios adoram essa calça, apontando a curiosidade e o desejo que sempre tiveram de se apropriarem de certos produtos do homem branco.
Temos, então, uma série de aspectos importantes. Primeiro, a internacionalização da economia brasileira (simbolizada pela calça Lee). Segundo, a presença, ainda - na economia mais industrial, internacionalizada e moderna - de povos indígenas (os parintintins). Terceiro, a extensão desse processo econômico a todos os cantos do País, não só as Regiões Sudeste e Sul (daí a presença do Tocantins, hoje um Estado). Quarto, a "integração" dos povos indígenas à cultura brasileira, o que é um tema polêmico, pois, para Darcy Ribeiro, por exemplo, nunca houve uma integração total, mas sim a extrema resistência dos povos indígenas brasileiros ao avanço da cultura ocidental, do homem branco.
Quanto a essa expansão do processo econômico por todo o País, ele se dá não exatamente por um enriquecimento cultural, mas passa pelo mercado:
Eu vi uns patins pra você
Eu vi um Brasil na tevê
Os "patins", assim como a "calça Lee", não são exatamente processos culturais, mas produtos importados. O Brasil vai incorporando, assim - a partir, sobretudo, da ditadura militar - o estrangeiro pelo mercado, não pela cultura. Junto a isso, há o desenvolvimento dos meios de comunicação (lembremos que a Rede Globo foi fundada em 1965), e a realidade, agora, passa cada vez mais pela televisão. Então, o personagem da canção vê "um Brasil na tevê". É curioso observar que ele não vê o Brasil, mas um Brasil. Há certa indefinição, ambiguidade. Se há um Brasil na televisão, pode haver outros fora dele, como por exemplo, o Brasil ou os Brasis que o sujeito da canção vê durante sua viagem e que não aparecem na televisão. O País construído na mídia, portanto (como no programa Amaral Neto, o Repórter, da época) não é o mesmo que o País real, visto de perto.
E nesse país real, o personagem da canção não se sente em seu lugar, não constrói sua identidade. Ao contrário:
Capaz de cair um toró
Estou me sentindo tão só
Oh, tenha dó de mim
Como se não bastassem esse desenraizamento e a perda de identidade cultural, o protagonista em viagem, na verdade, também está à procura de trabalho. Por isso, conta pelo telefone que:
Pintou uma chance legal
Um lance lá na capital
Nem tem que ter ginasial
Meu amor
Tripla caracterização da realidade brasileira da época: o desemprego; o baixo nível educacional; a migração interna. Ao contrário daquele "Brasil na tevê", a realidade é dura.
Mas nesse percurso pelo País também há espaço para a diversão, para o esquecimento momentâneo das dificuldades. O protagonista, que está sozinho, vai a um lugar chamado "Tabariz", que pode ser uma referência a uma casa noturna do mesmo nome que havia em Copacabana (Rio de Janeiro) ou mesmo a um famoso bordel que existiu em Maceió no século XIX.
No Tabariz
O som é que nem os Bee Gees
Dancei com uma dona infeliz
Que tem um tufão nos quadris
E, novamente, a presença de
signos de cultura estrangeira (os Bee Gees), mas aqui filtrados pela
interpretação de um grupo musical local, apontando para outra característica da
cultura brasileira, que é a apropriação - às vezes, inclusive, a mera imitação
- de elementos culturais de outros países, mas também a presença de
estrangeiros (turistas? Investidores?), como consta na continuação da letra:
"tem um japonês trás de mim", ou seja, provavelmente esperando, ele também,
para telefonar.
O deslocamento do personagem continua, sempre pelas regiões mais pobres e vastas (Nordeste e Norte, como a Amazônia), que justamente começaram a ser mais exploradas a partir dos anos 1970 (com, por exemplo, a construção da Transamazônica) e que simbolizam, justamente, a entrada de multinacionais (na Zona Franca de Manaus) e a abertura de novas fontes de trabalho.
Eu vou dar um pulo em Manaus
Aqui tá quarenta e dois graus
O sol nunca mais vai se pôr
A marca de identidade "tropical", sempre aplicada ao Brasil, aqui encontra seu lugar nas regiões Norte e Nordeste, mas não apresentada de forma exótica ou agradável. Ao contrário, faz muito calor, dando a impressão de que será eterno ("o Sol nunca mais vai se pôr"), e o personagem, por fim, tem nostalgia de outro lugar:
Eu tenho saudades da nossa canção
Saudades de roça e sertão
Bom mesmo é ter um caminhão
Meu amor
São saudades de um espaço e de um tempo: "roça e sertão", talvez em oposição a mar e floresta (o litoral, a Amazônia); "nossa canção", que remete a uma relação amorosa, a uma época que já passou. Agora, o sujeito da canção vagueia pelo País, sem rumo, sem companhia. Mas não apenas isso. Pois a saudade de "roça e sertão" aponta para a nostalgia de um mundo camponês, ainda não atingido pela modernização e pela internacionalização da economia brasileira, o que ocorrerá com rapidez vertiginosa a partir da ditadura militar. Saudade de um mundo no qual ainda não tinham chegado a tecnologia, as usinas, o próprio avião. Por outro lado, destinado a perambular pelas estradas do País buscando meios de sobrevivência, para o protagonista da letra "bom mesmo é ter um caminhão". Mas isso seria possível para os que detêm recursos, meios de produção, capital ou altos salários. No caso dele, não passa de um desejo de difícil satisfação. Em todo o caso, já que ele tem que praticar uma errância pelo Brasil, pelo menos que essa errância lhe desse o sustento: um caminhão para realizar transportes.
Agora, a canção entra em sua segunda parte. Na primeira, o sujeito da canção começa cumprimentando seu amor pelo telefone ("Oi, coração"). Já a segunda parte, como que fechando um ciclo, se inicia com uma despedida:
Baby, bye bye
Abraços na mãe e no pai
Eu acho que vou desligar
As fichas já vão terminar
Se há, nesta canção, uma pergunta pela identidade - na qual o personagem busca um lugar que sinta como seu, uma realidade que o acolha -, no caso de um Brasil a ser buscado ou construído, é sintomático que apareçam termos em inglês ("Baby, bye, bye"). Pois investigar a cultura e a realidade brasileiras necessariamente requer o exame das influências culturais estrangeiras, no campo econômico, mas também no social e cultural. Já havia escrito Oswald de Andrade: "Tupi or not tupi. That is the question". No entanto, a partir da ditadura militar, se acelerou justamente a entrada dos capitais estrangeiros e da língua inglesa - a língua franca, a mais poderosa do Ocidente - no Brasil, inclusive pela enxurrada de filmes e de músicas estadunidenses.
Então, o personagem da canção, que vai se despedindo, seguirá viagem:
Eu vou me mandar de trenó
Pra Rua do Sol, Maceió
Peguei uma doença em Ilhéus
Mas já tô quase bom
Em março vou pro Ceará
Com a benção do meu orixá
Eu acho bauxita por lá
Meu amor
A não-fixação em nenhum lugar (Maceió, Ilhéus, Ceará), as vicissitudes da viagem (uma doença) e a procura constante pela sobrevivência (a possibilidade de encontrar bauxita, com a qual se fabrica o alumínio) são as marcas desse périplo incerto, tal qual o próprio destino do País. A presença da bauxita, matéria-prima para a fabricação do alumínio, faz alusão, também, às multinacionais no País, como a Alcoa, que se instalou no Brasil nos anos 1960, tendo indústrias no Norte e no Nordeste. A correspondência sonora entre "bauxita" e "orixá" reapresenta a mescla cultural brasileira, não só entre o "nacional" e o "estrangeiro", mas também as religiões de base africana, que não deixam de se misturar, por sua vez, ao catolicismo predominante no Brasil, no fenômeno conhecido como sincretismo.
É interessante observar que, em toda a letra, Chico cita lugares justamente do Norte-Nordeste, nenhum do Sudeste ou do Sul, que são as regiões mais ricas do Brasil. À precariedade social do personagem corresponde a maior pobreza regional.
E a canção se encaminha para o fim:
Bye bye, Brasil
A última ficha caiu
Aqui, pela primeira vez, a despedida em inglês (antes dirigida ao seu "amor" (Baby) se dirige ao Brasil - aliás, é o título da música, um tipo, talvez, de resumo, uma despedida de um país que já não existe mais. Para completar, "a última ficha caiu", lida na gíria já consagrada, nos faz pensar na percepção dessa mudança da realidade brasileira que se deu a partir dos anos 1960. Mas também "a última ficha" tem a ver com a falta de recursos do personagem, que tem saudades não só "da nossa canção", "de roça e sertão", mas dos parentes (ou amigos):
Eu penso em vocês night and day
Explica que tá tudo okay
Eu só ando dentro da lei
De novo, a expressão se apresenta em inglês, reforçando a entrada de anglicismos no português falado no Brasil - tendência que se acelerou brutalmente a partir dos anos 1980. Por via das dúvidas, o personagem manda um recado (aos pais?) esclarecendo que sua situação precária e errante não o empurrou para o crime. É um migrante, mas "dentro da lei". Ou talvez ele se refira a uma situação anterior, da qual escapou (um "subversivo" perseguido pela ditadura militar?). Esse migrante, em busca de trabalho e de um lugar, também sonha com o retorno - sonho de muitos migrantes:
Eu quero voltar, podes crer
Eu vi um Brasil na tevê
Esse desejo de retorno também se configura implicitamente com o desejo de muitos exilados políticos, aqueles que foram expulsos ou partiram por iniciativa própria antes de serem empurrados pela ditadura militar. Se na canção "Vai passar", Chico Buarque descreve os exilados que perambulavam pelo continente, aqui o personagem é exilado dentro do próprio País, num exílio econômico e social.
A vontade de retornar vem apoiada numa imagem de Brasil, que o personagem vê na TV, que, como já vimos, deforma a realidade. Portanto, a ideia de volta pode estar associada também a uma ilusão. Além do mais, se essa "volta" significa a recuperação do Brasil tal como ele era antes de 1964, é um desejo vencido e desiludido pela realidade. Realidade esta que coloca a consecução do desejo sempre em risco, como as doenças que o personagem contrai, antes em Ilhéus (Bahia), agora no Pará:
Peguei uma doença em Belém
Agora já tá tudo bem
Lembremos que a expressão "peguei uma doença" também pode se referir às doenças sexualmente transmissíveis, justamente por alguém que vagueia de cidade em cidade, em cabarés e bares onde, às vezes, se pode dançar com uma mulher "que tem um tufão nos quadris", metáfora explicitamente sexual.
Curiosa, aqui, é a quase repetição de versos na letra de Chico Buarque, à maneira de "Construção": antes, "doença em Ilhéus"; agora, "em Belém"; antes, a despedida era a "Baby"; agora, ao "Brasil"; nos dois tempos, o personagem vê "um Brasil na TV". O modo como o migrante/viajante conta sua trajetória é, ao mesmo tempo, lembrando o passado e afirmando um desejo presente, como a própria maneira de enxergar o País, mirando o passado recente (naquela época) e o futuro indefinido. Tudo isso numa velocidade que vai aumentando, pois "a última ficha caiu" e, portanto, "a ligação tá no fim". Além disso, o personagem repete: "tem um japonês trás de mim". Turista? Investidor? Alto funcionário de multinacional? O que quer que seja, o japonês reforça a ideia de transnacionalização da economia brasileira. Não é à toa que o personagem, em meio ao que está contando, reflete: "Aquela aquarela mudou". Referência à "Aquarela do Brasil", composição de Ary Barroso de 1939, uma época em que havia no Brasil a forte presença de um sentimento "nacional" que buscava resgatar e definir uma "identidade brasileira", uma das marcas do governo de Getúlio Vargas. No entanto, como diz o personagem da letra de Chico Buarque, aquele Brasil já não é o mesmo.
Essa rápida reflexão acontece em meio a uma enumeração de fatos, sentimentos e desejos, já que a ligação vai terminar, e o viajante tem pressa:
Na estrada peguei uma cor
Capaz de cair um toró
Estou me sentindo um jiló
Eu tenho tesão é no mar
Assim que o inverno passar
Bateu uma saudade de ti
Tô a fim de encarar um siri
Podemos ver que, como não se trata de uma viagem "de férias", a expressão "peguei uma cor" é irônica, não se referindo exatamente a um bronzeado buscado, mas a uma contingência da própria errância. O oposto de tanto sol tropical é o "toró" que pode cair. Num caso ou noutro, o personagem se sente "um peixe fora d'água", pois ele tem "tesão é no mar". E confessa seu estado emocional: "estou me sentindo um jiló". As últimas confissões recaem numa saudade e num desejo: o de comer siri, coerente com o "mar" reivindicado antes como ligado ao desejo, contar a aridez de tanto sol, talvez, dos sertões por onde ele passou.
O final da canção, aludindo ao universo das crenças religiosas populares (antes, o "orixá", agora "Nosso Senhor"), se aventura como aberto, uma definição de país inconclusa, um futuro totalmente incerto:
Com a benção de
Nosso Senhor
O sol nunca mais vai se pôr
Mas também podemos desconectar os dois últimos versos, ligando o penúltimo ao anterior, formando um bloco:
Tô a fim de encarar um siri
Com a benção de Nosso Senhor
Nesse caso, se reforça a crença na consecução do desejo. E fica por último, isolado, o verso que deixa o futuro aberto:
O sol nunca mais vai se pôr.
"Bye, bye, Brasil" guarda uma semelhança com a canção "Pivete", do ano anterior. Toda a letra está escrita evitando conjunções para unir as orações. Assim, quase todas as frases estão como soltas, independentes, numa enumeração excessiva de fatos ocorridos sem que haja uma conexão direta entre eles. A não ser as expressões "assim que" e "mas", que se juntam a outras orações. Isso tem como resultado não só uma simplicidade, que podemos atribuir à fala do protagonista, mas também uma situação existencial que não se desenvolve, não se torna complexa, girando sempre em torno de meros eventos durante a peregrinação do personagem pelo território. A falta de conexão também destaca a perda de referências do protagonista, sozinho como migrante ou exilado interno.
A regularidade da estrutura da canção se apresenta igualmente na melodia, cujas frases são muito parecidas, com um padrão que se repete, as notas indo de um tom mais grave a um mais agudo, para voltar a outro tom mais grave, por exemplo, no verso: "Não dá pra falar muito não", que "desce" da primeira palavra até "falar" e "sobe" até a última palavra. Da mesma forma que em "Pivete", essa estrutura regular denuncia uma falta de perspectivas, uma situação que não apresenta alternativas. A não ser nas poucas variações da canção, inscritas a partir do nono verso nas quatro primeiras estrofes. Nesses fragmentos ("Tomei a costeira...", "Pintou uma chance...", "Eu tenho saudades...", "Em março..."), os versos se estendem, a duração se alarga nas últimas palavras, o próprio tom se torna mais agudo, como numa súplica ou um intenso desejo. Trata-se, aqui, de fugir da rotina da migração sem perspectivas para buscar uma saída. Não é por acaso que justamente esses versos falam de partidas, de oportunidades, de desejo.
No entanto, na última parte, que começa exatamente com a despedida do País ("Bye, bye, Brasil", título da canção), volta a haver uma enumeração de ações desconectadas entre si, estendendo-se, sem retorno ou variação nos versos nem na melodia, até o final da canção, o que destaca a sensação de um caminho sem volta, mas também sem muitas saídas. O verso final, "O Sol nunca mais vai se pôr" - estendendo-se o "pôr" como se fosse chegar a um próximo acorde, mas não, ele fica como pairando na melodia -, denota uma ideia de extensão sem fim, de inexorabilidade.
Trata-se de um país que nunca mais será o mesmo? E o protagonista da canção, imerso nesse território onde não encontra o seu lugar, seguirá esse caminho infinito sem aportar em nenhum lugar?
Chico Buarque nos faz refletir, aqui, no próprio futuro do Brasil, com o fim da ditadura militar que se aproximava (anos 1980). Que futuro teria o País em 1980? Ou, olhando retrospectivamente hoje, poderíamos perguntar: que futuro teve o País?
Amor volátil, perfume inútil: "Já passou" (1980)
https://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=japassou_80.htm
Esta bela canção de amor, mas com ironia - como é comum na obra de Chico Buarque -, termina sem final feliz. Aliás, esta é outra característica comum de muitas composições de Chico: separações, dores, desentendimentos, mágoas.
O título já indica que algo é passado, mas também, ambiguamente, é uma expressão de alívio: já passou a dor:
Já passou, já passou
Se você quer saber
Eu já sarei, já curou
Novamente, temos um pequeno drama amoroso individual. Ou, no caso, talvez se trate de um pós-drama. O "você" do segundo verso nos diz daquele ou daquela que teria provocado a dor. Como se sabe, a paixão, etimologicamente, tem a ver com o passivo, o que sofre uma ação: o paciente. Assim, identificando paixão a doença, é coerente que, passada a paixão, o amante se sinta "sarado", "curado".
O segundo verso, "se você quer saber", também é ambíguo. O interesse da (ex?) pessoa amada pelo amante que sofreu a dor pode ser sinal de altivez, mas também de curiosidade maldosa. Pois saber, etimologicamente, além de ter a ver com conhecimento, tem a ver com sabor. Assim, "se você quer saber" poderia ser traduzido por "se você quer saborear", se você quer gozar com o meu sofrimento. Uma atitude sádica.
Os dois últimos versos dessa estrofe reforçam a ideia de cura:
Me pegou de mal jeito
Mas não foi nada, estancou
No primeiro verso, o sujeito da canção pretende mostrar que sua paixão foi um acidente, algo não querido - uma surpresa -, mas que cessou. A expressão "mal jeito" indica mesmo algo físico, um golpe. A última palavra, "estancou", tem um sentido forte que remete ao sangue estancado de uma ferida. O que passou, passou, mas deixou vestígios, cicatrizes.
O sadismo sugerido da pessoa amada reaparece explicitamente na segunda estrofe:
Já passou, já passou
Se isso lhe dá prazer
Me machuquei, sim, supurou
A confissão é clara: houve, sim, um golpe, como consequência uma ferida ("me machuquei"). O "prazer" da pessoa amada combina com o "saber", o saborear sádico do início da canção. Entretanto, também pode se tratar de mero despeito do sujeito ferido, uma forma de provocação ou de apresentar-se ostensivamente como vítima. Masoquismo? A última palavra, de novo, dá a noção de ferida e de cicatriz. Mas essa cicatriz ainda dói?
Mas afaguei meu peito
E aliviou
Já falei, já passou
O sujeito diz que a dor "aliviou". Mas é preciso desconfiar de tanta insistência, repetindo-se "já passou", inclusive com a contundência da expressão "já falei", como a convencer o interlocutor da veracidade da "cura" dessa paixão que causou dor e feridas.
Então, a canção sofre uma mudança, introduzindo uma segunda parte, que se apresenta assim:
Faz-me rir, ha ha ha
Você saracoteando daqui pra acolá
Na Barra, na farra
No Forró Forrado
Na Praça Mauá, sei lá
No Jardim de Alá
Ou no Clube do Samba
Aqui, além do tom anterior de vítima de uma paixão violenta, há a reclamação do gozo da pessoa amada, que continua sua vida de prazeres sem o sujeito da canção. Uma espécie de ciúme pós-paixão. O riso de que fala o sujeito, ironicamente, está aparentado com o choro e a dor. Enquanto ele sofre, ainda, a cicatrização desse amor, a pessoa amada se diverte por toda a cidade do Rio de Janeiro: na Barra da Tijuca, assistindo a um espetáculo do Forró Forrado - ou frequentando uma casa noturna do mesmo nome -, passeando por lugares de Carnaval e boemia (como a Praça Mauá), a vida noturna do Jardim de Alá (entre Ipanema e Leblon), e até saindo no Clube do Samba, bloco de Carnaval criado nada mais nada menos que por João Nogueira e que se apresentava na Lapa, também lugar essencialmente boêmio, historicamente associado ao samba.
Tudo isso para causar no sujeito que ainda sofre reações não só emocionais, mas até físicas, prolongando as consequências dessa paixão que, pelo visto, ainda não foi totalmente curada, apesar do que ele diz:
Faz-me rir, faz-me engasgar
Me deixa catatônico
Com a perna bamba
A ironia de Chico Buarque nesses versos faz confundir o riso com o nervosismo, a estupefação, a perda de controle diante do gozo do outro. O sujeito se confessa, assim, perturbado pela permanência de um sentimento que ainda causa dor. No entanto, quando a canção retorna - musicalmente falando - à primeira parte, a letra volta também a repetir a afirmação da cura: "Mas já passou, já passou". Como se a parte intermediária da canção fosse uma reflexão, um pensamento do sujeito sobre o que ainda sofre ao ver a pessoa amada - agora sozinha, livre, disponível - divertindo-se sem ele.
Mas, no final da música, já de volta à situação inicial, surge como uma despedida:
Recolha o seu sorriso
Meu amor, sua flor
Se antes tínhamos uma elocução
dirigida à pessoa amada ("se você
quer saber", "se isso lhe dá
prazer"), buscando, talvez, um diálogo, agora esse possível diálogo é rompido,
e aparece despedida: "recolha o seu sorriso" e "sua flor". Mas esses versos,
por outro lado, nos dizem de uma possível mágoa sem cura: o recolhimento do
sorriso, pela pessoa amada, pode significar que não há por que se divertir, não
há do que rir, depois do fim do amor. Também é um pedido para que a pessoa
amada deixe de rir, pare de se divertir.
E a expressão "meu amor", como parte da enumeração de "seu sorriso" e sua flor", marca sua inclusão como algo a ser "recolhido". Nova ambiguidade! O recolhimento do sorriso e da flor pode ser visto como seriedade, fim da ternura. Mas o recolhimento do amor do sujeito insinua guardá-lo, lembrá-lo, cultivá-lo, de certa forma. Uma despedida que não se despede totalmente. Uma separação, mas não definitiva. Um desejo do sujeito que se nega a romper totalmente com a pessoa amada, aferrando-se ao passado? Mas ainda há mais ambiguidade: a expressão "meu amor" pode simplesmente significar a forma como o sujeito ainda se dirige à pessoa amada, mostrando que ainda a ama.
Porém, nos últimos versos há uma surpresa:
Nem gaste o seu perfume
Por favor
Que esse filme
Já passou
Ora, aqui se insinua o contrário do que os versos anteriores levam a crer. Em vez de o sujeito aferrar-se ao passado e à pessoa amada, ele exige que ela se afaste, que o esqueça, inclusive que deixe de seduzi-lo: "nem gaste o seu perfume/por favor". Além do mais, os dois versos derradeiros soam como uma reclamação, o produto de um cansaço, a imposição de um limite: "que esse filme/já passou", esse amor já passou, esqueçamos. Ou ainda: há a sugestão, aqui, de que a (ex?) pessoa amada pode tentar seduzi-lo como já o fez em ocasiões anteriores.
Uma reviravolta, posto que, antes, a expressão "já passou" indicava a cura da paixão, mas uma cura parcial, pois o sujeito dessa paixão mostrava, ao mesmo tempo, suas feridas que ainda doíam. E, no final, a expressão "já passou" se transforma para significar "afaste-se, me esqueça". Dubiedade e incerteza próprias de um compositor como Chico Buarque, mestra na arte da ambiguidade, que em seu caso se torna uma riqueza.
As quatro partes da música estão dispostas de modo tal que as duas primeiras - as que apresentam a situação do protagonista - terminam com a melodia descendo a notas mais graves (chegando, na segunda estrofe, à expressão-chave: "já passou"), como uma confissão que, ao finalizar, baixa o tom de voz. Por outro lado, o posto a isso (as notas mais agudas) está justamente nos segundos versos, que se dirigem à pessoa (ex-?) amada: "você", indicando uma intensidade emocional. Também é interessante perceber que as vogais predominantes nos finais de versos e suas rimas são exatamente as mais fechadas ("o", "u"), como tentando encerrar uma história (esquecê-la?). Essas características das duas estrofes (vogais mais fechadas, tom de voz baixo, final em notas mais graves) são coerentes com a elipse do motivo principal que se quer esquecer. Com efeito, a verdadeira causa da ferida está oculta, não é revelada em nenhum momento. Pudor ou medo de um novo sofrimento?
A terceira parte é a mais longa, com uma menção a seis lugares por onde a pessoa amada passeia, independente, pela noite do Rio de Janeiro. É quando a melodia é tecida com notas mais agudas, e o canto é mais intenso, justamente marcando o aumento da distância entre os ex-amantes. Essa lista de lugares e a intensidade contrastam com o pretenso desdém do sujeito da canção. Novamente, aqui (um recurso comum a Chico Buarque), a força da melodia em seu trecho mais intenso coincide com as rimas em sons de "a", a vogal mais aberta. É incrível a coerência do compositor: quando expressa tristeza, os versos terminam em sons de "fechamento" ("o", "u"); quando exprime intensidade, os fragmentos terminam na vogal aberta por excelência ("a"), prolongada, vibrante em seu timbre agudo (como um grito).
Assim, o que já passou,
na verdade, permaneceu: algo preso na garganta. É o que parece expressar Chico
Buarque a respeito de toda separação, como na próxima canção, que é,
literalmente, de cinema: "Eu te amo".
A deusa e o pagão: "Eu te amo" (1980)
https://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=euteamo_80.htm
Nesta canção, do filme "Eu te amo", de Arnaldo Jabor, a letra foi feita para a música de Tom Jobim.
Um amor intenso, mas que talvez tenha sido breve, é a marca dessa história contada pelo homem, que se dirige à sua amante:
Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta agora como hei de partir
A voz masculina, falando à voz feminina (que nunca se manifesta), trata de recuperar o laço que os unia, como vemos nas expressões em plural ("perdemos", "juntos", "jogamos"). O primeiro verbo é exatamente "perdemos", que nesse verso se refere à noção de realidade, de vida cotidiana. Ao perder "a noção da hora", ao desligar-se das tarefas do dia a dia, do trabalho, das obrigações, do fluxo "normal" da existência e cair no idílio amoroso, caíram num devaneio sem tempo, sem travas, sem repressão. No entanto, o mesmo verbo "perder" insinua o desenrolar dessa pequena história.
O segundo verso amplia o sentido da fuga do cotidiano, ao afirmar: "já jogamos tudo fora". Os amantes já abandonaram tudo - o quê? -, o que deixaram para trás (compromissos, hábitos, valores, família?). A paixão foi forte a esse ponto, o de uma mudança na vida dos dois personagens. Mas o terceiro verso, por isso mesmo, aponta para um dilema: e agora? Depois de tanta intensidade amorosa, como "partir"? Como voltar à "vida real"? O que esconde outra pergunta: como voltar a ser só? Pois se trata de uma relação efêmera, como veremos.
Mas também o amante pode estar se perguntando: como voltar a ser o que era antes? Ou, talvez, voltar a ser o que não era, como no conto "Amor, 1977", de Julio Cortázar, no qual, depois do amor, os amantes "voltam a ser o que não são", pois o que eles são de verdade se expressa somente no ato amoroso, e não no fluxo comum da vida cotidiana.
A segunda estrofe tratará de responder a essa inquietação expressa no dilema anterior:
Se, ao te conhecer,
dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que inda posso ir
O sujeito da canção confessa a perturbação que sofreu sua vida ao conhecer a amante, fazendo-o mudar e entregar-se a um sonho, "desvarios", situação que provocou nele o abandono de tudo ("rompi com o mundo"), e esse abandono foi radical a ponte de não haver volta ("queimei meus navios"). E a pergunta sobre o caminho seguinte, a possível separação dos amantes, se desdobra: na primeira estrofe, como partir; na segunda, para onde ir - já que, como vimos, não há possibilidade de retorno à condição anterior, antes da paixão. Sem poder seguir nem voltar, o sujeito fica parado, imobilizado (aliás, o mesmo tema aparece na canção "Renata Maria", composta por Chico Buarque com Ivan Lins).
Além disso, o advérbio ainda (abreviado em inda, por razões de métrica poética) denuncia que o amante já foi a tantos "lugares", já partiu para tantas "zonas novas" - que sua vida comum, anterior, desconhecia -, que parece ter esgotado as possibilidades. É como se aqueles sonhos e desvarios finalmente tivessem encontrado seu limite, além do qual não há nenhum caminho novo a seguir. Toda paixão tem um fim?
Se nós, nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir
As "travessuras" nos fazem pensar em brincadeiras, em jogos infantis, aqui mesclados, certamente, a malandragens, travessuras sexuais - sobretudo se temos em conta o filme de Arnaldo Jabor. Mas esse aspecto lúdico da paixão se une a uma seriedade que roça a eternidade, a fuga da contingência, do aqui e agora, pois essa paixão se deu em "noites eternas" - noites sem fim de paixão, mas igualmente noites que fazem sonhar com a eternidade. Ironicamente, "eternas" rima com "pernas": o máximo da transcendência (a própria eternidade!) ligado ao corpo, ao sexo. Isso, unindo os dois personagens num só, quando as quatro pernas parecem duas ou se misturam tanto que não se sabe bem de quem são as pernas (quando confusão tambémsignifica com + fusão, fusão dos dois).
E ao contrário da fuga querida na expressão "pernas, pra que te quero", no último verso Chico escreve: "diz com que pernas eu devo seguir", o oposto de uma fuga, pois o sujeito da canção se pergunta é como permanecer, como ficar com a amante, e se o casal deve se desfazer, como continuar, como voltar à vida comum?
Se, no "Poema de sete faces", Carlos Drummond de Andrade, em uma espécie de crise com o mundo ("mundo, mundo, vasto mundo", diz o poema), se pergunta, diante da multidão, "pra que tanta perna", aqui Chico desenha uma crise não com o mundo, mas íntima, amorosa - "com que perna devo seguir", longe da multidão, da qual se afastou ("rompi com o mundo"). Nos dois poetas, a mesma inadequação ao mundo, o mesmo incômodo.
É interessante, nesse sentido, observar que, no mesmo poema, Drummond se descreve como "gauche na vida" - desajeitado, inadaptado -; do mesmo modo, Chico Buarque se descreve como "errado", "torto", na canção "Até o fim".
Essa paixão do sujeito da canção, então, além de sofrimento, de desencontro, é sobretudo des-caminho - como a paixão de Cristo foi um caminho trilhado com dor. Daí a sensação de estar perdido ao final da relação amorosa, depois que o próprio caminho vital do sujeito foi perturbado, desviado:
Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu
Nesta estrofe, se aprofunda o drama do sujeito da canção. Primeiro, a "sorte" do casal - sorte não como contrário de azar, mas como destino, vida - "caiu", perdeu peso, morreu. Uma vida derramada no chão - o que lembra os poemas de Fernando Pessoa. Mas também, possivelmente, uma vida que transbordou de tanta paixão. Em todo caso, agora é o fim do idílio.
E o coração que causou tudo isso (o feminino) é uma bagunça: tanto por ser desgovernado ou não poder ser dominado quanto por desorganizar a vida do seu amante. As consequências disso são que o sujeito foi abalado: "meu sangue errou de veia e se perdeu", não sabe mais como circular. É como se o amante estivesse se perguntando: "como seguir vivendo?". Aqui, como em versos anteriores, as metáforas corporais dão conta da intimidade e da profundidade do caso amoroso, como também mostram a desorientação do amante no final da paixão.
Se, nas quatro primeiras estrofes, a letra repete o condicional "se", nas estrofes seguintes aparece o interrogativo "como". Há uma intensificação da pergunta do amante. Antes, a repetição de "se" já estava associada a perguntas. Por exemplo, "se juntos já jogamos tudo fora"/"como hei de partir". Agora, surge diretamente duas vezes a pergunta iniciada por "como", pergunta essa que poderia ser "como vou continuar", "como foi possível que essa relação amorosa terminasse"... É um como que tem o valor de por quê:
Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu
Nessa indagação, o sujeito da canção vai descrevendo a desordem que, de tão forte, abrange tudo, não somente o próprio corpo, mas o entorno, o ambiente. De fato, não é somente o coração da amante que é uma bagunça, mas o armário embutido que está em desordem. Não são apenas as pernas que se fundem, confundem, mas as roupas, o paletó com o vestido, os sapatos dos dois... Tudo se enlaça, tudo gira numa desordem amorosa ou, em todo caso, numa sensação de desordem pós-amor, pós-paixão, da qual reclama o amante. A própria vida do sujeito fica em desordem.
Uma desordem que, na verdade, começou já com a relação amorosa, pela intensidade desse amor:
Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios inda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair
Um amor pagão: o contrário de qualquer ideia de "eternidade religiosa". Eternidade, sim, pela sensação de duração - estar fora do tempo presente, cotidiano - e pagã, como na Grécia Antiga, quando o amor era desligado de travas religiosas, e as próprias cortesãs que serviam nos templos tinham formação física e espiritual. "Feitos dois pagãos": sem regra, sem obedecer a normas ou a uma moral, um sexo sem limites. Um amor que fez o amante romper com o mundo, queimar seus navios, delirar. E a sensação de eternidade, de permanência dessa paixão se inscreve no verso seguinte: "teus seios inda estão nas minhas mãos". Belo deslocamento criado por Chico Buarque: assim como, na memória do amante, há a imagem não do corpo enlaçando o corpo dela, mas o paletó enlaçando o vestido, aqui também não é apenas a lembrança dos seios, mas a experiência tátil, mesmo, de ainda possuir os seios dela nas mãos, o que dá mais ênfase, mais força a essa memória.
O último verso, repetindo a indagação do amante perdido, desorientado, a amplia: não apenas "com que perna" (corpo), mas "com que cara" (alma). Fechado no espaço da paixão (no filme, protagonizado por Sônia Braga e Paulo César Pereio, tudo se passa dentro de um apartamento), imobilizado pelo desejo de permanência, de continuidade, como sair? Isolado dentro do espaço do prazer sem limites, afastado do mundo, como voltar a ele?
A última estrofe começa com um "não" - o único da letra. Depois da perplexidade do fim da paixão, do abandono da relação e do espaço do puro desejo, o sujeito da canção expressa sua recusa em sair dessa situação "fora do mundo". E a reclamação se dirige a ela, à amante que, como estava insinuado, é quem abandona a relação:
Não, acho que estás te fazendo de tonta
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir
A dor do amante: a amada finge, dissimula, faz de conta, indiferente a tanta paixão, deixando o sujeito desconsolado. O verso seguinte é um dos mais belos da obra de Chico Buarque: "te dei meus olhos pra tomares conta". De novo, um deslocamento: não tomar conta de mim, mas dos meus olhos. Se quisermos refletir sobre essa imagem, podemos pensar que não se trata apenas de uma figura de linguagem, a metonímia (tomar a parte pelo todo, no caso, os olhos pela pessoa), mas uma entrega total do amante. De fato, "te dei meus olhos" remete ao olhar, portanto, a uma visão de mundo, a um modo de encarar a realidade, quase como compartilhar uma vida com o outro. Mas não só isso: o amante dá seus olhos para que ela tome conta deles, os cuide, o que nos faz voltar àquele espaço puro do desejo, fechado, afastado do mundo, um espaço que é puro amor e cuidado, um abandono ao outro, uma fusão (con-fusão, como sugere a letra) completa. Não é à toa que o amante, depois da separação, se sente perdido, sem saber como sair do idílio e para onde ir: "Agora conta como hei de partir". A responsabilidade de dirigir o amante a uma solução é empurrada para ela. Se ela o iniciou nessa paixão, agora é ela quem deve ajudá-lo a sobre-viver (a viver depois desse idílio).
A canção está composta com uma alternância de estrofes diferentes, a estrofe ímpar - cuja melodia vai descendo em espiral, como a queda do próprio protagonista em sua perdição amorosa - e a estrofe par, cuja melodia alterna "altos" e "baixos". É como se, de uma estrofe a outra, o protagonista tentasse se agarrar a alguma coisa - à sua própria queixa? -, mas finalmente acabasse caindo.
A inevitabilidade dessa queda parece estar na simetria da canção, que é quase completa: além da alternância rigorosa entre as estrofes com estruturas melódicas diferentes, quase todos os versos têm dez sílabas, numa forma fixa típica da poesia clássica. Assim como não há aqui "versos livres", tampouco há a "liberdade" do sujeito da canção em despojar-se da paixão. As exceções são por conta de pequenas introduções ao drama desse homem apaixonado: as expressões "Ah", "se ao te conhecer", "se nós", "se", "não". O rigor estrutural prossegue nas rimas: em todas as sete estrofes, as rimas se encontram nos dois primeiros versos. No entanto, é tanto o desejo do sujeito da canção de se livrar dessa espécie de prisão amorosa (recuperando o tema do amor como uma prisão, já presente em Luís de Camões), que, das sete estrofes, cinco trazem no final em verbos que indicam movimento, saída: "partir", "ir", "seguir", "sair" e "partir". Como se não bastasse isso, todos estes verbos terminam em "ir". A estrutura se fecha, rígida, unindo o final da canção à estrofe inicial: ambos finalizam com o mesmo verso, que resume o drama do sujeito: "Me conta agora como hei de partir".
A "queda" do protagonista é tão evidente, que a melodia da canção começa com uma nota mais alta - si - e termina com uma mais baixa - lá sustenido -, num intervalo de sete tons e meio (quase uma oitava, ou seja, a distância entre a nota dó e outro dó mais agudo na escala).
É interessante observar aqui que, no filme, é a mulher quem diz "eu te amo", enquanto o homem ironiza o amor dela. Na letra de Chico Buarque, os papéis estão invertidos: o homem é o abandonado, quem diz "eu te amo" (da mesma forma, há uma inversão na canção "Mil perdões", que diz "te perdoo por te trair", quando a obra de Nelson Rodrigues que serviu de base ao filme com a música de Chico se intitula "Te perdoo por me traíres"). Jogando com o masculino e o feminino, invertendo papéis, mesclando amor e abandono, Chico Buarque tece, mais uma vez, uma bela e sofisticada letra sobre o amor, que - como é frequente em sua obra - não termina bem.
Meninice e delinquência: "O meu guri" (1981)
https://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=omeuguri_81.htm
A face de um novo país não se esconde na obra de Chico Buarque dos anos 1980. Dois anos depois da Lei da Anistia (1979), o compositor traz a público a canção "O meu guri", que marca, como outras músicas, a visão crítica de uma sociedade que mantém excluídas muitas crianças de um padrão decente de vida.
E a voz que conta, nesta canção, é feminina, como tantas outras composições. Mas não se trata uma mulher referindo-se a um homem, e sim uma mãe relatando a um "moço" o cotidiano de seu filho.
A primeira estrofe expõe a situação dessa pequena família:
Quando, seu moço, nasceu meu rebento
Não era o momento dele rebentar
Já foi nascendo com cara de fome
E eu não tinha nem nome pra lhe dar
De cara, já se mostram os problemas comuns a uma sociedade desigual: a falta de planejamento familiar, a pobreza - com as dificuldades para criar um bebê -, a fome que ronda grandes contingentes populacionais. A falta de um "nome" para a criança aponta não somente para uma gravidez não programada, mas uma falta de identidade, de pertencimento a um grupo social no qual a criança se sinta acolhida. A rima em "nome" e "fome" reforça a associação entre uma existência precária e a falta de identidade. Além do mais, o verbo "rebentar" insinua violência, que na verdade marcará a vida desse "guri".
A situação de ter um filho sem as condições adequadas à sua criação aparece na fala da mãe:
Como fui levando, não sei lhe explicar
Fui assim levando, ele a me levar
Recordemos que ela conta algo a um "moço", daí o pronome "lhe". E ela admite que não sabe como pôde manter a criança ou, em todo caso, sua fala indica que, talvez, o menino também a tenha ajudado a sobreviver ("ele a me levar"). De algum modo, há uma espécie de protagonismo do guri, fato, aliás, comum na realidade brasileira, quando muitas crianças em situação precária têm que trabalhar ou realizar tarefas não comuns à sua idade para ajudar a manutenção da família, configurando-se, assim, uma sorte de vida precoce. Precocidade, no entanto, para o bem ou para o mal.
Tanto é assim, que a mãe, em seu discurso ao "moço", informa sobre a previsão de seu próprio filho:
E na sua meninice ele um dia me disse
Que chegava lá
Ao mesclar o desejo infantil de "chegar lá" - expressão que denota um sucesso, ser bem-sucedido, mas ao mesmo tempo algo pouco provável diante da situação da criança - com a visão materna de crer num futuro melhor para o filho, se compõe aqui a imagem de uma família que, embora na pobreza, poderá, quem sabe, melhorar de vida através do menino.
O estribilho é ambíguo:
Olha aí
Olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
A apresentação do filho parece estar eivada de orgulho, mas este vem acompanhado de um "ai", denotando um suspiro materno, talvez, diante da situação do garoto, que vive em movimento da casa para a rua e da rua para a casa:
E ele chega
Chega suado e veloz do batente
E traz sempre um presente pra me encabular
O menino anda no "batente" - expressão irônica de Chico Buarque marcando a ingenuidade da mãe, batente esse que dá trabalho ("suado e veloz"), mas também resultados: presentes para a mãe, que se constrange (há aqui, já, certa desconfiança sobre as atividades do menino?):
Tanta corrente de ouro, seu moço
Que haja pescoço pra enfiar
Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro
Chave, caderneta, terço e patuá
Um lenço e uma penca de documentos
Pra finalmente eu me identificar, olha aí
O produto do "trabalho" do garoto é um conjunto de elementos díspares, pessoais, sem uma utilidade precisa para sua mãe ("uma bolsa já com tudo dentro"), mas em meio a essas coisas há a possibilidade de uma espécie de "legalização" ou, pelo menos, da sensação de estar legalizada, identificada, perante a sociedade, com "uma penca de documentos". O que denuncia a condição dessa mulher: ela não é uma cidadã.
A ingenuidade da mãe reforça a noção de uma realidade deslocada, desviada: identificar-se com os documentos de outra pessoa. Numa sociedade que dava as costas à infância pobre, essa infância burla a lei para resolver as dificuldades de sua vida.
Essa segregação também está presente na fala materna. Em vez de um "eu" lírico, a letra desta canção exibe a fala da mãe a um "moço", numa espécie de depoimento, lembrando a narração de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Lá, Riobaldo conta sua história a alguém da cidade, opondo seu mundo àquele urbano, "letrado", pacífico. Aqui, o mundo da marginalidade (filho que furta, mãe indocumentada) está separado do mundo do ouvinte, "seu moço". É mundo do "morro":
Chega no morro com o carregamento
Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador
Rezo até ele chegar cá no alto
Essa onda de assaltos tá um horror
A enumeração do resultado dos roubos é caótica, denotando uma estranheza própria de um Borges (como no texto "El idioma analítico de John Wilkins"), onde há elementos destoantes, não familiares entre si, como "pulseira" ao lado de "cimento". A palavra "carregamento", além da acepção de carga, traz a ideia de saturação, de peso, relacionando-se indiretamente também - por que não? - ao tráfico, seja de drogas, seja de armas.
A reza da mãe, como símbolo da religiosidade popular, reforça sua ingenuidade, quando se refere à "onda de assaltos". Mas também, como sempre na ambiguidade em que se move Chico Buarque, traduz a apreensão materna quanto à insegurança do morro e à ação policial, preparando, de certo modo, o desenlace da canção.
Nesse meio inseguro e apartado da vida social e cidadã, há, ainda, algum espaço para o afeto. A mesma mãe que se encabula com o filho consola-o e é consolada por ele, mostrando que, apesar do "fruto do trabalho" de seu filho, há uma realidade desconsoladora. E esse consolo mútuo se dá numa atmosfera exatamente maternal: a imagem da mãe "ninando" o filho em seu colo. Mas também acontece o inverso, pois o filho também "nina" a mãe, "menina-a", a torna de novo uma criança com esse verbo criado por Chico: meninar, ao mesmo tempo em que ele menina, ou seja, exerce sua condição de criança, numa imagem que faz lembrar o filme "Pixote: a lei do mais fraco", de Héctor Babenco, na cena em que a "mãe" ocasional amamenta o menino de rua. Não seria essa sua "tarefa" normal? Ser criança, em vez de estar "no batente"? Sim, mas não é o caso desse garoto, que é/foi "danado" (sofreu danos, está danado pela estrutura social), tem que ir "trabalhar":
Eu consolo ele, ele me consola
Boto ele no colo pra ele me ninar
De repente acordo, olho pro lado
E o danado já foi trabalhar, olha aí
Aqui se estreita tanto a relação entre mãe e filho, que os dois dormem juntos na mesma cama ("Olho pro lado..."), mas a separação é diária, quando o filho desce o morro para ir "trabalhar". Separação essa que corta abruptamente a imagem maternal do filho sendo ninado/mimado pela mãe para lançar o garoto num espaço distante, sem volta, quando ele parte definitivamente para o outro lado, virando notícia na cidade (nos meios de comunicação), abandonando de vez o mínimo espaço familiar que possuía: "E ele chega", sim, mas não de forma real, e sim em forma de "manchete"
Chega estampado, manchete, retrato
Com venda nos olhos, legenda e as iniciais
Eu não entendo essa gente, seu moço
Fazendo alvoroço demais
O guri no mato, acho que tá rindo
Acho que tá lindo de papo pro ar
Aqui terminam, brutalmente, as idas e vindas do garoto, que se ao nascer não tinha nome, ao morrer possui somente "as iniciais", permanecendo alguém anônimo (sem consistência real, sem ser cidadão). Uma criança que perdeu a oportunidade de ver o mundo ("com venda nos olhos") e, ao mesmo tempo, de ser visto pela sociedade, que se tornou cega para a infância miserável, marginal.
Quando essa infância pobre se encontra com a "sociedade" (a cidade, lá onde morará esse "moço" a quem se dirige a fala da mãe), é de forma "espetacular" - o "espetáculo" sensacionalista das manchetes de jornal. Quando se torna "reconhecido", é apenas por iniciais e uma legenda.
O guri está "de papo pro ar", uma expressão irônica, dada a inocência da mãe, pois em outro contexto significa "sem fazer nada, descansando, ocioso", mas aqui é a imagem da própria morte, talvez pela polícia, por grupos paramilitares ou por outros marginais. Da mesma forma, a ingenuidade da mãe a faz declarar:
Desde o começo, eu não disse, seu moço
Ele disse que chegava lá
Uma ironia cruel: a forma de chegar aos meios de comunicação é por meio da morte. Uma espécie de profecia de Chico Buarque, antevendo a hipervalorização da imagem, a corrida pela fama na mídia, tão bem retratada atualmente por Woody Allen no filme "A Roma com amor", mas que aqui na canção "O meu guri" se dá pelo avesso, pelo desaparecimento (em vez do aparecimento ostensivo), pelo apagamento de um anônimo, um marginal, um garoto a mais para quem a vida não lhe reservou nenhum lugar, a não ser na fotografia dos jornais quando já não existia mais.
A canção tem quatro partes, nas quais a situação do menino é comentada pela mãe, mais os estribilhos em que ela apresenta seu filho: "Olha aí...", como a insistir na necessidade de ele ser conhecido, visto, quem sabe para receber a atenção que deveria merecer como toda criança.
Apesar de ter muitas rimas - o que é comum na música popular -, a letra não se encaixa numa forma fixa, mas possui versos de tamanhos diferentes. Há, portanto, uma flexibilidade, que tem a ver com a própria errância do menino. Além disso, nos primeiros dois versos de cada parte, a melodia tem uma regularidade, cada sílaba sendo cantada com a mesma duração, com poucas variações de notas em muitos versos, conformando quase uma espécie de percussão (tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá...), o que dá a impressão de velocidade, uma urgência, talvez, da própria necessidade de sobreviver da criança. Essa velocidade se repete na enumeração da quantidade de objetos que o menino leva pra casa ("Chave, caderneta, terço e patuá"; "Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador").
No estribilho, entretanto, essa velocidade se reduz, a melodia é mais lenta, os versos mais curtos, as palavras cantadas em uma duração mais longa, quase como um descanso - o alívio da mãe a cada reencontro com o filho, sabedora da realidade perigosa na rua, além da satisfação de receber os "presentes" que ele leva para casa.
Tal como está estruturada a canção, vimos que a primeira parte narra o nascimento e a infância do menino; a segunda e a terceira mostram sua vida na rua, cometendo delitos para sobreviver; e a quarta, finalmente, narra sua morte. "O meu guri" mostra, portanto, o ciclo completo na vida desse menino de rua, começando com seu nascimento e terminando com sua morte prematura, retratando a realidade de muitas crianças e adolescentes envolvidas com a marginalidade ainda hoje.
Mas a canção é do tempo, ainda, da ditadura militar, mostrando as consequências sociais do modelo econômico adotado na época, cujo fim poderia ter acontecido após a campanha pelas eleições diretas para presidente, as "Diretas já!", tema da próxima música.
À margem da cidade: "Pelas tabelas" (1984)
https://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=pelastab_84.htm
"Ando com minha cabeça já pelas tabelas." No primeiro verso da canção, já se esboça a situação do sujeito, que fala de si: "ando", no sentido de "estou, vivo" ou "tenho estado, vivido", mas também no sentido mesmo de "andar", perambular pela cidade. E esse sujeito que "anda" está com sua cabeça "pelas tabelas". Múltiplos significados se cruzam nessa expressão. Primeiro, uma cabeça desorientada, confusa. Segundo, um corpo cansado, derrotado, talvez até embriagado. Terceiro: em termos de futebol (esporte tão caro a Chico Buarque), aparece o sentido de time ruim, que está jogando mal. Quarto, o ano de 1984 foi o da enorme campanha "Diretas já" para a eleição direta do presidente da República. Durante a campanha, "tabelas" nas ruas divulgavam os nomes dos parlamentares a favor e contra as eleições diretas. Aqui se enfrentam um sentido negativo (derivado da expressão popular "caindo pelas tabelas") e um positivo (a luta pelas eleições diretas para presidente). Em meio a esse enfrentamento, um sujeito circula desorientado, cansado, o que nos intriga. Ele não deveria estar entusiasmado?
Tudo isso, no primeiro verso, exemplo da enorme concentração de significados que Chico tece nas letras de muitas canções. E no segundo, a essa concentração se soma o isolamento, a solidão: "Claro que ninguém se toca com minha aflição".
Os versos seguintes vão esclarecendo um pouco a situação:
Quando vi todo mundo na rua de blusa amarela
Eu achei que era ela puxando um cordão
A "blusa amarela" se refere à campanha das "Diretas já", na qual os manifestantes usavam roupas de cor amarela para se identificar com aquela luta política. E "todo mundo" marca o consenso, a união em torno de uma mesma ideia. Por outro lado, "ela" mostra uma singularidade, em oposição ao todo, à massa.
Aqui vão se definindo os dois polos daquele enfrentamento (sentidos negativo e positivo), traduzidos em dois campos, o individual e o coletivo. Por um lado, a multidão, um coro com um objetivo comum. De outro, a voz solo do indivíduo isolado, desorientado, com a cabeça não na campanha política, mas "nela". Quer dizer, um drama coletivo (a luta pelas eleições diretas para presidente) e um drama individual (ele atrás "dela").
Mas há uma possibilidade de que esses dois se unam ou se encontrem, pelo menos, em algum momento. É quando o sujeito da canção imagina que "ela" está no meio da multidão, "puxando um cordão", quer dizer, puxando um bloco, uma ala da campanha, em referência ao Carnaval, identificando, portanto, as "Diretas já" a uma espécie de festa popular. Inclusive, ele mesmo entra na festa: "Oito horas e danço de blusa amarela/Minha cabeça talvez faça as pazes assim". O sujeito que estava desorientado ou cansado, solitário pensando "nela", acaba se misturando à multidão, dançando, numa tentativa de se sentir melhor, de fazer com que sua cabeça, antes "pelas tabelas", agora "faça as pazes". É a possibilidade de encontro dos dois polos citado anteriormente.
Será essa fusão plausível?
Quando ouvi a cidade de noite batendo as panelas
Eu pensei que era ela voltando pra
Minha cabeça de noite batendo panelas
Provavelmente não deixa a cidade dormir
Nesses versos, o sujeito da canção, ao escutar o "panelaço" da campanha política, imagina que é o seu amor voltando. Ao mesmo tempo, é sua cabeça que faz barulho, afetando a cidade. De novo, o encontro dos polos: o barulho da cidade (da pólis), seu drama político; o barulho do indivíduo, de sua cabeça, seu drama pessoal. Esses dois campos, inclusive, se fundem na própria escritura da estrofe, quando o segundo verso se une ao terceiro, quando se podem ler duas versões (de novo, a ambiguidade!): na primeira, "Ela era voltando pra..." (para casa?), que se interrompe, e a canção continua com "Minha cabeça...". Na segunda, cantando unindo o final do segundo verso ao início do terceiro, "era ela voltando pra mim".
Além disso, há um tipo de paralelismo, pois, se o coletivo bate panelas para reivindicar, o indivíduo também, em sua cabeça. E há mais: não parece uma espécie de delírio, de alucinação essa presença "dela" em meio à multidão? Pois o que o sujeito da canção repete não é um dado certo, mas uma impressão: "eu achei que era ela/pensei que era ela"...
O contraste entre o individual e o coletivo chega a um ponto de tensão que o sujeito, em sua imaginação, sente como uma ameaça:
Quando vi um bocado de gente descendo as favelas
Eu achei que era o povo que vinha pedir
A cabeça de um homem que olhava as favelas
Minha cabeça rolando no Maracanã
Por que a tensão? Talvez pelo deslocamento do sujeito, por sua "heresia" em reclamar um drama pessoal, quando todo mundo está envolvido num drama coletivo, num objetivo comum e público? Sensação de culpa por não estar participando? Um alienado apaixonado em meio à massa politizada?
É interessante notar como, na obra de Chico Buarque, essa tensão é recorrente. Já em seu primeiro disco solo, em 1966, na canção "Sonho de um Carnaval", o sujeito parte de um drama individual a uma celebração coletiva - justamente o Carnaval, no qual ele dilui sua dor. No entanto, não é o que acontece aqui em "Pelas tabelas", já que o homem, desorientado, não se mistura à multidão em atitude de celebração ou adesão à campanha política, mas sim em busca de sua amada, não sem a tensão de se sentir deslocado. Ora, esse "desvio" do coletivo em busca do pessoal - um modo de assentar sua singularidade - se dá na própria carreira de Chico Buarque. Por exemplo, no mesmo ano de 1966, quando muitos exigiam do compositor uma postura mais explicitamente "política", ele apresentou a composição "A banda", que se "desvia" do esperado. Ele mesmo declarou:
Quando compus "A banda" eu me lembro que - pra não dizer que havia unanimidade - havia, sim, uma discreta condenação por parte da esquerda que ainda insistia em ouvir o grito de um "Carcará" e tal [...] "A banda" era uma retomada do lirismo, proposital mesmo, porque eu não era tão inocente assim quanto parecia. (HOMEM, Wagner. Histórias de canções: Chico Buarque. São Paulo: Leya, 2009, p. 46).
Assim, quando se esperava do compositor um comportamento de "porta-voz" de uma geração, ele desviava o rumo de sua composição, tratando de manter, de alguma forma, sua independência. Aqui, igualmente, em vez de celebrar a campanha das "Diretas já", ele a coloca como pano de fundo de uma paixão, uma separação, um problema amoroso individual que opõe o sujeito da canção ao conjunto das pessoas envolvidas na campanha política, ele esperando por "ela", o povo esperando pelo resultado da votação (nas "tabelas") da emenda constitucional que traria de volta as eleições diretas:
Quando vi a galera aplaudindo de pé as tabelas
Eu jurei que era ela que vinha chegando
Com minha cabeça já pelas tabelas
A letra continua, repetindo a primeira parte, mas com um verso novo: "Com minha cabeça já numa baixela", quando o sujeito já se imagina decapitado pela massa - ou por "ela"! Na verdade, essa imagem nos remete à história bíblica de Salomé, tão cara a artistas do século XIX, por exemplo, Oscar Wilde (que escreveu uma peça de teatro sobre a lenda).
Na história, Salomé dança para Herodes Antipas numa festa. Antes, São João Batista havia acusado a mãe de Salomé (Herodias) de adultério por ela ter abandonado o marido (pai de Salomé) e se casado com o irmão dele (Herodes Antipas). Herodes fica fascinado por Salomé e lhe pede que ela dance para ele, prometendo satisfazer qualquer desejo dela. Salomé, então, concorda em dançar, com uma condição (a pedido de sua mãe): que Herodes entregue a ela a cabeça de São João Batista. Com efeito, este foi decapitado, e sua cabeça foi apresentada a Salomé em uma bandeja de prata. Na letra de Chico Buarque, temos uma "baixela".
Essa lenda influenciou inúmeros pintores, escritores e músicos. Há nela o aspecto da "mulher fatal", que atrai com sua exuberância e sedução, mas que, ao mesmo tempo, é perigosa. Não será esse um aspecto que também está presente na canção "Pelas tabelas"? A ideia de um movimento popular, de massas, de cunho político, envolvendo a todos numa mesma campanha como algo "fascinante" e "sedutor", mas que pode esconder um "perigo", em oposição às iniciativas pessoais, descoladas da multidão? O perigo justamente de afogar o cidadão num consenso acrítico, superficial?
No caso, isso não quer dizer que Chico Buarque fosse contra as eleições diretas para presidente. Ao contrário, ele chegou a participar dos comícios públicos em prol da campanha. No entanto, assim como ele era contrário à ditadura militar e, apesar disso, esquivou-se de ser rotulado como "compositor político" ao compor "A banda", também compôs "Pelas tabelas" não com o intuito de fazer uma música "política", mas, ao contrário, de marcar uma espécie de autonomia do sujeito em relação à massa.
É o próprio Chico quem declara:
Essa tendência de enxergar sempre através do político de certa forma cristalizou uma ideia que não me satisfaz, absolutamente. [...] "Pelas tabelas". É um sujeito procurando uma mulher, apaixonado, no meio da manifestação das diretas. É essa confusão do individual com o coletivo, e aponta muito para o individual naquele momento coletivo. (HOMEM, op. cit., p. 228).
A noção de "massa" como um coletivo feminino que pode ameaçar o sujeito - uma espécie de enorme Salomé - parece estar presente nesta canção, tornando complexa a relação entre o indivíduo e o coletivo, tema abordado em muitas canções de Chico Buarque. De certo modo, ele sempre discutiu em sua obra a necessidade da independência do artista, da liberdade que este deve ter para criar dentro de uma linha de coerência, sem pressões ideológicas. Talvez, por isso, uma canção que Chico compôs com Edu Lobo em homenagem a Getúlio Vargas acabou meio oculta em sua obra, seguramente um incômodo para o compositor. Trata-se de "Dr. Getúlio", composta para a peça de teatro "Dr. Getúlio: sua vida e sua glória", de Ferreira Gullar e Dias Gomes, dirigida por Flávio Rangel no Rio de Janeiro em 1983, uma remontagem da obra original de 1968 e que teria sido produzida na nova versão pelo governo de Leonel Brizola.
Na letra, há versos como: "Foi o chefe mais amado da nação"; "Foi o pai dos mais humildes brasileiros"; "A nós ele entregou seu coração/que não largaremos mais", etc. Não há canções apologéticas como esta na carreira de Chico, daí a impressão de que ele a tenha "escondido". No Songbook Chico Buarque em quatro volumes, da Editora Lumiar, a canção não aparece. Em sua discografia, a canção não consta em nenhum disco, nem mesmo no que gravou com Edu Lobo intitulado justamente "Álbum de teatro". A canção, no entanto, foi gravada por Simone, e sua letra está no site www.chicobuarque.com.br.
Coincidentemente, justo quando Chico Buarque estava escrevendo "Dr. Getúlio", lhe ocorreram estes versos: "Ai, que vida boa, olerê/ai, que vida boa, olará". E assim, como um contraponto a "Dr. Getúlio" e, ao mesmo tempo, voltando o pêndulo ao lado mais político - mas sem concessões apologéticas -, Chico compôs uma canção que será antológica: "Vai passar", que veremos mais adiante.
"Pelas tabelas" tem uma melodia, diríamos, cambaleante, oscilando em notas mais baixas e mais altas num mesmo verso. Isso acontece sempre nos pares de versos 1 e 2, 5 e 6, 9 e 10..., e assim sucessivamente, com intervalo de dois versos entre eles, cuja melodia muda, tornando-se retilínea, mais uniforme. Então, temos em toda a letra dois pares de versos que se sucedem: um par cambaleante e outro retilíneo, até o final.
É incrível como, na obra de Chico Buarque, as canções estão feitas com uma coerência extrema entre a música e a letra. Aqui no caso de "Pelas tabelas", a alternância dos pares de versos citados é coerente com a oposição que vimos entre o individual e o coletivo. Podemos pensar, portanto, que o drama individual corresponde aos pares de versos cambaleantes, pois é o próprio sujeito da canção que anda "pelas tabelas", pela desorientação, embriaguez ou perda de referências. E o coletivo se apruma nos versos retilíneos, todos juntos numa mesma direção por um objetivo comum: a conquista das eleições diretas.
A não-solução do conflito entre indivíduo e massa se inscreve no próprio desenrolar da melodia, que ora cambaleia, ora segue em linha reta, até o último verso, sem variações dessa estrutura. Aliás, tudo isso ocorre de um modo insistente, afinal são 36 versos! Uma das maiores letras, junto a "Construção" e "Meu caro amigo", por exemplo. E nesse longo período, o protagonista da canção tampouco tem seu pequeno drama resolvido: repetem-se as expressões "Eu achei", "eu pensei"..., sem que o indivíduo tenha certeza de nada. A extensão da música parece reforçar essa ideia: a de que não há uma solução para o sujeito que busca a (ex?) amada em meio à multidão.
Impossibilidade de uma verdadeira fusão entre a o indivíduo (a singularidade) e o coletivo (a massa anônima)?
O amor culpado: "Mil perdões" (1983)
https://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=milperdo_83.htm
Entre as duas canções que têm a ver com a realidade política do Brasil, "Pelas tabelas" e "Vai passar" (que veremos mais adiante), Chico Buarque dá a conhecer "Mil perdões", composta para o filme "Perdoa-me por me traíres", de Braz Chediak, baseado numa obra teatral de Nélson Rodrigues. Na verdade, como o filme é de 1980, a canção foi criada nessa época ou antes, mas aparece gravada no disco "Chico Buarque", de 1984, o mesmo onde estão "Pelas tabelas" e "Vai passar"
A primeira estrofe da canção coloca o problema: um casal, no qual um pergunta demais e o outro perdoa. Quem perdoa, o homem ou a mulher? Ou é um casal de pessoas do mesmo sexo? Na verdade, não se sabe. Como sempre, a letra comporta uma ambiguidade. O que está claro é o sentimento de desconfiança. Em todo caso, um dos dois pergunta demais:
Te perdoo
Por fazeres mil perguntas
Que em vidas que andam juntas
Ninguém faz
Um relacionamento amoroso (ou, pelo menos, de grande amizade) envolve os ciúmes, mas aqui se propõe um espaço de liberdade individual, sobre o qual não se devem fazer perguntas. Por respeito a esse espaço ou para que não se descubra nenhuma infidelidade? Seja qual for a resposta, a pessoa a quem o outro pergunta está disposta a perdoar essa indiscrição, e mais:
Te perdoo
Por pedires perdão
Por me amares demais
Em apenas dois versos, Chico torna a realidade dessa relação muito complexa e ambígua. O sujeito da canção (quem declara "te perdoo") perdoa o outro pelas coisas inadequadas ou inoportunas que ele faz. Por exemplo, o fato de ele fazer perguntas "que ninguém faz". No entanto, também o perdoa por pedir perdão. Ora, não só é inoportuno seu comportamento como também seu arrependimento! Seria este um ato negativo? Além do mais, é incômodo o fato de o outro "amar demais", o que pode significar um amor possesivo, dominador.
E, por amar demais, o outro persegue o ser amado:
Te perdoo
Te perdoo por ligares
Pra todos os lugares
De onde eu vim
Por um lado, há uma tentativa de controle, de monitoramento dos passos do ser amado. Por outro lado, há a esquiva, o desencontro, o ser amado buscando seu espaço de liberdade, tratando de escapar da dominação do outro. No entanto, essa fuga esbarra na violência que o outro adota ao se desesperar:
Te perdoo
Por ergueres a mão
Por bateres em mim
Embora esse casal possa ser qualquer um, de quaisquer sexos, não podemos deixar de pensar no casal tradicional - pelos menos aos olhos públicos -, heterossexual, no qual, por muito tempo, o homem era o "chefe de família", com tudo o que isso implicava: machismo, domínio das finanças, controle dos movimentos da mulher, ciúmes. E, nos casos mais sérios, a violência familiar exercida pelo marido.
Por isso, o desejo desse ser amado por fugir, sentir-se livre:
Te perdoo
Quando anseio pelo instante de sair
E rodar exuberante
E me perder de ti
Notemos que a expressão "te perdoo" se repete em cada estrofe, como um paralelo ao "amor demais". Aqui temos um "perdão demais" (ora, é o próprio título da canção, irônica, utilizando a fórmula social, hiperbólica, de desculpas: "mil perdões"). E os motivos do perdão vão se acumulando: pedir perdão, amar demais, telefonar para todos os lugares, bater, mas agora também o próprio desejo da pessoa amada de estar livre, sozinha.
Pela primeira vez, não se trata mais de perdoar uma atitude do outro, mas de si mesmo: o ato de sair, de "rodar exuberante" sem o controle do outro. No entanto, temos outra ambiguidade: a pessoa que busca sua liberdade não pede perdão por sair, ao contrário, perdoa o outro por ter saído! Agora, parece ser ela quem tem um certo arrependimento, por fazer o outro sofrer, certamente, com sua ação de independência. Ou seria uma espécie de tênue vingança, "perder-se" dele contra a violência sofrida, quando ele bateu nela?
E tem mais: toda atitude possessiva de um tem como consequência a falta de sinceridade do outro. Para poder "perder-se", sentir-se livre por algumas horas, a pessoa amada é obrigada a agir de outro modo:
Te perdoo
Por quereres me ver
Aprendendo a mentir (te mentir, te mentir)
Para poder responder aquelas "perguntas que ninguém faz", a pessoa amada (amada "demais"...) é obrigada pelas circunstâncias a aprender a mentir. O verbo aprender nos mostra que ela não mentia, mas que é empurrada a esse aprendizado pelo outro.
Há, agora, um giro na situação, pois já não se trata de um perdão a uma atitude própria, mas sim a uma atitude do outro, que a obriga a mentir. Dupla vingança: a condenação da forma de agir do outro e a confissão de seu desejo de liberdade, desejo que se acentua na estrofe seguinte:
Te perdoo
Por contares minhas horas
Nas minhas demoras por aí
As "demoras" da pessoa amada reforçam aquele espaço de independência apontado antes, os "lugares de onde vim", o seu "rodar exuberante" por lugares distantes da tentativa de controle. E essa independência toma a forma quase de uma crueldade:
Te perdoo
Te perdoo porque choras
Quando eu choro de rir
Aqui se inverte a relação entre o "forte" (o que pretende controlar a situação e pune a "falta" da pessoa amada com violência) e o "fraco" (a pessoa que tudo perdoa, inclusive essa violência). De fato, é o possessivo que chora, e é a pessoa amada, perseguida, que ri.
Mas, novamente, esse perdão se torna complexo: não somente se dirige às atitudes do outro de tentar controlá-la (supondo que seja uma mulher), mas também ao fato de ele chorar (supondo que seja um homem).
Repete-se, aqui, o estranhamento presente na segunda estrofe: há um duplo perdão, um que visa às atitudes condenáveis; e outro que recai sobre o arrependimento do outro (o fato de ele pedir perdão e de chorar). Outra possível ironia, até crueldade: será que a pessoa amada considera o outro um ingênuo? Em todo caso, ela ri...
E no último verso, sim, essa pessoa amada confessa as demoras, as andanças, as horas em que se perde por aí: "Te perdoo por te trair". À confissão ferina, se acrescenta outra dubiedade, própria das letras de Chico Buarque: ela não perdoa o outro por ser traída, mas por trair! É como se esta pessoa se adiantasse à condenação do outro pelo fato de traí-lo. Em vez de esperar pelo perdão do outro, ela é quem o perdoa por ser traído. Inversão dos papéis, inversão da moral tradicional, que acaba colocando o casal hegemônico de uma época, com o marido machista, em questão. Quem trai (a liberdade, a independência, a integridade do ser amado) não será o traído?
A canção tem quatro partes, todas começando com "Te perdoo". Esta repetição exagerada (a expressão aparece 11 vezes!) acentua o problema do casal, ao mesmo tempo em que a letra vai enumerando os casos em que se dá esse perdão.
Mas, na terceira parte, há uma diferença na melodia e na extensão dos versos. Aí se introduz, pela única vez, o desejo explícito do sujeito da canção de sair, ser livre. Ao mesmo tampo, a melodia alcança sua nota mais aguda, tornando evidente a intensidade do desejo. E esta parte termina com outra repetição, a do verbo "mentir", flagrando as consequências da obsessão da pessoa amada em seu ciúme inoportuno, numa espécie de desabafo.
Passada essa intensidade, a canção volta à melodia anterior, repetindo, na quarta parte, a estrutura das duas primeiras. Há, portanto, essa subida de tom no meio da música, para voltar a um ponto mais baixo, menos intenso, como uma conclusão, o que é coerente com a declaração final da protagonista, numa espécie de fechamento da questão: a confissão da traição.
Esta canção é centrada num drama individual, mas na voz (provavelmente, como vimos) de uma mulher, expondo a realidade das relações amorosas problemáticas, o ciúme e o machismo. Já na próxima canção, Chico Buarque volta à questão do coletivo, mantendo esse pêndulo em que se move sua obra, do individual ao social. Trata-se de um clássico que se tornou, também, um emblema do fim da ditadura militar: "Vai passar".
A ofegante liberdade: "Vai passar" (1984)
https://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=vaipassa_84.htm
Ao contrário da canção "Já passou", que fala de uma paixão não correspondida ou, pelo menos, que pertence ao passado e deixou mágoas, ou de "Mil perdões", na qual uma relação amorosa perpassada pelo ciúme e pela traição seguramente termina mal, "Vai passar" aponta para o futuro com certa esperança. Do mesmo ano que "Pelas tabelas", essa parceria com Francis Hime volta a apostar na celebração coletiva abordando diretamente um tema político, diferenciando-se, portanto, da canção analisada anteriormente. É como se Chico Buarque tratasse os dois aspectos simultaneamente: a importância do indivíduo, de sua liberdade de ação (em "Pelas tabelas"); e a necessidade do vínculo com o movimento social (em "Vai passar"). Isso, no mesmo ano: 1984.
Com efeito, "Vai passar" começa com o anúncio da festa popular por excelência, o Carnaval, tão presente na trajetória de Chico Buarque e que reúne o aspecto coletivo, de rua (em oposição ao espaço privado) e de celebração:
Vai passar
Nessa avenida um samba
popular
Cada paralelepípedo
Da velha cidade
Essa noite vai
Se arrepiar
A "avenida" sugere um desfile de Carnaval com seu samba conhecido, cantado por todos na "velha cidade", cidade que tem história e que está prestes a presenciar algo emocionante. A própria canção é um samba-enredo, com seus instrumentos e seu ritmo característicos, como um "samba popular" - porque é muito conhecido ou porque tem um "caráter" popular ao se referir ao povo.
O fato de que é "a cidade" quem vai se arrepiar (e não "as pessoas"), em cada um de seus paralelepípedos, dá a ideia de algo que transcende o público atual e abrange a própria história da cidade, num deslocamento que é recorrente nas letras do compositor. E mais: há a noção de totalidade, pois desde cada pedra haverá uma emoção, até as pessoas, envolvendo todo o espaço.
Também a imagem dos foliões pulando nessas ruas, que se emocionam como as pedras, reforça o contato afetivo e histórico entre os habitantes e sua própria cidade, a sua terra. Tão histórico, que o compositor não falou em "asfalto", mas nos "paralelepípedos" de ruas antigas. Ou, talvez, as pedras que se escondem sob o asfalto moderno: a história que ficou soterrada, mas ainda vive. O que é corroborado na continuação:
Ao lembrar
Que aqui passaram
sambas imortais
Que aqui sangraram pelos
nossos pés
Que aqui sambaram
nossos ancestrais
A "lembrança" une o passado e o presente, porque esta celebração de hoje resgata, de alguma maneira, o passado desse coletivo, marcado já pelo possessivo "nossos". Tanto os sambas imortais como os ancestrais invocam uma linha de continuidade que, apesar de ser quebrada, por vezes, por algo que sangra, aponta para algo a ser comemorado.
O aspecto festivo está na própria harmonia, que é armada em acordes maiores nessa primeira parte. Mas o sangramento também pode nos remeter às lutas sociais por que passaram os ancestrais, para que nós possamos, agora, passar por esse caminho aberto por eles.
No entanto, ao se iniciar a segunda parte, a canção introduz a tristeza e a seriedade dos acordes menores, quando justamente fala desse passado no qual houve sangue, conflitos, nada a comemorar:
Num tempo
Página infeliz da nossa
história
Passagem desbotada na
memória
Das nossas novas gerações
A "página infeliz" poderia ser tantas na história do Brasil, mas aqui pensamos, evidentemente, na ditadura militar dos anos 1964-1984, em cujo último ano justamente Chico Buarque compôs esta canção. Esse período, na avaliação do compositor, permanece obscuro, desconhecido, esquecido pelas novas gerações, as chamadas "geração AI-5", "geração Coca-Cola", os "filhos da ditadura", etc. Por isso, pela memória daqueles que, no passado, lutaram, é preciso recordar.
A "passagem desbotada", além de falta de colorido, também nos faz pensar em seu aspecto transitório, passageiro. Por um lado, há uma continuidade histórica de lutas e da própria arte (os sambas). Por outro, os períodos históricos passam e são esquecidos. O próprio título da canção como que nos adverte: "Vai passar"... Nada permanece. Nem o próprio samba de Chico Buarque? Em todo caso, a letra reforça a inserção do indivíduo no coletivo, preocupado com "nossas novas gerações".
E o que acontecia nesse período funesto da nossa história?
Dormia
A nossa pátria mãe tão distraída
Sem perceber que era subtraída
Em tenebrosas
transações
A "pátria mãe", referência ao Hino Nacional do Brasil ("Ó Pátria amada!/Dos filhos deste solo és mãe gentil"), sofria, nessa época recente, as "tenebrosas transações" das quais fomos vítimas. Percebemos aqui que, segundo o compositor, "nós" somos a pátria, enquanto as "transações" vieram de algo de fora, que não é a pátria. Dupla referência: à ingerência estrangeira na nossa vida política e à existência, dentro do Brasil, de forças sociais "contra a pátria", que era subtraída, quer dizer, diminuída, roubada, traída por baixo, às escondidas.
Aqui se opõem dois níveis baixos, subterrâneos: há as "transações tenebrosas", por baixo do pano, que atacaram a pátria subtraída; mas há, por outro lado, o que se oculta no solo das cidades, debaixo dos pés do povo, dos sambistas ("cada paralelepípedo..."), que resgata as lutas sociais contra a tirania. Por fim, a palavra transações nos leva à realidade do comércio, da manobra econômica, da exploração.
Na parte seguinte, a harmonia da canção volta a ser armada com acordes em tom maior (mais alegres, festivos), apesar de seguir falando de uma situação trágica do passado, mas desta vez o sujeito são os "filhos" dessa pátria que, contrariando a letra do Hino Nacional, não tinha nada de gentil:
Seus filhos
Erravam cegos pelo continente
Levavam pedras feito penitentes
Erguendo estranhas
catedrais
Os filhos da pátria (em "Cálice", Chico escreveria: "melhor seria ser filho da outra") são apresentados nesses versos como migrantes, retirantes carregando suas penas, não religiosas, mas políticas. "Penitentes" se refere a quem sofre uma pena, no caso, dupla: a de ser exilado e a de sofrer uma pena judicial, melhor dizendo, na realidade da ditadura militar, uma pena paramilitar. Mas também "penitente" tem a ver com quem faz penitência ou confissão dos pecados, o que alude diretamente às confissões sob tortura arrancadas pelos torturadores na época mais dura da repressão no Brasil, de 1968 a 1973. Por último, "penitente" traz a noção de "arrependimento": aqueles que "erraram" politicamente, agora "erravam", sem rumo, pelo continente? Em todo caso, erravam, sim, no sentido de vagar, viajar, tentar sobreviver em países como o Chile (até o golpe de 1973), a Argentina (até o golpe de 1976), até no México.
Mas, como se não bastassem as penas, esses filhos da pátria carregavam pedras, como filhos de Sísifo (popularizado pelo livro de Albert Camus O mito de Sísifo, de 1942): este estava condenado a carregar pedras eternamente até o cume de uma montanha, mas sempre, antes de chegar ao seu objetivo, as pedras caíam e voltavam à base. E a expressão "levavam pedras" não deixa de aludir, igualmente, à violência com que os governos militares da época agrediram os que lutavam contra o regime ditatorial.
Finalmente, no período da Quaresma (o período de quarenta dias antes da ressurreição de Cristo, comemorado na tradição cristã, que vai da quarta-feira de cinzas - o fim do Carnaval - até o Domingo de Ramos, antes da Páscoa), há procissões nas quais os fieis carregam pedras como penitência. É explícita a referência às igrejas, pois na letra os errantes erguiam "estranhas catedrais". A ironia de Chico Buarque é que, nesta canção, a sequência temporal se inverte: primeiro, há a "quaresma"; no final, há o Carnaval, como um "prêmio" pelo sofrimento passado anteriormente:
E um dia, afinal
Tinham direito a uma alegria fugaz
Uma ofegante epidemia
Que se chamava Carnaval
O Carnaval, o Carnaval
O dia final do sofrimento corresponde ao período do fim da ditadura militar no Brasil, oficialmente, em 1984, pois no ano seguinte assumiu o primeiro presidente civil depois de 24 anos: Tancredo Neves, não por eleição direta (a campanha "Diretas Já", referida na canção "Pelas tabelas", foi derrotada pelo Congresso Nacional, quem escolheu o novo presidente).
Mas Chico escreve que a alegria à qual esses "filhos da pátria" tinham direito era "fugaz". Não vai permanecer? Vai passar? Uma alegria que, mais uma vez, "se chama Carnaval", contagiante a ponto de ser uma "epidemia", mas sempre passageira - o Carnaval tem quatro dias e sempre nos faz lembrar a letra de "A felicidade", de Vinicius de Moraes ("Tristeza não tem fim/felicidade, sim"). Então, podemos pensar numa das primeiras canções de Chico Buarque, "Sonho de um Carnaval", que já trazia essa oposição sonho e Carnaval versus realidade sofrida. A diversão é breve, o sofrimento é longo.
Ao mesmo tempo, na parte seguinte da canção, são apresentados os que vão passar na avenida, os que merecem o prêmio da alegria fugaz:
(Vai passar)
Palmas pra ala dos barões famintos
O bloco dos napoleões retintos
E os pigmeus do bulevar
Nesse desfile, que tem blocos e alas de escolas de samba, há personagens estranhos. Temos as fantasias dos "barões", "napoleões" e "pigmeus", mas podemos pensar em suas qualificações: os famintos, referência à pobreza deixada pela política econômica da ditadura militar. Mas como são "barões", temos uma ideia de empobrecimento, de decadência; os "retintos", negros de todo o País, historicamente segregados a uma condição social precária. Mas também repintados, ou seja, renovados pelas fantasias, ainda que em uma situação efêmera, a do Carnaval; e os "pigmeus", que tanto podem ser negros como crianças - ou crianças negras -, ou gente sem importância, "de bulevar" como se diz do "teatro de bulevar", o que se faz na rua. Trata-se, então, de crianças de rua? Temos, portanto, um conjunto heterogêneo na designação (barões, napoleões, pigmeus), mas com um substrato comum, que é o pano de fundo da história imediatamente anterior do Brasil que deixou suas marcas na pobreza, na decadência, na existência de crianças sem teto (tema abordado também nas canções "Pivete" e "O meu guri").
Mas esses personagens, que pertencem a classes sociais excluídas do "desenvolvimento" brasileiro, agora entram em cena - pelo menos metaforicamente - como protagonistas (embora irreais, falsos, mera fantasia, ainda por cima uma cena efêmera). Daí a surpresa e a emoção na expressão: "Meu Deus, vem olhar". Um novo cenário se apresenta:
Vem ver de perto
uma cidade a cantar
A evolução da liberdade
Até o dia clarear
O que estava desagregado se uniu: é toda uma cidade que canta, um júbilo coletivo. Novamente, há aqui a presença da massa, de um corpo coletivo do qual, às vezes, o sujeito individual se aproxima e do qual, outras vezes, se afasta.
Se em "Sonho de um Carnaval" o sujeito se funde ao coletivo, em "Pelas tabelas" ele se afasta". Já em "Vai passar", o sujeito vislumbra como espectador (como em "A banda"), mas se emociona com o espetáculo, celebra com o corpo coletivo a chegada de um novo tempo, que Chico Buarque identifica como "a evolução da liberdade". De novo, um jogo de palavras significativo, em que a evolução, ao designar desenvolvimento do desfile de uma escola de samba, se refere neste caso também ao protagonismo dos que assumiram seu lugar no Carnaval, na festa, na celebração do fim da ditadura militar.
A canção termina com o refrão:
Ai, que vida boa, olerê
Ai, que vida boa, olará
O estandarte do sanatório geral vai passar
Ai, que vida boa, olerê
Ai, que vida boa, olará
O estandarte do sanatório geral
Vai passar
A imagem do "sanatório geral" nos remete à loucura, mas uma "loucura sã": a folia (etimologicamente, folia = loucura). Mas também podemos pensar em uma cura dos males anteriores, pois sanatório, descolado do contexto psiquiátrico, é um lugar para sanar, curar. E o que passa é o "estandarte", a marca do grupo que desfila, abrindo caminho. A mesma massa que, em "Pelas tabelas", tomava as ruas para reivindicar se manifestar, agora sobe ao cenário para comemorar. Não por acaso, se a canção "Apesar de você", de 1970, se tornou uma espécie de hino contra a ditadura militar, "Vai passar", de 1984, se transformou em um hino celebrando o fim da ditadura.
Esta canção tem uma particularidade: suas quatro partes são diferentes entre si, ao contrário de muitas outras composições de Chico Buarque, mais "simétricas". A letra não deixa de ser uma narração, e para isso a música e a melodia se desdobram em quatro fragmentos: o primeiro, que anuncia o samba e a história que será contada a seguir, tem acordes em tom maior - ressaltando a alegria, como já vimos. O segundo, com acordes em tom menor, introduz um toque de tristeza, coerente com a letra, na qual se narram as "tenebrosas transações". O terceiro fragmento continua a narração dessa história triste, mas já anuncia a celebração final depois do período negro da história do País, terminando os últimos versos já com acordes novamente em tom maior, mais alegres, justamente falando da "Uma ofegante epidemia/Que se chamava Carnaval". E o último trecho é a celebração final, uma espécie de apoteose própria do Carnaval, falando da "evolução da liberdade".
Por último, temos o estribilho: "Ai, que vida boa, olerê...", que finaliza a canção com versos próprios de um samba-enredo e com a expressão "Vai passar", retornando ao início.
Como percebemos, a estrutura da canção corresponde a uma passagem (como na avenida) de uma situação do passado triste a um presente qualitativamente diferente, com ares de promessa. Como sempre, na obra de Chico Buarque, o Brasil comparece em forma de problema e esperança. Mas a canção, de estrutura cíclica, para no presente da celebração. E o futuro? É uma boa pergunta para Chico Buarque, que na próxima canção se volta de novo para o passado.
O amor depois do amor: "Anos dourados" (1986)
https://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=anosdour_86.htm
Esta canção é mais uma parceria com o maestro de Chico Buarque, Tom Jobim, na qual duas pessoas comentam o amor que tiveram. Já desde 1965, com "Sonho de um Carnaval", Chico escreve histórias de amores fracassados, como vimos em "Quem te viu, quem te vê", "Sabiá", "A Rita", "Já passou", "Pelas tabelas", "Olhos nos olhos"... Em "Anos dourados", não é diferente, mas há um olhar lírico, sonhador, em direção àquele amor que passou, que não deixa de ter certo ar de nostalgia sem ser dramática, chegando inclusive a ter toques irônicos.
Com efeito, a ambiguidade que nos faz sorrir, em Chico Buarque, volta aqui neste tema que possui - como a própria letra diz - um ar de bolero e começa assim:
Parece que dizes
Te amo, Maria
Na fotografia
Estamos felizes
Desta vez, a imagem do amor que já passou se atualiza na foto, e realmente a declaração de amor e o ar de felicidade pertencem ao passado. Trata-se, é notório, apenas de uma imagem, mas que - como toda imagem - pode fazer sonhar.
Mas quem sonha? Podemos supor que é um homem quem fala a Maria: "Parece que dizes 'te amo' na fotografia...". Ou pode ser a própria Maria quem, ao olhar a foto, se dirige ao homem: "Parece que dizes 'te amo, Maria'". Também a afirmação "Na fotografia, estamos felizes" pode ser lida de modo irônico, desconfiado, pois talvez estivessem felizes somente na fotografia, não na vida real...
Em todo caso, quem fala nos versos seguintes é ela, a Maria:
Te ligo afobada
E deixo confissões
No gravador
Vai ser engraçado
Se tens um novo amor
De novo, há a distância entre os dois personagens, antes marcada pelo tempo e pela fotografia (não a visão real e direta do outro), agora pela secretária eletrônica. Essa distância acentua a ansiedade dela ("afobada") e, quem sabe, alguma declaração - amorosa? -, pois ela deixa "confissões".
Há um cruzamento entre essas confissões e um possível novo amor dele, que pode escutá-las - eis aqui um perigo. Será isso a causa da afobação? Ironia, pois, se esse novo amor escutar a mensagem, com certeza não vai ser nada "engraçado"...
A distância entre os dois é reforçada pela passagem do tempo. Apesar de a fotografia mostrar os dois juntos, a pergunta é: havia mesmo amor? Ou era apenas um sonho "dourado"?
Me vejo a teu lado
Te amo? Não lembro
Parece dezembro
De um ano dourado
Há uma contradição entre esse "esquecimento" dela e sua ansiedade nos versos anteriores, que se acentua na sequência:
Parece bolero
Te quero, te quero
Dizer que não quero
Teus beijos nunca mais
Teus beijos nunca mais
Contradição que se desdobra em outras. Em primeiro lugar, a repetição ostensiva da palavra "parece" aponta para a incerteza, uma memória equívoca. A verdade daquele amor que passou é posta em dúvida, como se fosse apenas uma ilusão, talvez por carregar uma aura romântica ("anos dourados", "dezembro" - mês de festas, de férias..., "bolero"). Em segundo lugar, ao contrário: parece ser que esse amor permanece, daí a confissão: "Te quero", e sua confirmação: "Dizer que não quero teus beijos, nunca mais". Mas, como sempre em Chico Buarque, sobretudo nesta letra eivada de sinuosidades, é possível desconfiar e ler essa declaração de outra maneira, atendo-nos ao verso final: "Teus beijos, nunca mais". Ora, a simples repetição do último verso, que poderia reforçar o desejo dos beijos dele pode, por outro lado, dizer exatamente o contrário: a impossibilidade de voltar a ter esses beijos. Aquele amor do passado pode ter sido real ou ilusório, mas não tem volta. Porém, deixou marcas:
Não sei se eu ainda
Te esqueço de fato
No nosso retrato
Pareço tão linda
Assim como o verbo estamos na primeira estrofe, aqui o possessivo nosso marca a cumplicidade, a união do casal (agora desfeita). De novo, o verbo parecer, em seu sentido de incerteza, mas também de imagem (parecer = aparecer): a ilusão de uma época "dourada", quando havia felicidade e beleza, o que produz novamente na Maria atual uma perturbação:
Te ligo ofegante
E digo confusões no gravador
É desconcertante
Rever o grande amor
A mesma perturbação anterior, num quadro de distância entre os dois (antes, "afobada", agora "ofegante"), neste ponto vem acompanhada da confissão de desconcerto diante da ideia de que um "grande amor" se dissolve. Tudo isso emociona Maria:
Meus olhos molhados
Insanos, dezembros
Mas quando me lembro
São anos dourados
As lágrimas de Maria embaralham o sentido dos primeiros versos. Em paralelo com a ambiguidade da quarta estrofe, aqui também se instala a dúvida (dúvida em Maria, dúvida em nós). O problema reside na vírgula. Se ela existe, podemos concluir que os olhos de Maria são insanos (por ainda guardar na memória um amor passado, que já não existe? Por inventar um passado?). Se, ao contrário, a vírgula não existe, então lemos que os dezembros são insanos (o do passado, o da foto, quando tudo parecia romântico, mas era uma loucura; e este dezembro, atual, em que recordar um amor que já não tem mais nada a oferecer, também é uma insanidade). Mas ainda há mais: os olhos úmidos de Maria são os da foto, olhos de felicidade dourada? Ou são os olhos de agora, emocionados ao registrar um amor que se acabou?
Quanto à vírgula de "insanos, dezembros", podemos dizer que as letras das canções sofrem variações, aparecem num disco de um modo, e em outro disco de modo diverso, como também às vezes são cantadas com ligeiras modificações por diferentes intérpretes.
No livro Chico Buarque: letra e música, publicado em 1989 pela Companhia das Letras, consta a vírgula: "insanos, dezembros". No Songbook Chico Buarque, organizado por Almir Chediak, de 1999, também está a vírgula neste verso. No Cancioneiro Jobim, publicado em 2001 pela Jobim Music, não consta a vírgula, apesar de haver algumas vírgulas nesta e em outras canções. Mas pode ter sido um pequeno deslize no critério de colocá-las ou não. Finalmente, no livro Histórias de canções: Chico Buarque, de Wagner Homem, não há vírgula. Portanto, permanece a ambiguidade, que volta a surgir na parte final da canção:
Ainda te quero
Bolero, nossos versos são banais
Mas como eu espero
Teus beijos nunca mais
Teus beijos nunca mais
O que Maria parece esperar é uma impossibilidade ("teus beijos, nunca mais"), mas também podemos sentir aqui uma exclamação: "Como eu espero!", sem, no entanto, fundar a esperança numa possibilidade concreta.
Assim como, em diversas letras de Chico Buarque, o Carnaval se opõe à realidade cotidiana e a folia (uma espécie de loucura) vai contra o dia a dia racional e opressivo, em "Anos dourados" também o que era um amor visto com a aura "dourada", de felicidade e beleza, parece estar associado a algo insano: anos "dourados", anos loucos, em que a vida era um bolero, fantasiado e valorizado pela memória. Mas, agora, a realidade se impõe, causando a perturbação que deixa Maria ofegante, dizendo confusões.
Esta canção contrasta com as de letras mais longas, com versos clássicos, também extensos. Em "Anos dourados", temos apenas duas partes, e os versos são, majoritariamente, de cinco sílabas. O clima de bolero está inscrito não somente no ritmo suave, mas no tom baixo e na lentidão da melodia. A estrutura da música coincide com o ar de passado, de anos 1950, da letra. E, como ocorre muitas vezes nas composições de Chico Buarque, as notas mais agudas, que tendem ao clamor, estão justamente na (possível) confissão do amor, na primeira parte, em "dizer que não quero/teus beijos nunca mais", e na segunda parte, "mas como eu espero/teus beijos nunca mais".
Além disso, apesar de toda a canção estar composta com rimas (por exemplo, "dizes/Maria/fotografia/felizes"), no final de cada parte, no momento da confissão mais aberta e da intensidade melódica, essas rimas mudam, e o que eram grupos de três ou quatro versos rimados agora se concentram em dois versos em que se repete a mesma rima, como insistindo na força do amor (¨bolero, te quero"), e dois versos finais repetidos que não rimam com os versos anteriores ("Teus beijos nunca mais"), o que marca como uma abertura, uma saída do padrão anterior em direção a algo novo, aberto - uma possibilidade de retorno? Talvez, mas não esqueçamos que os versos finais que se repetem, incisivos, podem estar dizendo (se admitirmos a vírgula): "Teus beijos? Nunca mais!". O amor tem fim?
Pintura a gol: "O futebol" (1989)
https://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=ofutebol_89.htm
Chico Buarque sempre foi tão apaixonado pelo futebol que tem um time próprio - o Politheama, que inclusive possui hino - e nada mais, nada menos do que um campo de futebol para praticar. Ainda que não seja um tema recorrente em sua obra, o futebol comparece aqui como objeto de uma homenagem.
O título é genérico, não nos informa sobre o futebol brasileiro ou sobre o alemão, nem mesmo sobre o time para o qual Chico Buarque torce, o Fluminense (que aparece em uma canção sua como "o tricolor"). Portanto, podemos ler este título como uma homenagem ao futebol em geral, à sua feição esportiva mais pura, para além de circunstâncias determinadas de um time, de um jogo, etc. Com efeito, Chico não nomeia ninguém até o final da música, quando, aí sim, faz referência a alguns de seus ídolos, jogadores brasileiros que, certamente, o empurraram para esta paixão.
Esta é, por razões que apresentarei mais adiante, uma dessas canções singulares da obra de Chico Buarque. Vejamos.
Na primeira estrofe, temos:
Para estufar esse filó
Como eu sonhei
Só
Se eu fosse o Rei
Em três versos enxutos, Chico Buarque concentra diversos sentidos. Utilizando uma expressão do jargão futebolístico, "estufar esse filó", ou seja, fazer um gol (fazer com que, com o golpe da bola, se estique o material com que se fazem as redes), o sujeito desta canção confessa seu sonho de, ele também, poder ser como o "Rei" (trata-se, obviamente, de Pelé): fazer um gol inesquecível. Podemos também ler a palavra "só" como "sozinho", o que marca uma distância entre o sujeito que deseja (solitário) e o ato mesmo de jogar num time de futebol (em grupo). Trata-se, novamente, da dicotomia individual/social, que surgiu em canções anteriores. O sujeito da canção, aqui, não é um jogador profissional, está afastado, em outra área - a da arte?
Para tirar efeito igual
Ao jogador
Qual
Compositor
Sim, a comparação se faz entre um jogador de futebol e um compositor: como, na canção, imitar um gol exemplar? Como produzir um "efeito" semelhante? Isso, num duplo sentido: o efeito como um recurso técnico (uma jogada ensaiada, um toque preciso, treinado, surpreendente), mas também no sentido de provocar um efeito no espectador (no caso da música, no ouvinte).
Para aplicar uma firula exata
Que pintor
Para emplacar em que pinacoteca, nega
Pintura mais fundamental
Que um chute a gol
Com precisão
De flecha e folha seca
Vai se delineando, na letra, uma igualdade entre futebol e arte. Além da figura do compositor, também a do pintor aparece, e a "firula" como pintura, algo a ser exposto em uma pinacoteca. Chico Buarque, de propósito, vai mesclando uma linguagem popular a outra mais "culta" (no sentido de uma variedade linguística usada em espaços considerados "cultos"). Assim, a "filó", "firula", "nega", "flecha" e "folha seca", se misturam "compositor", "pintor", "pinacoteca", "pintura".
As expressões flecha e folha seca apresentam uma complexidade. Por um lado, temos a precisão e a velocidade semelhantes ao percurso de uma flecha numa determinada jogada, um chute a gol. Por outro lado, "folha seca" se refere a aproveitar rapidamente quase sem pensar, uma oportunidade, um chute sem que a bola tenha tocado o solo antes. Mas a imagem de uma folha seca não deixa de nos remeter, também, à noção de leveza, lentidão, delicadeza. E mais: a incerteza de sua trajetória, ao sabor de um vento de outono, também pode fazer parte daquele efeito tão desejado, não somente para provocar uma sensação no público, mas mesmo para atingir o objetivo do gol, enganando o goleiro, como se deu num gol de Didi na Copa da França em 1958, quando a bola, desviando-se no ar, "estufou o filó".
O que dá o status de arte a uma jogada do futebol é seu efeito, mas também sua precisão. A firula é um adorno, um preciosismo, recurso como o de um pintor ou um compositor para produzir o efeito no público. Inclusive, o futebol, aqui, se sobrepõe à arte, sendo um chute a gol "mais fundamental" que uma pintura. No entanto, como preservar, guardar esse gesto do jogador?
Se na arte se registram as obras (vemos uma pintura num museu, escutamos uma música num disco), como "guardar" um gol, a não ser nas efêmeras imagens da televisão? Portanto, temos uma contradição: o futebol, em certo sentido superior à arte em sua fatura e em seu efeito, é efêmero, enquanto uma composição musical e uma pintura são duradouras. Arte longa, futebol breve?
A estrofe seguinte vem complicar ainda mais a imagem das jogadas como procedimentos artísticos:
Parafusar algum João
Na lateral
Não
Quando é fatal
Para avisar a finta enfim
Quando não é
Sim
No contrapé
Numa linguagem que parece enigmática, Chico Buarque vai tecendo a imagem de um drible, com certeza tendo o exemplo de Garrincha na memória. Com efeito, o drible paralisa o jogador do outro time, o parafusa no gramado - ação tão espetacular de Garrincha, que chegava a fazer o jogador adversário cair sem ter tocado em seu corpo. Era uma jogada fatal, na qual o adversário ficava sem ação, derrotado. Esses dribles constituíam as fintas de Garrincha.
Finta vem do italiano e tem a ver com fingir, enganar. Justamente, Garrincha ludibriava o adversário anunciando um movimento que não chegava, um chute que não saía, um movimento que, no final, não se realizava. O jogador oposto ficava numa total indecisão. É o balé do "sim" e do "não", que Chico desenha em seus versos, opondo-os simetricamente como "quando é"/"quando não é", tudo isso "no contrapé", ou seja, numa posição em que o adversário é pego sem apoio, incapaz de reação. Toda essa estrofe é uma homenagem a Garrincha, mas, ao mesmo tempo, é a própria canção exercitando-se como um atleta da bola.
Essa complexidade do passe, do drible, conformada pelas melhores jogadas dos pés de um jogador-artista, se confirma no primeiro verso da estrofe seguinte:
Para avançar na vaga geometria
O corredor
Na paralela do impossível, minha nega
No sentimento diagonal
Do homem-gol
Rasgando o chão
E costurando a linha
A "vaga geometria" é um oximoro, uma expressão poética de Chico Buarque que lembra o "claro enigma" de Carlos Drummond de Andrade: uma contradição em termos. Mas é isso mesmo que, para o compositor, significa o futebol-arte nos pés de um Garrincha. A lógica se esvai ou se complica, surgindo a surpresa. Também podemos pensar em "vaga" não somente como uma geometria imprecisa, mas como algo que vacila, incerto, como a própria suspensão do tempo à qual o público era atirado pelo talento de Garrincha. Ainda mais: pela própria coreografia de Garrincha, que bamboleava diante do adversário, mas realizava uma jogada precisa, quase matemática.
Nessa geometria estrita de um campo de futebol, com suas linhas inamovíveis, tudo se move nos dribles vertiginosos dos craques, deixando o espectador meio tonto. Portanto, é uma geometria atacada pelo vago, pelo impossível, na qual o homem-gol - que aqui é o símbolo do grande artista - tem um "sentimento diagonal", uma fusão do corpo do atleta com o seu meio, diríamos: a sua linguagem, com a qual sua inserção corporal no campo ganha uma força tão extraordinária que é capaz de rasgar o chão. Um corpo que se confunde com o campo, então não sabemos se o "corredor" é o jogador no desenvolvimento rápido de alguma jogada ou se é o próprio espaço por onde ele se desloca, abrindo caminho por entre os adversários. Da mesma maneira, essa arte, limitada ao espaço contido da geometria, a transcende (como numa "paralela do impossível") para, livre assim das amarras das linhas predeterminadas, confeccionar seu próprio desenho, o de sua jogada, de sua arte feita dribles e gols. Arte acabada, pintura perfeita, composição redonda (como a própria bola): o rasgar do campo e a sua costura.
Tudo isso tem um impacto digno da própria arte:
Parábola do homem comum
Roçando o céu
Um
Senhor chapéu
Para delírio das gerais
No coliseu
Como vimos anteriormente, a linguagem do futebol, popular, se confunde aqui com a elegância da linguagem poética de Chico Buarque. Da mesma forma, o "homem comum" - o espectador dos jogos de futebol - chega a "roçar o céu" com as jogadas a que assiste: novamente, temos o futebol ao nível de uma grande arte, uma espécie de "elevação espiritual" atribuída tantas vezes às criações humanas mais impressionantes. No caso específico, o que provoca esse sentimento nesta estrofe é "um senhor chapéu", gíria futebolística para o drible com a bola passando por sobre o adversário. Não podemos deixar de pensar na expressão "tirar o chapéu", sub-reptícia, aqui, como um elogio velado ao futebol-arte.
Esse fascínio produzido pelo futebol faz delirar as "gerais" - outra palavra do jargão citado, que significa a parte do estádio onde os espectadores ficam de pé. O delírio - etimologicamente, a saída dos sulcos agrícolas, ou seja, "sair dos trilhos", fugir da cotidianidade - é produzido pelo espetáculo para as massas, como um grande circo ou um coliseu, espaço histórico de diversão de grande público na Roma Antiga. Ora, está implícita a expressão latina panem et circenses, "pão e circo", que critica o fato de os governos darem um nível de subsistência reduzido, mas agregado à diversão como forma de fazer o povo suportar as más condições de vida. O futebol, então, pode elevar o cidadão além de sua precária contingência, como o fará o Carnaval em tantas canções de Chico Buarque.
Mas o futebol também pode fascinar o artista - no caso, o compositor -, ao depará-lo com a excelência de seus procedimentos (dribles, folhas-secas, chapéus...), fazendo-o refletir sobre seus próprios recursos:
Mas que rei sou eu
Para anular a natural catimba
Do cantor
Paralisando esta canção capenga, nega
Para captar o visual
De um chute a gol
E a emoção
Da ideia quando ginga
A última estrofe traz de volta a imagem do "rei" do futebol para, por contraste, salientar a incapacidade do compositor, quem tem uma "natural catimba" - outra gíria do futebol, que significa a lentidão, ganhar tempo sobre o adversário (talvez uma referência bem-humorada ao próprio Chico Buarque, em cuja carreira, muitas vezes, tardou em terminar uma canção ou uma letra para uma música de algum parceiro).
Essa paralisia do artista é contrária, inferior mesmo, à do jogador de futebol. Neste, a catimba é um recurso para vencer o jogo. Naquele, é uma falta, uma dificuldade. Por isso, a canção pode sair "capenga", manca, com movimentos em falso, em oposição à perfeição do balé de um Garrincha, por exemplo, ou de um Pelé. Mais do que isso: não só o compositor é incapaz de realizar uma canção perfeita, como não consegue dar conta de traduzir numa criação a perfeição - artística, poderíamos dizer - do futebol. Como "captar o visual de um chute a gol"?
O fascínio e a humildade de Chico vão ainda além. No futebol, quando há essa dança do drible, por exemplo, quem "ginga" não é somente o corpo do jogador, mas a "ideia". Nessa imagem, Chico funde o corpo com a inteligência e a intuição, a preparação física com a esperteza, a força muscular com a visão de jogo. E é essa fusão entre corpo e mente, materializada numa jogada exemplar, que tanto maravilha os espectadores, provocando essa única emoção. Aqui, Chico esboça uma definição para o futebol: "uma ideia que ginga", que nos faz pensar como o compositor argentino Enrique Discépolo definiu o tango: "um pensamento triste que se dança".
Para terminar a canção como uma homenagem explícita, Chico Buarque reproduz, como um locutor, uma jogada na qual os passes são dados de um ídolo a outro - jogadores famosos dos anos 1950 -, todos admirados pelo compositor:
(Para Mané para Didi para Mané
Mané para Didi para Mané para Didi
Para Pagão para Pelé e Canhoteiro)
Canção singular na obra de Chico Buarque, "O futebol" foi composta em três partes, comparável, neste ponto, a "Construção" - todas as outras analisadas aqui têm duas partes, quatro ou mais. Justamente com "Construção", possui uma estrutura diferente: versos livres, alguns compostos de mais de dez sílabas, outros com apenas uma (como em "Só", "Não"). Da mesma forma, uns com uma melodia mais rápida (como "Para emplacar em que pinacoteca, nega"), outros mais lentos ("Com precisão"). Isso vai configurando uma música de recursos variados, que é coerente com a complexidade da letra e com os significados diversos que se podem ler nesta composição complexa, que tenta retratar a riqueza do futebol.
Assim como a letra vai em ziguezague, "driblando", ilustrando a jogada de futebol mais "artística" como a de um Garrincha, a música também se desenrola em acordes incomuns, numa harmonia dissonante, mas em ritmo de samba. Essa harmonia quase não descansa (imitando a correria num campo de futebol): os acordes, em vez de apontar para um relaxamento, levam, ao contrário, a outro estado de tensão.
A melodia tampouco é simples ou comum: com frases de tamanhos e velocidades diferentes, vai compondo, também, seus movimentos em campo, desde tons mais baixos (como nos lacônicos "Só", "Qual") até os mais agudos, quase como os gritos dos jogadores (como em "Para delírio das gerais"). A parte final, homenagem aos jogadores citados, é ela mesma um drible, sendo mesmo difícil de cantar. É o compositor tentando se aproximar da excelência do futebol-arte, que exerce um fascínio sobre o grande público.
E uma canção? Consegue o mesmo fascínio que o futebol? E um compositor, como Chico Buarque, pode realizar a mesma maravilha?
Em três versos, o sujeito da canção, na verdade, se dirige a uma mulher, "nega", minha nega", como a lhe perguntar: é possível um compositor fazer o mesmo?
Mas sua nega não responde.
Aquela batucada mudou: "Baticum" (1989)
https://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=baticum_89.htm
Esta alegre canção, feita em parceria com Gilberto Gil, na verdade, trata de coisas não tão alegres assim, apesar de ser uma festa, daí o título "Baticum", que tem a ver com batucada, batuque, ritmo, enfim, algo festivo. No caso, se trata de uma festa realizada na beira do mar e que é contada, posteriormente, pelo sujeito da canção, que diz na primeira parte:
Bia falou: ah, claro que eu vou
Clara ficou até o sol raiar
Dadá também saracoteou
Didi tomou o que era pra tomar
Ainda bem que Isa me arrumou
Um barco bom pra gente chegar lá
Lelê também foi e apreciou
O baticum lá na beira do mar
A longa enumeração de nomes, que na verdade são apelidos, cria um ar de intimidade, de conhecimento mútuo entre os que viveram a festa. Essa intimidade está associada à alegria, ao divertimento intenso, marcado pelas expressões "até o sol raiar" e "tomou o que era pra tomar", por exemplo. E esses apelidos conformam um grupo baseado na amizade, não na fama, no sucesso, nem mesmo em uma categorização por profissão ou classe social. Além disso, o fato de a festa ter sido na "beira do mar" lhe agrega uma aura especial de luau, de noite de verão.
Essa verdadeira confraternização está baseada, também, na música e na dança, que não só aparecem no verbo "saracoteou" como na própria estrutura dos versos e na melodia, que se aceleram na primeira parte ("Bia falou", "Clara ficou", "Dadá também...") e criam uma pequena pausa (antes de "ah", "até", "saracoteou"...), conformando uma espécie de batuque.
Como para dar um "descanso" após esse "batuque" e na atenção do ouvinte a quem o sujeito da canção relata os fatos, entra o estribilho, no qual o contador comenta:
Aquela noite
Tinha do bom e do melhor
Tô lhe contando que é pra lhe dar água na boca
Assim, ficamos sabendo que, além da alegria intensa, com música e dança, havia "do bom e do melhor". Naturalmente, pensamos em comes e bebes de qualidade e em abundância. Tudo em excesso (como já indicado nas expressões citadas "até o sol raiar" e "tomou o que era pra tomar"). Tanto é assim, que quem não foi à festa perdeu o melhor, e para isso está servindo o relato posterior ao baticum: para dar água na boca do ouvinte (em nós!).
A canção retoma a estrutura inicial na segunda parte depois do estribilho:
Veio Mané da Consolação
Veio o Barão de lá do Ceará
Um professor falando alemão
Um avião veio do Canadá
Monsieur Dupont trouxe o dossier
E a Benetton topou patrocinar
A Sanyo garantiu o som
Do baticum lá na beira do mar
O baticum continua na própria estrutura da letra e da melodia, mas a estrofe apresenta uma diferença. Agora, se introduz uma espécie de nomeação, de etiquetagem desses novos personagens citados que foram à festa (ao contrário da primeira parte, na qual os participantes são quase anônimos). Temos, então, uma marca de linhagem ("barão"), de profissão ("professor"), de nacionalidade ("alemão", "Monsieur"), de procedência ("do Canadá", "do Ceará"), marcas estas que implicam certa importância, daí o uso das iniciais maiúsculas. Importância, também, que está explícita no fato de que alguns partiram de longe rumo à festa, e inclusive houve um avião que, supomos, veio do Canadá especialmente para o encontro. Um evento, portanto, com peso econômico, imagem reforçada pelas empresas que estiveram envolvidas: a Benetton e a Sanyo. Mas também a Dupont, multinacional estadunidense, no Brasil desde 1937.
O estribilho, que começava com "Aquela noite", agora sofre uma ampliação:
Aquela noite
Quem tava lá na praia viu
E quem não viu jamais verá
Mas se você quiser saber
A Warner gravou
E a Globo vai passar
Essa ampliação reflete o próprio crescimento da festa em importância. Não só grandes empresas a patrocinaram, como também gravaram o evento, e as imagens poderão ser vistas depois na maior rede de televisão do Brasil. Isso significa que a festa transcende a mera diversão para se tornar um fato marcante, digno de ser divulgado em um meio de comunicação de massas. Há como um consenso no ar, refletido no fato de que, na parte seguinte da letra, se misturam os anônimos e os famosos, antes separados:
Bia falou: ah, claro que eu vou
Clara ficou até o sol raiar
Dadá também saracoteou
Didi tomou o que era pra tomar
Isso é que é, Pepe se chegou
Pelé pintou, só que não quis ficar
O campeão da Fórmula 1
No baticum lá na beira do mar
Essa sensação de consenso se delineia pela importância e massividade do evento, bem como pela procedência variada dos participantes- na ordem de lugares e de posições sociais -, pelo fato de que só há coisas positivas a serem relatadas, pelo grande capital envolvido, inclusive multinacional. A festa se torna, assim, um lugar onde todos querem comparecer, mesmo que só por uns instantes (como Pelé), mas isso pode indicar outro elemento do fenômeno cultural de massas, que é justamente a necessidade de aparecer. Há, aqui, uma crítica implícita ao culto da fama e dos famosos.
Também não podemos deixar de pensar no que cerca o evento, que são justamente as grandes empresas, de tal sorte que tanto a produção do evento cultural (o patrocínio) e seu registro (a gravação da festa) quanto sua divulgação posterior (a emissão pela televisão) são realizados pelo grande capital (Benetton, Sanyo, Warner, Globo). É sintomático que essas corporações justamente trabalhem com a imagem e a fama.
Mas eis que, na parte final da canção, o consenso parece se desfazer:
Zeca pensou: antes que era bom
Mano cortou: brother, o que é que há
Foi a G. E. quem iluminou
E a MacIntosh entrou com o vatapá
O JB fez a crítica
E o cardeal deu ordem pra fechar
O Carrefour, digo, o baticum
Da Benetton, não, da beira do mar
Há uma nota de nostalgia no pensamento de Zeca, uma crítica ao presente. O que era bom no passado? Talvez as festas menores, menos ostensivas, menos apegadas à fama, aos famosos, aos meios de comunicação. Essa pequena fissura no consenso, no entanto, é logo rebatida por alguém que diz: "brother", marcando, ao mesmo tempo, o desenvolvimento da gíria em detrimento de formas mais variadas e ricas de expressão, a invasão cada vez mais intensa de palavras do inglês e a imitação de práticas culturais estrangeiras, especificamente estadunidenses.
Não é à toa que esta nova realidade, reproduzida pelo consenso e reprodutora dele, conte com a sustentação de nomes representativos do grande capital - a quem interessa, obviamente, a globalização -, exemplificados na canção com os nomes de General Electric, MacIntosh e Carrefour. A intervenção direta na realização da festa, se completa, então, com as quatro corporações: Benneton, Sanyo, General Electric e MacIntosh. E na época atual, em que todo evento econômico se traduz em um espetáculo, e todo grande espetáculo se transforma também em um fato econômico, é natural que a festa se complete com sua divulgação massiva: a Warner, a Globo e o JB (o Jornal do Brasil, não o uísque), fechando o círculo: cinema, vídeo e disco; televisão, rádio e revista; e jornal.
Lembremos que, no final dos anos 1980, a internet ainda não tinha começado a existir de forma massiva e comercial, então os principais meios de comunicação realmente eram esses citados.
Assim, uma produção cultural se dá na exclusiva esfera dominada pelas grandes empresas. Não há mais espaço para a sobrevivência da festa popular, autônoma? Talvez, mas o crescimento e a sofisticação técnica da indústria cultural vão minando progressivamente a cultura que não é um espetáculo, criando padrões de consumo que beneficiam a cultura de massas.
Lembremos que, justamente no final dos anos 1980, o fenômeno da globalização foi se estendendo com força, inclusive mudando a pauta econômica de países como o Brasil, numa era de abertura mais intensa ao capital estrangeiro, apoiada na eleição de presidentes como Fernando Collor de Mello (exatamente no ano da canção: 1989), Carlos Menem, na Argentina, etc.
É com este viés que podemos ler os dois últimos versos de "Baticum", nos quais se exacerba a ironia de Chico Buarque e Gilberto Gil: a palavra "baticum" é confundida com "Carrefour", e a expressão "beira do mar", com "Benetton": a realidade confundida com a marca, as palavras da língua trocadas por estrangeirismos econômicos, de marketing.
Esta canção tem um ritmo de batucada que faz lembrar as origens africanas do samba. Possui quatro estrofes de oito versos cada simetricamente construídos, num formato que alterna um verso de nove sílabas com outro de dez, criando com isso uma dinâmica que acompanha o ritmo de batuque. A própria melodia, de feição percussiva, ajuda a compor esse clima de festa.
Para reforçar essas características, a própria letra é toda armada com rimas fáceis, que nas quatro estrofes principais sempre se compõem com a vogal "a" (de "raiar" a "mar", na primeira parte; até de "há" a "mar", na última), alternando-se com outras ("ou", "ão"...). Fácil de lembrar, portanto, de cantar, a música faz aumentar a sensação de comemoração nos estribilhos. No primeiro, "Aquela noite...", a melodia se utiliza de notas estendidas, também com a vogal "a", destacando ainda a palavra "melhor", tudo contribuindo para a valorização da folia, numa espécie de liberdade da voz, da mesma maneira que no segundo estribilho, no qual número de versos aumenta para contar que a festa foi inesquecível. Ademais, nesses estribilhos o desenho melódico, ao se estender e como se relaxar, contrasta com as frases rápidas das quatro estrofes principais por apresentarem como uma pausa na narração, na qual comentam a qualidade e a singularidade da festa, enquanto as estrofes de oito versos narram os fatos e citam os convidados. Por último, neles intervém o coro, que faz a música crescer, como se fosse a própria celebração coletiva.
Toda essa estrutura, compondo uma coerência com o batuque, não deixa de ser irônica, ao trazer ao mesmo tempo à crítica a essa mesma festa, e seu patrocínio e divulgação por grandes empresas. Aqui, como em outras canções, Chico Buarque se vale de um matiz alegre para exercer uma crítica à situação do País, exatamente numa época em que a especulação financeira e os desmandos políticos pareciam uma "festa" que proporcionava muitos lucros a uns, mas problemas econômicos e sociais para a maioria. Era o famoso "neoliberalismo" em vigor.
Mas isso foi no final dos anos 1980. Que canção Chico Buarque e Gilberto Gil comporiam hoje?
O amor entre ruínas: "Futuros amantes" (1993)
https://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=futurosa_93.htm
De tantas canções compostas por Chico Buarque que tratam do amor e seus desencontros, esta, "Futuros amantes" - como o título já diz -, em vez de falar da dor de uma separação, trata da ausência de um encontro, postergando essa possibilidade para um futuro sempre incerto.
O sujeito da canção (não sabemos se é um homem ou uma mulher) se dirige a alguém que parece ter pressa em amar:
Não se afobe, não
Que nada é pra já
O amor não tem pressa
Ele pode esperar em silêncio
Num fundo de armário
Na posta-restante
Milênios, milênios
No ar
Na reflexão desse sujeito, o amor não nasce em uma pessoa concreta, ele surge de algum lugar. Não parte de um coração, chega a ele. Por isso, não é esse alguém que espera o amor, mas é o amor quem espera para, um dia, talvez, conquistar um corpo. E essa espera do amor o mantém imerso no mundo cotidiano, desde algo íntimo e privado, como é um armário, até o próprio ar que todos respiram, a rua, o mundo inteiro.
Mas, além dessa amplidão espacial, o amor também implica um alargamento temporal, pois ele pode esperar durante milênios para agir. O amor pode estar no ar, algo impalpável, etéreo, que não se pode agarrar. Não está, portanto, ao alcance fácil de qualquer um. Ao contrário, ele paira no mundo e em determinado momento - que ninguém sabe quando será - pode atingir uma pessoa desavisada.
Portanto, o sujeito desta canção diz ao outro, na verdade, que postergue sua iniciativa de buscar o amor: é este que chega, não por uma ação da pessoa, mas simplesmente pelo acaso.
E nesse adiamento, que pode ser enorme, tudo poderá acontecer:
E quem sabe, então
O Rio será
Alguma cidade submersa
Os escafandristas virão
Explorar sua casa
Seu quarto, suas coisas
Sua alma, desvãos
Num futuro distante, este mundo atual - onde a pessoa a quem fala o sujeito da canção pretende amar - estará, talvez, debaixo d'água. Será uma cidade desaparecida, pesquisada por arqueólogos. As coisas terão permanecido em seus lugares, mas em mundo já terminado. Mesmo os objetos íntimos, mesmo a alma das pessoas, poderão ser explorados, examinados pelos pesquisadores desse futuro pós-Rio de Janeiro.
Aqui, nos deparamos com um estranhamento, um desconforto. Esta segunda parte da letra traz como uma desilusão à pessoa que esperava amar. Primeiro, o sujeito da canção diz ao outro que espere, que não tenha pressa, o amor chega por acaso. Depois, afirma a possibilidade de que a cidade vire ruínas, que tudo desapareça, ou seja, afirma que aquele futuro no qual o amor poderia chegar talvez não exista. Ou, quem sabe, ao se esperar o amor, sempre pode ser tarde demais.
Ou será que, ao contrário, o amor chegou, mas antes do desaparecimento da cidade, antes das ruínas?
Sábios em vão tentarão decifrar
O eco de antigas palavras
Fragmentos de cartas, poemas
Mentiras, retratos
Vestígios de estranha civilização
Pois o que os pesquisadores do futuro vão encontrar parecem ser restos de um amor: cartas, poemas, mentiras, retratos... O que aquele quarto continha - aquela alma (alma dessa pessoa que busca, agora, na atualidade, amar) -, está disperso por esses objetos que os sábios do futuro tentarão compreender, mas em vão.
Por um lado, temos um amor que, sim, aconteceu num futuro passado, ele chegou. Por outro lado, depois tudo conheceu o seu fim. Tudo acaba: o amor, a cidade onde se deu esse amor, a pessoa que amou, a própria civilização com seu idioma, suas palavras escritas em cartas, poemas (e, por que não dizer, também nas canções). O sujeito da canção parece dizer: se tudo é efêmero, por que se afobar agora em busca de um amor? Ele chegará ou não, por acaso, mas no fim tudo acabará.
Há uma contradição, então: primeiro, a letra afirma uma permanência, uma eternidade, nas expressões "nada é pra já", "o amor não tem pressa". Depois, a canção vai no sentido oposto: tudo tem fim.
Na última parte, essa contradição não se resolve, ao contrário, se aguça:
Não se afobe, não, que nada é pra já
Amores serão sempre amáveis
Futuros amantes, quiçá
Se amarão sem saber
Com o amor que eu um dia
Deixei pra você
Apesar do fim de tudo, há sempre um recomeço. O Rio de Janeiro se transformou em ruínas submarinas, mas a vida não acabou, pois chegaram escafandristas e sábios para investigar aquela cidade em ruínas. Da mesma forma, apesar do fim de uma civilização, o sujeito da canção afirma que "amores serão sempre amáveis" (contradição novamente concentrada em uma palavra: amáveis, como amores que serão amados, mas também no sentido de gentis, quando, na verdade, o desencontro amoroso não tem nada de gentil).
Esse recomeço de tudo posterga, novamente, a possibilidade do amor. Depois da pesquisa arqueológica das ruínas do Rio de Janeiro, quem sabe outras pessoas não se amarão. E se amarão com o amor que o sujeito da canção deixou ao outro. Nova contradição: ele deixa um amor à outra pessoa, mas esse amor não chega a ela, e sim a futuros amantes. De novo, o desencontro.
De certo modo, podemos pensar num tempo que vai se fazendo de término e começo, de destruição e reconstrução. Pairando sobre tudo, atravessando os séculos, segue o amor, que, no entanto, parte de alguém e chega não ao destinatário imediato, mas a alguém, por acaso, num futuro indefinido. Como no poema "Quadrilha", de Carlos Drummond de Andrade: "João amava Teresa que amava Raimundo/que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili/que não amava ninguém". Em duas palavras: amor e desencontro.
Para falar disso, a música - uma valsa-rancho, como uma antiga música de Carnaval - se apoia em uma melodia suave, com certa lentidão, baixando a notas mais graves à medida que se aproxima o fim de cada estrofe. É como um conselho ("Não se afobe") dado intimamente, sem alarde. O conteúdo desse conselho não poderia, mesmo, exigir um tom alto ou uma voz potente.
Por exemplo, na primeira estrofe, em que "silêncio" rima com "milênios" - marcando a possível eternidade desse silêncio -, os versos vão se encurtando, até quase desaparecer ou, podemos pensar, se dissolver (como o amor no tempo?), exatamente, "no ar": à descida de tom e à suavidade da melodia, corresponde o desvanecimento do amor.
Um pouco diferente é a terceira estrofe, na qual a melodia sobe a notas mais agudas, dando conta da inutilidade da pesquisa sobre o passado, sobre os vestígios da civilização onde jazem - por que não dizer - os vestígios do amor. Essa variação musical não chega a apontar um caminho na recuperação desse amor, apenas uma tentativa. Logo, a canção retorna ao tom íntimo inicial, finalizando com a confissão de um amor, sim, entregue ao outro, embora sem possibilidade de que este outro o receba em seu tempo. Daí que a canção termine com uma nota mais grave, sem euforia nem celebração. Como vimos anteriormente, se trata do desencontro do amor, mesmo num futuro distante.
E no presente, não há a possibilidade do encontro? A julgar pela canção "Bolero, blues", que veremos a seguir, parece que não.
Canção do desejo fugaz: "Bolero, blues" (2006)
https://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=boleroblues_06.htm
"Quando eu ainda estava moço...". Assim começa "Bolero, blues", com letra de Chico Buarque sobre música de Jorge Helder.
Já no primeiro verso, aparece um deslocamento de sentido: o verbo "estava", em vez de "era". Como sempre, o poeta empurra o sentido para o lado e coloca outro, levemente diferente, às vezes imperceptível, mas que muda o significado. Na linguagem coloquial, se diz "quando eu era moço", "quando eu for adulto", usando o verbo ser. Chico Buarque o troca pelo verbo estar, aproveitando-se da diferença existente entre esses dois verbos na língua portuguesa, o que não se dá no inglês nem no francês, por exemplo. "Estava" indica algo efêmero, um estado passageiro, não perene. Digo: sou brasileiro, porque isso não mudará (mesmo que eu conseguisse outra nacionalidade, oficialmente). Do mesmo modo, sou do sexo masculino. Então, não digo "estou brasileiro" ou "estou homem". Mas Chico escreve "quando eu estava moço", o que acentua essa transitoriedade da existência. É claro que ninguém permanecerá jovem, mas Chico reforça essa ideia, o que orienta o sentido total do poema para a fugacidade de tudo.
A letra continua:
Algum pressentimento
Me trazia volta e meia
Por aqui
Outro deslocamento, outra duplicidade irônica de Chico: a expressão "volta e meia", no sentido comum, significa "de vez em quando". Mas, pensando espacialmente, para voltar ao mesmo lugar eu preciso dar uma volta - por exemplo, uma volta na quadra. Se dou uma volta e meia, não volto exatamente ao mesmo lugar onde eu estava. Então, à regularidade da volta soma-se à irregularidade do ponto de chegada. Em outros termos: se não há coincidência temporal (depois da volta, o que era presente já é passado), tampouco há coincidência espacial: não se volta nunca ao mesmo lugar.
Como se não bastassem essas duas fugacidades - a do tempo e a do espaço -, há ainda uma terceira: a do objeto do desejo.
Segue a letra:
Talvez à espera da garota
Que naquele tempo
Andava longe, muito longe
De existir
Ora, aqui há vários deslocamentos. A garota, objeto do desejo, estava longe - o espaço afastando o objeto. Mas também andava longe "de existir" - o tempo afastando o objeto.
Para embaralhar mais ainda a ideia, o verbo "andar", aqui, agora em vez de "estar", também sugere, sim, a existência da garota, pois ela "andava", assim como o sujeito do poema anda dando "voltas" pelas ruas.
Chico Buarque vai construindo a noção de um labirinto espacial, temporal e do desejo: tudo dentro de uma fugacidade, movendo-se constantemente, sem ponto fixo, sem apoio. A existência, cuja base é o desejo, não se ancora em nada.
Para completar, a distância da existência da garota sugere que ela ainda não nasceu. Portanto, há uma diferença de idade entre o sujeito poético e seu objeto do desejo, além de uma clara indicação da quase impossibilidade de um encontro: a imagem do desejo como algo utópico (do grego u topos = o que não tem lugar). E mais: o desejo como pura imagem, pois se a garota ainda não existe, o objeto do desejo do sujeito do poema é uma miragem.
O que não impede de ser uma imagem que incita à criação:
Tantos tristes fados eu compus
Quanto choro em vão, bolero, blues
Além de, novamente, ironizar com um duplo sentido em "choro em vão" (pranto e chorinho - estilo musical), Chico Buarque apresenta nesses versos a consequência daquele labirinto existencial em que o desejo é fugaz, em que tudo é passageiro: a criação. Para defrontar-se com a fugacidade de tudo, o sujeito cria, compõe. Apesar de a diferença de estilo entre o boleto e o blues acentuar a inacessibilidade do objeto do desejo.
Eis aí uma definição do artista: o registro criativo, vivo e que viverá no tempo, tanto o poema quanto a música, enquanto o artista morrerá. Arte longa, vida breve, tema já da Antiguidade grega.
Mas, então, há uma surpresa que risca a brancura dessa existência:
Eis que do nada ela aparece
Com o vestido ao vento
Já tão desejada
Que não cabe em si
Ora, essa "aparição" do nada parece mesmo não existir, como um fantasma (o do desejo), tão inapreensível quanto o vento, que por ser tão desejada - a imagem de um desejo - "não cabe em si": o desejo é maior do que seu objeto. Por outro lado, cabe pensar que a "aparição" do objeto do desejo é fruto da própria criação, do fato de o sujeito compor canções. Em todo caso, este é um momento especial:
Neste crucial momento
Neste cruzamento
Se ela olhar para trás
É bem capaz de num lamento
Acudir ao meu olhar mendigo
Crucial momento é um instante não só decisivo, mas em forma de cruz: cruzamento de perspectivas, de possibilidades, cruzamento espacial (as ruas), cruzamento temporal (ele que existia, ela que ainda não, mas aparece), e ainda, talvez, possamos pensar essa fugacidade do desejo como uma cruz a ser carregada, como nossa condição inexorável.
O objeto do desejo é sempre inalcançável, está sempre à nossa frente ("se ela olhar para trás"). E aí, nesse ponto, há um possível encontro entre essas existências equívocas: o lamento e o olhar mendigo.
Mas há uma nova confusão provocada por Chico Buarque: é ela que traz um lamento, não ele. Então, ela também possui a falta? Ela também lamenta um desejo não satisfeito, uma vida inconclusa? Sim, talvez ela também, pois é a condição humana, na qual todos somos mendigos, quer dizer, estamos sempre pedindo, à espera de uma resposta...
Em todo caso, se ela é apenas a miragem do seu desejo, se explica que ele espere dela um "lamento" que corresponda ao seu "olhar mendigo". Note-se que Chico fala exatamente de um "olhar": efeito de uma imagem.
No entanto, tudo é mesmo fugaz:
Mas aquela ingrata corre
E a Barão da Torre e a Vinicius de Moraes
São de repente estranhas ruas
Sem o seu vestido ficam nuas
E ao vento eu digo
- tarde demais
Encontro desfeito. Se a imagem do objeto do desejo se desfaz, e se esse desejo é o que nos constitui e forja nossa própria visão das coisas, o mundo ao nosso redor também se esvai, pois tudo é uma mesma imagem. As ruas ficam irreconhecíveis. Tão inextricável é a trama que envolve tudo a uma só vez - o sujeito, o objeto do desejo e o mundo -, que novamente as coisas se embaralham, e são as ruas que ficam nuas sem o vestido dela (quando, na verdade, é ele quem fica nu, desamparado, dialogando com o vento...). Esse redemoinho sempre joga os fatos para trás e o desejo, novamente, para frente. "Tarde demais."
Chico Buarque, exímio poeta, desenha aqui duas belas imagens. A primeira, a do lugar crucial, onde cruzam, implicitamente, Vinicius de Moraes (quem apresentou a poesia a Chico, segundo este declarou no documentário "Vinicius", de Miguel Faria Jr.), a própria linguagem poética, o tema do desencontro e da separação, tão caro a Vinicius. Ao mesmo tempo, ruas estranhas exatamente porque sem o "poetinha" e sem amor. A segunda imagem - que já indicamos -, a da nudez das ruas, metáfora do vazio do mundo e desse homem sozinho. E que também provoca deslocamentos: as ruas como testemunhas da ausência da garota, mas ao mesmo tempo como elas mesmas sendo essa mulher, de tal forma que o lugar, a cidade, o mundo se tornam a presença dela. O que se desdobra em outro deslocamento: as ruas sem a garota nua são igualmente nuas, mas no sentido de desamparadas. Finalmente, a estranheza e a nudez são as marcas da ausência. Assim, presença e ausência são os dois lados da mesma realidade: quase uma definição do desejo.
Desejo esse que se depara com a falta. Então, já não haverá mais a possibilidade de um encontro. Pois,
Quando ela já não mais garota
Der a meia-volta
Claro que não vou estar mais nem aí
Num futuro qualquer, quando a garota for mais velha, o sujeito - que já a antevia antes de ela existir - não mais existirá. Mas - nova ironia de Chico -, se ele estiver, não a terá mais como objeto do desejo, pois o desejo sempre permanece, mas seu objeto vai mudando: perenidade do desejo, fugacidade do objeto. Esse desencontro é marcado pela "meia-volta": de novo, pensando espacialmente, se ela der apenas uma "meia-volta" (e não uma volta inteira), jamais ela retornará ao mesmo ponto. Impossibilidade de encontro: ele dava "volta e meia", e ela, somente "meia-volta"... Andando em círculos (o círculo fechado do desejo e sua falta), os dois se desencontram.
Se atentarmos para os sons do poema, veremos que há uma "rima" entre "pressentimento" e "tempo", na primeira estrofe, e "momento/cruzamento/lamento", na segunda. De certo modo, a antevisão da garota - esse fantasma - já é, ao mesmo tempo, a antevisão do fracasso do encontro. A repetição de sons em "i" ("existir"/"vestido"/"si") conecta a ideia do ser à noção de aparência, que o cobre (o "vestido") - tema tão conhecido da Filosofia: o ser como mera aparência, o outro como mero desejo ou imagem de um desejo... Um ser que imaginamos, que buscamos, mas que talvez nunca - como o fantasma - se materialize. Um ser que nunca está "aí": não se apresenta jamais para nós e também nos lança um desdém (ele também "não está nem aí"...).
Por fim, o último verso - "Claro que não vou estar mais nem aí" - faz referência - circular, por certo - ao primeiro: os dois usam o verbo estar. Ora, se no primeiro verso esse verbo indica a fugacidade (estar em vez de ser), no último ele aponta para a efemeridade, a precariedade: não estar mais, agora no sentido muito mais forte de não ser mais, ou seja: não mais existir. A morte vem antes da consecução do desejo?
Além disso, tal como o sujeito circula pelas ruas em busca desse objeto, também as frases musicais "perambulam", numa melodia torta, estranha como as ruas, sem um ponto definido de chegada. Esse possível ponto se perde na passagem da primeira para a segunda parte da canção. Quando o protagonista sente essa possibilidade, a própria melodia acelera o passo, nos versos "Mas aquela ingrata corre/E a Barão da Torre e a Vinicius de Moraes", apontando para a urgência da busca. A expressão final desta estrofe, "Tarde demais", marca a melodia chegando à pausa sem um ponto de relaxamento ou conclusão, ao contrário: fica-se em suspenso. O ponto de "chegada" (não ao encontro do objeto do desejo, mas da desistência dele) se dá exatamente no verso final, cuja melodia desce e acaba por repousar. Fim da procura para um sujeito que teve a experiência da ausência. Impossibilidade de satisfação do desejo?
Mas resta a arte, resta a canção, que é uma forma de deixar uma marca desse desejo e oferecê-lo ao público, entregá-lo a nós, e quem sabe, nesse compartilhamento, talvez possamos nos sentir menos sós. Pelo menos até que outra canção retome essa falta, o que faz justamente a próxima: "Renata Maria".
A musa oceânica: "Renata Maria" (2006)
https://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=renata_maria_05.htm
Esta canção, feita em parceria com Ivan Lins, já se inicia com uma visão obsessiva:
Ela, era ela, ela era no centro da tela daquela manhã
Tudo o que não era ela se desvaneceu
Cristo, montanhas, florestas, acácias, ipês
A obsessão está marcada por diversos procedimentos. O primeiro é a insistência do sujeito da canção ao se referir a "ela", que se dá, também, no nível sonoro, ao se repetirem as vogais abertas "é". O segundo, o fato de "ela" ser nada menos do que o "centro" de toda a visão. O terceiro, a exclusividade da existência dela nessa manhã: o resto - "tudo" - se dissolveu. Tudo mesmo: não só o monumento mais ostensivo do Rio de Janeiro, o Cristo Redentor, como a própria natureza. Há mais: a obsessão por essa figura feminina se traduz numa concentração sonora em vogais abertas "é", a primeira letra de "Ela" - são dez em apenas três versos, mais cinco fechadas ("ê"). O que não é "ela", assim como se desvanece ao olhar, também se desconcentra na letra: no último verso, à enumeração de elementos da cidade corresponde uma variedade de sons (com efeito, são sete sons vocálicos diferentes). E a melodia insiste, com sete acentos tônicos em apenas um verso, tornando-o reiterativo, além da redundância forçada dos intervalos musicais, de cinco notas, que se repetem seis vezes!
Na segunda estrofe, a visão se desloca para o ambiente e introduz o próprio sujeito da canção:
Pranchas coladas na crista das ondas, as ondas suspensas no ar
Pássaros cristalizados no branco do céu
E eu, atolado na areia, perdia meus pés
Se na primeira estrofe a visão se concentrava nela, agora a visão passeia pela praia, mas tudo o que se apresenta ao olhar está paralisado: as pranchas de surfe estão "coladas"; as ondas, "suspensas"; os pássaros, "cristalizados"; e o próprio sujeito que vê está "atolado". Imobilidade total - em relação a quê? A "ela", claro, que vai se mover nesse ambiente que é como um cenário montado para essa aparição feminina. A força das imagens compõe uma oposição entre tudo e nada, céu e terra, homem e natureza, imobilidade e movimento. Tudo, na letra, está ampliado até o limite, abrangendo todas as coisas. O surgimento dessa mulher altera o mundo e abala o sujeito que a olha: ele chega a perder seus pés, que também é uma maneira de perder a cabeça. Tão abalado está o sujeito, que tenta uma reação:
Músicas imaginei
Mas o assombro gelou
Na minha boca as palavras que eu ia falar
Nem uma brisa soprou
Enquanto Renata Maria saía do mar
Reação frustrada, sensação de impotência. O sujeito imagina "músicas" (será um compositor?), mas permanece mudo. Junto à mudez, está o silêncio do vento. A boca não emite nenhum som, que só nasce com a passagem de ar. Igualmente, a praia não emite nenhum ar. Lembremos que, para toda a fala em português, precisamos expelir o ar. Então, a falta de sopro, aqui, nos remete à perda da palavra, mas também - se pensarmos no "sopro vital" -, à morte.
Novamente, o mundo dos homes e o mundo da natureza se unem no "assombro" diante dela, que agora é personificada, tem um nome. O sujeito se cala e cala sua identidade, mas a mulher a impõe: "Renata Maria". O resultado é o "gelo" na fala dele, em oposição ao evidente calor nessa praia carioca, aliada a outra oposição de lugar: ele com os pés na areia, ela com o corpo no mar, como acentuando a distância entre os dois, mas do mesmo modo ressaltando, nele, a imobilidade, e nela, a leveza, o movimento.
Nesta terceira parte, vemos que a melodia, o ritmo repetitivo e suas insistências mudam para dar lugar a uma variação, quando o sujeito passa a recordar o verdadeiro acontecimento que houve nessa manhã, como numa pausa. Em vez dos três versos anteriores, a letra se alonga, varia, acompanhando a reflexão e a memória do sujeito da canção. Mas ele volta à cadência anterior, marcada pela obsessão:
Dia após dia na praia com olhos vazados de já não a ver
Quieto como um pescador a juntar seus anzóis
Ou como algum salva-vidas no banco dos réus
Nesta segunda parte da letra, depois dessa espécie de pausa reflexiva da terceira estrofe, a aparição deslumbrante já passou. Restou a procura ansiosa da figura feminina e sua melancolia. Impõem-se o peso do tempo ("dia após dia"), a busca infrutífera ("olhos vazados de já não a ver"), a tristeza ("quieto...") e quase um sentimento de culpa por tê-la perdido ("banco dos réus..."). Mas essa melancolia não diminui a obsessão, ao contrário. Se ela abrange tudo, cidade e natureza, céu e mar, etc., obviamente, se inclui os dias deve incluir as noites, como vemos na estrofe seguinte:
Noite na praia deserta, deserta, deserta daquela mulher
Praia repleta de rastros em mil direções
Penso que todos os passos perdidos são meus
Como consequência da perda, há um retorno à repetição ostensiva, não somente nos sons de "é" (que aparecem cinco vezes no primeiro verso), mas da palavra "deserta". Novamente, tudo o que não é a figura feminina não importa: a praia não só está deserta (sem ninguém), como está deserta de Renata Maria, especificamente. E o sujeito, nessa busca quase insana dos rastros dela, permanece dia e noite no cenário onde a figura feminina surgiu um dia. Mas, novamente, se opõem o tudo e o nada, os "rastros em mil direções" a nenhum rastro dela. Em meio a esse vazio total, os passos do sujeito, que antes estavam impedidos pelo atolamento na areia, agora estão perdidos, desorientados, sem saber para onde ir. Outra imagem do abandono: mil pessoas tomaram seu caminho, inclusive Renata Maria. E ele? A ele, resta a confirmação da impossibilidade:
Eu já sabia, meu Deus
Tão fulgurante visão
Não se produz duas vezes no mesmo lugar
Mas que danado fui eu
Enquanto Renata Maria saía do mar
Nesta segunda e última reflexão, o sujeito da canção se resigna a não ver mais Renata Maria. Comparada a um raio - que marcou sua própria desaparição tanto quanto arrasou o sossego do sujeito -, uma visão deslumbrante, mas ao mesmo tempo inapreensível, fugaz, ela acabou causando danos a ele. E a causa de ele ser danado (também no sentido de estar brabo, com raiva) foi simplesmente o fato de Renata Maria sair do mar.
Pela intensidade do sentimento experimentado por essa visão e suas consequências, podemos ver essa figura feminina como uma sereia, também chamada em algumas mitologias de ondina, um ser das ondas, algo que fascina, mas escapa, um corpo que deslumbra, mas cuja aparição é efêmera. E que vive no mar.
Essa imagem está associada à própria melodia, com as palavras cantadas subindo e descendo, ciclicamente, como as ondas do mar. E a canção, tal como está estruturada, parece o próprio movimento das marés: baixa, nas duas primeiras estrofes; alta, na terceira, e tudo se repete, configurando os dias e as noites nos quais o sujeito deslumbrado por Renata Maria sofre. A melodia termina, como ocorre muitas vezes, num acorde de descanso, de conclusão, numa nota mais baixa: fim da história, ausência oceânica da mulher.
A partir dessas belas imagens criadas por Chico Buarque, vimos que se desenhou um desencontro ou um encontro que nem chega a acontecer, apesar de tão próximos os dois personagens, na mesma praia, no mesmo cenário de exibição da figura feminina. Esse não-encontro - recorrente, como pudemos perceber, em diversas composições de Chico - se repetirá noutra canção, na qual, ao contrário, os dois polos estão muito distantes um do outro, canção que também tem um nome de mulher: "Nina".
Distância e alumbramento: "Nina" (2011)
https://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=nina_2011.htm
Chegamos ao penúltimo disco, chamado simplesmente "Chico" e lançado em 2011. Nele, temos esta bela canção com nome de mulher, a exemplo de tantos outros nomes femininos na obra de Chico Buarque, como Rita, Madalena, Carolina, Januária, Cristina, Maria, Helena, Ana, Bárbara, Joana, Angélica, Geni, Teresinha, Rosa, Luísa, Lily, Beatriz, Sílvia, Nancy, Lola, Lia, Cecília, Iracema e Renata Maria.
A música é uma valsa que nos traz uma sensação de antiguidade, de leve tristeza, mas também de certo recolhimento. A primeira estrofe apresenta a personagem Nina:
Nina diz que tem a pele cor de neve
E dois olhos negros como o breu
Nina diz que, embora nova,
Por amores já chorou que nem viúva
Mas acabou, esqueceu
A história, narrada pelo sujeito da canção (novamente, não se sabe de que sexo), começa apresentando essa mulher que, na verdade, ele não conhece. O verbo "diz" introduz a descrição que ela faz de si mesma, portanto, eles não se veem, há um intervalo, uma distância que impede um contato pessoal. Apesar disso, já há um toque de intimidade, quase uma confissão: ela conta seus amores e desamores.
O contraste entre o negro dos olhos e a brancura da pele se desdobra em outros: o da distância/intimidade, o da juventude/experiência, o da tristeza/esquecimento. O desejo dela de ser conhecida vai mais além na segunda estrofe:
Nina adora viajar, mas não se atreve
Num país distante como o meu
Nina diz que fez meu mapa
E no céu o meu destino rapta
O seu
Ao mesmo tempo em que Nina vai dando mais informações sobre si mesma, também é o sujeito da canção quem nos conta mais sobre essa relação a distância e do desejo dela de que eles se conheçam e seus destinos se enlacem.
Há, pelo menos, quatro sentidos entrelaçados, também, nesses versos. Primeiro, o desejo de viajar, de partir, mas com a barreira das grandes distâncias e do medo do desconhecido. Segundo, a busca por outra "viagem", que é a curiosidade sobre o futuro - daí a existência do mapa astral. Terceiro, a possível paixão, o encontro procurado que ignora as dificuldades de espaço e de tempo. Quarto, o espaço entre o céu e a terra que se encolhe, aproximando o desejo de sua consecução. Tudo isso numa atmosfera na qual ela não se atreve, mas ele tem a coragem do "rapto", tomando, quem sabe, a iniciativa.
É todo um clima de romantismo que Chico Buarque cria nessa parte, mas ainda o contato entre eles, ao que parece, é meramente virtual e, quem sabe, ilusório ou falso. Talvez por isso, na terceira parte - que é, ao mesmo tempo, uma mudança na canção, introduzindo uma estrofe de seis versos, em vez dos cinco que se repetem nas outras, além de uma aceleração das frases melódicas, com uma métrica maior em cada verso -, ela se disponha a mostrar-se, como para provar que ela existe:
Nina diz que se quiser eu posso ver na tela
A cidade, o bairro, a chaminé da casa dela
Posso imaginar por dentro a casa
A roupa que ela usa, as mechas, a tiara
Posso até adivinhar a cara que ela faz
Quando me escreve
A personagem feminina vai sendo progressivamente revelada, estendendo-se a informação ao lugar onde ela mora, e agora sabemos que se trata, sim, de um contato virtual, via internet. Mas, ao mesmo tempo, e apesar da tecnologia disponível, na verdade a aparição dessa mulher não acontece claramente: o personagem sujeito da canção - o narrador dessa espécie de encontro - pode imaginá-la, mas não a vê, objetivamente. Será que é um encontro imaginado, sonhado? Será que ela não é uma mulher real, embora distante, mas apenas a imaginação desse sujeito? Não sabemos. O que, sim, sabemos, é que o lugar de origem dessa personagem feminina é frio, pela presença da chaminé, frio esse que já estava sugerido em neve, palavra da primeira estrofe. E se há um desejo forte em conhecer o outro, o narrador o atribui a ela:
Nina anseia por me conhecer em breve
Me levar para a noite de Moscou
Sempre que esta valsa toca
Fecho os olhos, bebo alguma vodca
E vou
Nesta última parte, Nina confessa seu desejo de ter um encontro pessoal, presencial, como se diz hoje em dia. Não só um encontro amigável, mas uma saída para a noite, que agora confirmamos ser na Rússia. Essa fantasia se alimenta, apesar da distância, de uma expectativa: a de que ele, finalmente, viaje à Rússia. E, nos versos finais, isso não deixa de acontecer: uma viagem. Para isso, o personagem-narrador realiza dois atos: fecha os olhos e bebe uma vodca.
Ora, aquele clima de sentidos embaralhados e de viagem - no sentido de um desejo, de um encontro imaginário - se confirma aqui. Pois essa "viagem" (vou) se realiza na imaginação (de olhos fechados), na sensação de familiaridade com a cultura russa (a vodca), uma sensação, mesmo, gustativa, e ao mesmo tempo relaxante, dissipadora da realidade e provocadora do desejo e do sonho. Mas, ao mesmo tempo, esses versos finais, o que fazem é afirmar a não-viagem e, portanto, o não-encontro.
Quando o personagem-narrador diz "vou", ele não vai (eco da canção de Vinicius de Moraes "Canto de Ossanha", na qual ouvimos: "O homem que diz 'vou' não vai. Porque quando foi já não quis"). Se lermos esses versos finais de Chico Buarque com os versos de Vinicius de Moraes na memória, podemos pensar que o desejo de ir se alimenta justamente da não-possibilidade: um país distante, uma mulher mais nova, um conhecimento meramente virtual... Ao contrário, se essa viagem fosse efetivamente realizada, o desejo se desvaneceria: o contato real, pessoal, desfaria a ilusão e a imaginação. Esse encontro só pode se dar ao nível do sonho, de olhos fechados, na embriaguez do desejo e de uma bebida alcoólica.
Ora, o tema desta canção não nos remete ao tema de "Futuros amantes"? Nesta música, o desejo de contato, uma possível paixão, era eternamente adiado para um futuro no qual a própria realidade atual seria nada mais do que ruínas. E o amor do sujeito da canção, pairando no ar por milênios, poderia ser utilizado - atualizado - por amantes do futuro. Aqui, em "Nina", nem sequer o sujeito propõe um adiamento, mas um encontro apenas virtual e no nível do sonho. Nos dois casos, um amor que se esboça, mas não se realiza. Um amor que alimenta o sonho e a imaginação, mas acaba não acontecendo na prática.
Assim como "Futuros amantes", que é uma valsa-rancho, "Nina" é uma valsa tradicional, o que cria um clima de romantismo à antiga, ainda que estejamos na era da internet. Como valsa, nos embala num ritmo pendular, o que se observa nos versos, mais acelerados no início - como os passos de um casal dançando -, mais lentos, com uma pausa, no final - como a curta parada dos bailarinos em cada extremo do movimento pendular.
Esse ritmo se constrói, igualmente, pelas rimas internas, que oscilam, por exemplo, entre "pele" e "neve", "negro", "breu", "chorou", acabou"... Do mesmo modo que a valsa vai e volta, a segunda estrofe da canção retorna às mesmas rimas principais: "atreve", "meu", "seu", que são o eco de "neve", "breu", "esqueceu", da primeira estrofe.
A terceira parte da canção muda sua estrutura. Nela, temos versos cantados mais rapidamente, numa melodia com muitas notas numa mesma frase musical, como se uma valsa estivesse sendo dançada com mais pressa, além de mais intensidade (e esta estrofe tem um verso a mais que as outras). Essa aceleração parece ter a ver com o desejo de Nina de estreitar a relação, diminuindo, de alguma forma, a distância entre os dois. Justamente nesta parte, ela se dá a conhecer mais intimamente, ainda que por um meio virtual, numa enumeração de imagens que vão mostrando, cada vez perto, características de sua vida: a cidade, o bairro, a chaminé, a casa, o corpo dela (as roupas), até o cabelo e a tiara que ela usa. É como uma câmara filmando em zoom.
Essa tentativa de aproximação, inscrita na estrutura musical, é confessada mesmo no verso que abre a última parte, com a expressão "em breve". Mas, voltando ao formato das duas primeiras estrofes, a quarta não embarca, digamos assim, nessa viagem, a não ser em pensamento. Com efeito, se a terceira estrofe denota uma mudança em direção à aproximação, a quarta - retornando ao formato anterior - retorna à distância. Tanto é assim, que o sujeito da canção confessa que o contato entre os dois não se dará tête à tête, mas numa espécie de "sonho acordado", com ajuda dos olhos fechados e de uma vodca. Mantendo os cinco versos das duas primeiras, esta última parte termina com uma nota mais grave e um acorde de conclusão, expresso em "E vou", o que significa, para finalizar a busca de Nina: "Não vou".
Tudo, portanto, permanece em um nível virtual, meio onírico, sem consequências reais.
O amor é somente um sonho?
Nem sempre, ao que parece, como veremos na próxima canção: "Essa pequena".
Balada do amor fugaz: "Essa pequena" (2011)
https://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=essa_pequena_2011.htm
Esta canção do último disco ("Chico", de 2011) marca, na obra de Chico Buarque, a presença de uma história de amor que se realiza, sem a expectativa frustrada do desencontro nem a amargura da separação. É interessante observar que, nas outras músicas comentadas aqui, nas quais o tema do amor comparece, isso não ocorre. Por exemplo, de "Sonho de Carnaval" a "Nina", nesse arco de 30 anos de criação musical de Chico Buarque -, o amor está quase sempre incompleto, ausente, terminado. Nos pouquíssimos temas em que o amor é sem conflitos, como no caso de "A banda", ele não é o assunto principal da letra, mas apenas um pano de fundo. E do total de composições de Chico Buarque, mais de 300, são apenas 15 as que, de alguma maneira, podemos dizer que trazem o tema do amor satisfeito, correspondido, realizado.
Por isso, surpreende, de certo modo, encontrar essa visão leve, bem humorada, de um amor que torna o sujeito da canção alguém feliz. Mas não podemos deixar de pensar que, neste momento (2012), Chico Buarque tem, de fato, uma namorada, a cantora curitibana radicada no Rio de Janeiro Thaís Gulin, de 33 anos. Nesse sentido, a canção tem uma nota autobiográfica.
Mas será que essa felicidade é total?
Vejamos:
Meu tempo é curto, o tempo dela sobra
Meu cabelo é cinza, o dela é cor de abóbora
Temo que não dure muito a nossa novela, mas
Eu sou tão feliz com ela
A primeira estrofe da letra fala, sim, da felicidade, mas expõe, ao mesmo tempo, uma dúvida, uma sensação de incerteza. Para começar, os dois primeiros versos sintetizam, em sua oposição ("meu"/"dela"), dois estilos de vida, além da diferença de idade. Ao mesmo tempo, há uma noção de responsabilidade, de vida adulta, nele, ao contrário de um cotidiano leve, sem muitos compromissos, alegre, dela. Essa sensação se torna mais forte pelo contraste entre o sentido de apagado, descolorido, opaco, da cor cinza do cabelo dele (grisalho, que vem de gris = cinza) e a vitalidade, a exuberância, o brilho da cor laranja (ruivo ou, talvez, pintado) do cabelo dela.
A relação entre eles é qualificada como uma novela, vocábulo ambíguo, que pode nos fazer pensar em algo ficcional, que terá um fim, melodramático, talvez fútil, e muito mais. Ao expor as diferenças entre eles, o sujeito da canção confessa que o que sente é felicidade, mas também certo temor.
A segunda estrofe não diminui esse temor, inclusive explora mais algumas características que diferenciam esse homem dessa mulher:
Meu dia voa e ela não acorda
Vou até a esquina, ela quer ir para a Flórida
Acho que nem sei direito o que é que ela fala, mas
Não canso de contemplá-la
Aqui, se repete a estrutura da primeira estrofe: duas oposições entre ele e ela, uma espécie de senão e, finalmente, a confissão de bem-estar.
No primeiro verso, o sujeito da canção aprofunda a distância entre os dois no sentido de que ele tem pouco tempo (de vida? Uma diferença muito grande de idade?), por isso seu tempo passa rápido, mas igualmente é um tempo cheio de compromissos, de trabalho, talvez. E o dela? Um tempo amplo, pelos muitos anos que ainda lhe tocam viver, mas também pela quantidade de tempo livre que ela deve ter.
Mas podemos acrescentar que ela possui uma sorte de descompromisso em relação à própria vida séria, de responsabilidades, o que lhe permite dormir até tarde. Do mesmo modo, ela vai mais além no desejo de não se render a um cotidiano "adulto": ela pensa em viajar, enquanto ele se move apenas em seu restrito espaço e curto tempo.
O terceiro verso estende a diferença de seus tipos de vida à própria relação entre eles, às dificuldades de comunicação ou mesmo aos interesses diversos e, possivelmente, incompatíveis que os dois possuem. No entanto, tudo isso é secundário, já que o sujeito está, na verdade, apaixonado. Por isso mesmo, em lugar da fala dela, ele contempla; e em vez das restrições a que ele está submetido pela idade (só pode ir "até a esquina"), ele não tem limites, não se cansa, quando se trata de olhá-la, contemplá-la, justamente pelo fato de que isso não requer movimento. Mas, de certa forma, requer tempo:
Feito avarento, conto os meus minutos
Cada segundo que se esvai
Cuidando dela, que anda noutro mundo
Ela que esbanja suas horas ao vento, ai
Nesta terceira estrofe, o sujeito da canção muda sua fala, concentrando a atenção, agora, em si mesmo.
Se o tempo passa rápido, sobretudo para quem já tem certa idade, cada segundo é precioso, mas ele "se esvai", passa. Portanto, há que contá-los, verificar quantos se viveram, quantos faltam ser vividos, mas também no sentido contábil de controlar o que foi gasto e, na medida do possível, "poupar", não deixar que se gastem em vão. E isso, ele faz "cuidando dela".
Mas aí há um possível problema: como cuidar dessa mulher, se ela "anda noutro mundo"? Como torná-la parte do tempo dele, se os dois têm vidas tão diferentes?
Por outro lado, se ele dedica seu tão preciso tempo a ela, não será incômodo o fato de ela "esbanjar" as muitas horas que ela possui? E ainda mais: não será parte do temor que ele sente o fato de o verbo "esbanjar", aplicado a ela, se referir, quem sabe, a uma indiferença dela, uma autonomia em relação a ele, que tanto quer cuidar dela? Talvez por isso ele suspire: "ai"...
E falando em autonomia dela, é justamente o que o sujeito da canção vai ressaltar na última estrofe:
Às vezes ela pinta a boca e sai
Fique à vontade, eu digo, take your time
Sinto que ainda vou penar com essa pequena, mas
O blues já valeu a pena
Autonomia feminina, longe da coação e do poder masculinos (como vimos em "Mil perdões"), que a impele a sair sozinha e, mais do que isto, maquiada: não se trata, portanto, de um passeio qualquer, mas de algo que a faz se tornar mais bonita.
Ao sujeito da canção - para quem as diferenças entre ele e ela o perturbam, mas que acaba cedendo a essa relação, tão apaixonado se encontra -, não resta alternativa, a não ser aceitá-la em sua independência, deixa-la à vontade, mesmo, nessas saídas sem ele. Ainda que isso possa afetá-lo, não importa. É um medo a mais que ele deve carregar, o preço de uma relação apaixonada com essa mulher tão diferente.
O temor do início da letra se transforma em premonição: ele sente que vai sofrer. Mas não importa: uma nova canção foi composta. O possível sofrimento se transforma em composição. Talvez o amor não prevaleça, mas sim a arte, que se alimenta da dor e do amor, e permanece.
Amor breve, arte longa?
Curiosamente, a estrutura desta canção é semelhante à de "Nina" (de novo, uma mulher), contendo quatro partes, a terceira com uma mudança.
Só que agora se trata de um blues, um estilo por demais distante da valsa, o que já aponta para diferenças de sentidos entra uma música e outra. Em "Nina", há um clima de romantismo à antiga, como vimos, como se estivesse reforçando a ideia de algo que já passou ou, no caso, que não acontecerá (o encontro amoroso). Aqui, em "Essa pequena", o blues dá outro clima: mais jovem, dinâmico, alegre, quem sabe apontando para uma possibilidade de encontro.
Nas duas primeiras partes, a estrutura se repete: os dois primeiros versos, que têm quase o mesmo número de sílabas e um formato igual (destacado pelos possessivos "meu" e "dela"), têm a função de apresentar as oposições entre os dois personagens, com as rimas ressaltando o paralelismo dessas duas vidas.
Mas o terceiro verso introduz uma diferença: seu tamanho maior e sua frase melódica reiterativa (alternando notas com apenas um intervalo de semitom) marcam com coerência, nas duas estrofes, uma pequena perturbação: o temor do sujeito da canção (expresso na letra), terminando com a conjunção "mas", que vai trazer, justamente, a esperança apesar do temor. O tom baixo, quase de conversa íntima, dá ênfase no receio no personagem (como uma confissão) e no sentimento mais aliviado ao final.
Essa esperança se mostra no quarto e último verso - também diferente - das duas estrofes iniciais: é menor, em tom mais baixo, e a música finaliza com um acorde de relaxamento, ressaltando o próprio alívio do protagonista, que nesse verso, justamente, fala não mais do temor, mas de sua paixão.
A terceira parte sofre mudanças, como apontamos. Em primeiro lugar, a melodia sobe a notas mais agudas, o que, nas composições de Chico Buarque, geralmente têm a ver com uma espécie de intensidade, urgência ou desejo, num tom mais exclamativo. Aqui em "Essa pequena", essa alteração se dá quando o sujeito da canção expõe a diferença de tempos entre sua vida e a da "pequena". Há uma pausa maior, ademais, depois do segundo verso, como um silêncio para refletir. Tudo vai compondo uma certa angústia do protagonista, que percebe o perigo de uma separação. Não é por acaso que a estrofe termina com a expressão: "ai", antevendo a dor, talvez. Nesse ponto, a música, que nas duas primeiras partes finaliza com acorde de conclusão, aqui, ao contrário, termina com um acorde de tensão, exigindo uma continuação: uma resposta?
Então, vem a última parte, que repete a estrutura das duas primeiras (igual à canção "Nina", como percebemos). Mas nesta estrofe os dois primeiros versos já não têm, é claro, a função de apresentar as diferenças do casal - isso já foi feito no início. Agora, eles marcam uma distância. Na única vez em que a letra fala de um contato (ele fala com ela), já há uma separação: ela sai, ele fica.
O mesmo tom baixo compõe o clima de receio, confirmado pelo medo explícito no terceiro verso. E outra diferença: a conjunção "mas", que anteriormente marcava a chegada de um alívio, agora aponta para a resignação a partir da separação.
Além do mais, a insistência com a palavra "pena", que se repete, rimando com "pequena", une, no plano sonoro, o que está unido no plano dos significados: amor rima com dor, sim.
Mas... Sim, "mas", como diz o protagonista, a criação de uma canção (esta?) valeu o sofrimento. Se o desamor traz um desgosto, por outro lado ele estimula a criação artística, o que o justifica.
E é quase uma espécie de justificação da arte de compor o que Chico Buarque traz na próxima canção, do último disco (e a última deste livro): "Barafunda".
Viver para cantá-la: "Barafunda" (2011)
https://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=barafunda_2011.htm
O último disco de Chico Buarque, "Chico", de 2011, pode ser considerado, de certo modo, como portador de alguns aspectos autobiográficos, tanto por tratar do tema do amor que está vivendo (nas músicas "Se eu soubesse" e "Sem você") e do "amor" dos admiradores (em "Nina") quanto por fazer uma espécie de balanço de vida, a recuperação, pela memória, de um passado significativo.
A referência a esse aspecto autobiográfico já se encontra na primeira canção, que se intitula justamente "Querido diário", embora as marcas propriamente autobiográficas pareçam estar em outras canções, como "Essa pequena" (que vimos anteriormente), "Tipo um baião", terminando com "Sinhá", que bem pode fazer referência a um ascendente da família Hollanda, quando Chico escreve sobre "um cantor atormentado/herdeiro sarará/do nome e do renome/de um feroz senhor de engenho".
Mas é em "Barafunda" que Chico esboça um tipo de relato que tenta recuperar o passado e atualizá-lo de alguma maneira.
A canção começa justamente com "Era...", verbo clássico das histórias que se iniciavam com "Era uma vez...", mas que aqui se transforma - uma vez mais - em um nome de mulher: "Aurora". Vejamos:
Era Aurora,
Não, era Aurélia
Ou era Ariela
Não me lembro agora
É a saia amarela daquele verão
Que roda até hoje na recordação
Essa recuperação do passado - intenção que podemos supor ao escutar esta canção - é marcada, já no início da primeira parte, por uma confusão: o sujeito que recorda não tem certeza do nome feminino que evoca. Confusão esta que está inscrita nos próprios nomes, embaralhando os sons de "a", "e", "r", igualmente presentes em "era".
Nos três primeiros versos, então, temos uma concentração ostensiva de elementos que causam equívoco: três nomes próprios, três vezes o verbo "era" e, para completar, as palavras "não" e "ou", tornando a enunciação ainda mais complicada. Ora, se o desejo aqui é o de recuperação do passado, começou com o sentimento de incerteza por tanta confusão, o que é confessado no quarto verso. Não é à toa que a canção se chama, justamente, "Barafunda".
No entanto, há um elemento que retorna, se apresenta: a imagem de uma saia amarela rodando, em um verão, e novamente temos aqui referências a festa, a Carnaval, a dança e, por conseguinte, a música.
Para acentuar o caráter autobiográfico da letra, é óbvia a presença do Rio de Janeiro, como em outras composições de Chico Buarque:
Foi na Penha
Não, foi na Glória
Gravei na memória
Mas perdi a senha
Misturam-se os fatos
As fotos são velhas
Cabelos pretos
Bandeiras vermelhas
Mas mesmo o lugar dos acontecimentos recordados são equívocos. Há algo a recordar, mas o acesso a esse passado é difícil, cheio de obstáculos. De novo, a repetição de sons ("g", "r"), de palavras ("foi"), além da rima em "penha"/"senha" reforçam essa sensação de confusão da memória, mesmo nas circunstâncias atuais, em que a tecnologia (o computador, cuja memória pode armazenar tantos dados), ainda que possa favorecer o resgate de informações, exige um instrumento de acesso que, muitas vezes, se perde: a senha. Na época atual, por mais que tenhamos recursos tecnológicos, a dificuldade da memória permanece. Será uma época de apagamento do passado? Como, então, resgatá-lo, se "fatos" e "fotos" confundem? Ou é a era atual que, com seus múltiplos "meios de comunicação", não comunicam bem o presente, muito menos o passado?
Se esses meios de outra época (a imprensa, antes da internet, como, por exemplo, a revista Fatos e fotos) não servem mais, e a tecnologia atual é insuficiente, o que é necessário para que a memória atue e recupere o passado?
As imagens dos últimos dois versos dessa estrofe são intrigantes. Descoladas dos versos anteriores, isoladas em sua estrutura substantivo + adjetivo, sem verbo, elas parecem se referir às fotos velhas nas quais o sujeito da canção tenta lembrar. No entanto, os cabelos pretos também se referem, obviamente, a uma idade mais jovem, justamente em contraposição ao "cabelo cinza" da canção que comentamos anteriormente, "Essa pequena". As bandeiras vermelhas, por sua vez, historicamente são emblemas das lutas sociais, notadamente de agrupações ou partidos políticos de esquerda. Numa época, essas imagens (como os "fatos") se misturavam, a juventude atuando politicamente. E hoje?
Numa estrofe que funciona como um estribilho (embora os versos não se repitam depois, se repetem apenas a melodia e a estrutura métrica), o fato recordado antes (a imagem da saia amarela) dá lugar a outro, um possível gol numa partida de futebol:
Foi Garrincha
Não, foi de bicicleta
Juro que vi aquela bola entrar na gaveta
Tiro de meta
Evidencia-se aqui uma das paixões de Chico Buarque, à qual dedicou, inclusive, uma canção que comentamos: "O futebol", na qual faz uma homenagem a Garrincha, um dos seus ídolos, com quem conviveu em sua estada na Itália, em 1970, quando o craque, casado com a cantora Elza Soares, já não jogava mais profissionalmente.
Mas mesmo a lembrança desse gol ficou truncada: não se sabe se a bola entrou (neste caso, logo depois viria um chute ou tiro inicial para recomeçar o jogo) ou não (a confusão se estabelece com a expressão final, "tiro de meta"). A certeza do narrador, que jura ter visto o gol, não é garantia da verdade histórica.
A esse deslocamento do foco da memória - de uma mulher para uma partida de futebol -, se acrescentam outros, misturando ainda mais os dados que o sujeito da canção busca resgatar:
Foi na guerra
É, noite alta
Gritou o astronauta
Que era azul a Terra
Quando a verde-e-rosa saiu campeã
Cantando Cartola ao romper da manhã
Se a referência à juventude e às lutas sociais parece apontar para os anos 1960, e o nome de Garrincha, aos anos 1950 e 1960, nesta estrofe a presença da guerra destoa: de que guerra se fala? Da Segunda Guerra Mundial? Neste caso, se embaralham ainda mais as lembranças, recuando-as até os anos 1940. Mas há outro corte imagético e temporal: a presença do primeiro astronauta na Lua em 1969. Trata-se de um conjunto de recortes da história do século XX? Ou a palavra "guerra" se refere a alguma guerra mais específica, localizada nos anos 1950-60, como a Guerra do Vietnã?
Na primeira hipótese, os fatos evocados desmentiriam uma memória pessoal, biográfica (no início da Segunda Guerra, por exemplo, Chico Buarque não havia nascido). Na segunda, os eventos conformam um período concentrado nos anos 1960, época na qual Chico Buarque se lança como compositor e cantor, quando era jovem (tinha 22 anos em 1966, ano de "A banda").
A estrofe termina com outra evocação: uma vitória da escola de samba Mangueira com o compositor Cartola cantando. Ora, os anos em que a Mangueira foi campeã do Carnaval com sambas compostos por Cartola foram: 1932, 1933 e 1934, muito antes de Chico Buarque nascer. Portanto, ao lado das referências autobiográficas, há, sim, marcas de um passado não vivido, mas igualmente resgatado. Quanto à Mangueira, é notória a relação com Chico Buarque, que foi homenageado pela escola no desfile de 1998 (quando ela venceu o Carnaval). Além disso, em 1992 a escola também homenageou o "maestro" soberano de Chico e parceiro musical, Tom Jobim. Para completar, há a canção composta por Tom e Chico em 1993, intitulada: "Piano na Mangueira".
Se, em muitas das canções anteriores, vimos que havia uma relação contraditória entre o individual e o coletivo, agora percebemos uma imbricação entre a memória pessoal (autobiográfica) e a memória geral, a própria história do século XX.
De certo modo, Chico Buarque está inserindo sua própria vida e carreira na história do Brasil, algo que já havia esboçado na música "Paratodos", de 1993. Nessa composição, ele enumera seus antecedentes (pai, avô...), cita seu "maestro soberano", Tom Jobim, e evoca músicos brasileiros, uma forma de situar-se na história musical do País.
Agora, em "Barafunda", a memória abrange eventos em um tempo histórico mais amplo, mas, ao mesmo tempo, esses eventos se confundem, dificultando a precisão da lembrança. E, como veremos, essa recordação está associada não somente a uma espécie de "balanço" histórico, mas também a uma celebração:
Salve o dia azul
Salve a festa
E salve a floresta, salve a poesia
E salve este samba antes que o esquecimento
Baixe seu manto
Seu manto cinzento
Essa lista meio caótica de elementos, porque são um tanto díspares (dia, festa, floresta, poesia, samba), na verdade esconde uma lógica. Em primeiro lugar, toda a estrofe aponta para o presente e para o futuro, ao contrário das estrofes anteriores, ancoradas no passado. E começa celebrando os dias ensolarados e a festa, todo um clima de bem viver, de comemoração da existência. Ao mesmo tempo, há um alerta para salvar a floresta e a poesia, dois lados daquela existência celebrada: a natureza e a cultura, tão caras à obra de Tom Jobim, por exemplo.
A canção, portanto, aproxima a alegria de viver da necessidade de preservar a natureza e a poesia, pois sem estas a vida se esvazia. Mas não apenas isso: nessa vida, há o samba, a música, que tampouco podem ser esquecidos. Ela mesma ("Barafunda") é um samba alegre, que tem o próprio ritmo incorporado em muitas partes de sua melodia, como por exemplo, nos versos "Gravei na memória/Mas perdi a senha", nos quais as sílabas fortes parecem compor a percussão.
Então, temos um ciclo: a memória que resgata o passado está revivendo valores que tornam a existência presente algo digno de ser vivido, mas paralelamente aponta para o futuro e a necessidade de preservar esses valores, como a natureza e a poesia. E, fechando o círculo, temos a própria composição de Chico Buarque ("este samba") - como registro desse passado e da permanência desses valores - que também deve permanecer, ser lembrada, lutando contra o "esquecimento" (o "manto cinzento", em oposição ao "dia azul").
Nesse sentido, a canção, uma vez mais, se mostra autobiográfica, na medida em que o compositor, ao recuperar o passado do qual faz parte (a simbiose apontada entre a história profissional de Chico Buarque e a história do Brasil), luta para não desaparecer na memória da música brasileira.
O refrão, marcando a busca do passado, volta aos nomes de mulheres:
Foi Glorinha
Não, era Maristela
Juro que eu ia até casar na Penha com ela
A vida é bela
Como sempre, quando se trata da obra de Chico Buarque, nada é simples. Neste refrão (que, na verdade, nunca é o mesmo nesta canção), além de se misturarem os nomes femininos, continuando a confusão da memória, se introduz um dado novo, apenas insinuado na primeira estrofe: a confirmação de que uma dessas mulheres (ou, quem sabe, todas?) foi uma paixão que não durou. O resgate do passado, então, já se iniciou como uma busca de um nome de mulher, nome que continua a ser requisitado. Assim, a celebração do tempo atual e sua perspectiva futura - de não-esquecimento da própria história desse sujeito - se associam a um sentimento de paixão do passado. Trata-se, portanto, de recuperar esse sentimento, atualizá-lo, trazer de outro tempo algo que possa ser investido neste, agora, para poder chegar a dizer: "A vida é bela". Ou não é?
É, não é
Era Zizinho era Pelé
Aliás, Soraia era Anabela
Era amarela a saia
Foi quando a verde-e-rosa saiu campeã
Cantando Cartola ao romper da manhã
De novo, a dúvida ou a mescla de duas respostas, "sim" e "não", da mesma forma que o passado é duvidoso. Antes, a canção cita Garrincha. Agora, Zininho, Pelé... Mais nomes femininos, mas parece haver uma certeza: a saia amarela. Novamente, esse passado é composto, embaralhando as épocas: mulheres, jogadores, a escola de samba Mangueira... É como se o sujeito da canção estivesse repetindo o esforço de lembrar, buscando dados na memória, mas sem nunca ter certeza de tê-los encontrado. Além disso, os versos "cambaleiam" na melodia, que se parece a um drible (de Garrincha?), oscilando para cá e para lá, tornando a própria música vacilante, como a letra, que hesita em reconhecer os verdadeiros fatos do passado.
O jeito, então, é celebrar o presente e o próprio resgate do passado, ainda que equívoco. O sujeito repete a celebração, aliás, a única estrofe da letra que se repete idêntica à anterior, como se fosse a única coisa realmente inequívoca: a comemoração:
Salve o dia azul
Salve a festa
E salve a floresta, salve a poesia
E salve este samba antes que [o uísque] o esquecimento
Baixe seu manto
Seu manto cinzento
Mas não tão idêntica assim. Pois aqui Chico Buarque volta a usar o recurso comum na música brasileira (que já citamos no comentário de "Construção"), que é repetir uma estrofe ou um refrão quase idêntico ao anterior, mas com um pequeno desvio, às vezes somente uma palavra. Em "Barafunda", o compositor realiza uma mudança menor ainda, pois nem mesmo está na letra, apenas no modo de cantar. Na primeira vez, Chico canta: "E salve este samba antes que o esquecimento"... Mas, na segunda parte, ele canta: "E salve este samba antes que o esque..., o esquecimento". Ora, essa vacilação no início da palavra "esquecimento" cria outra palavra: "uísque", ficando, na verdade, assim: "antes que o uísque, o esquecimento". Temos, portanto, que a celebração do tempo e da vida do artista (brindada com uísque) está permanentemente ao lado do perigo do esquecimento. Mais ainda: o perigo de que a própria comemoração do tempo de vida atual prejudique a memória. Beber para esquecer ou para lembrar? Permanece a barafunda:
Era Aurora
Não, era Barbarela
Juro que eu ia até o Cazaquistão atrás dela
A vida é bela
É Garrincha, é Cartola e é Mandela
Mas, se continuam existindo a confusão da memória e o perigo do esquecimento, não importa: o sujeito da canção - e, como supomos ser um tanto autobiográfica, o próprio Chico Buarque - afirma a beleza da vida e a permanência de sua arte, a música. Arte que se junta a outras esferas da vida (como antes a natureza - "floresta" - e a cultura - "poesia") para compor uma existência justificada, digna de ser (e de ter sido) vivida: o futebol (paixão de Chico Buarque), a própria música popular brasileira (já celebrada antes na canção "Paratodos", como vimos) e outro componente importante da obra e do pensamento de Chico Buarque em toda a sua carreira: a crítica à desigualdade social, à exploração, e a defesa dos direitos humanos, daí a referência a Nelson Mandela.
Sim, a vida pode ser celebrada. Aliás, se tudo era referência ao passado na canção, aqui temos uma frase no tempo presente: "A vida é bela".
O que era uma dúvida ("É, não é") pode se transformar numa afirmação, se fizermos uma entonação interrogativa: "É, não é?". A vida é bela, não? "Sim", diz o sujeito da canção/Chico Buarque, mas somente se ela é "Garrincha, é Cartola e é Mandela", este último verso compondo como uma essência que atualiza essa beleza, sintetizando as paixões, preocupações e interesses de Chico Buarque em toda sua obra: o futebol, a música popular, a política.
E a nossa vida? Também pode ser bela, se ela é: Chico Buarque.
Bibliografia
- CHEDIAK, Almir. Songbook Chico Buarque. (4 vol.) 7. ed. Rio de Janeiro: Lumiar, 1999.
- CHICO BUARQUE: letra e música. São Paulo: Companhia das Letras, 1989 (2 vol.).
- COUTO, Cristina de Almeida. As cidades de Chico Buarque. Fortaleza: Imprece, 2010.
- FERNANDES, Rinaldo de (Org.). Chico Buarque do Brasil: textos sobre as canções, o teatro e a ficção de um artista brasileiro. Rio de Janeiro: Garamond; Fundação Biblioteca Nacional, 2009
- FONTES, Maria Helena Sansão. Sem fantasia: masculino-feminino em Chico Buarque. Rio de Janeiro: Graphia, 2003.
- HOMEM, Wagner. Histórias de canções: Chico Buarque. São Paulo: Leya, 2009.
- MENESES, Adélia Bezerra de. Desenho mágico: poesia e política em Chico Buarque. 3.ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.
- _______________. Figuras do feminino na canção de Chico Buarque. 2. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
- SILVA, Fernando de Barros e. Chico Buarque. São Paulo: Publifolha, 2004 (Col. Folha Explica).
- ZAPPA, Regina. Chico Buarque para todos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.
- ______________. Para seguir minha jornada: Chico Buarque. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
Site: www.chicobuarque.com.br
Créditos das canções
(Nota: As datas entre parênteses correspondem ao registro da canção, não sendo necessariamente coincidentes com o ano do disco em que está gravada.)
- "Pedro pedreiro" (© 1965 Editora Musical Brasileira Moderna). Foi gravada num compacto junto com "Sonho de um Carnaval" e depois incluída no LP "Chico Buarque de Hollanda" (1966).
- "Sonho de um Carnaval" (© 1965 Editora Musical Arlequim). Foi gravada no compacto citado acima e depois incluída no LP "Chico Buarque de Hollanda" (1966).
- "A banda" (© 1966 Editora Musical Brasileira Moderna). Está no LP "Chico Buarque de Hollanda" (1966).
- "Quem te viu, quem te vê" (© 1966 Editora Musical Arlequim). Foi gravada no LP "Chico Buarque de Hollanda, vol. 2" (1967).
- "A Rita" (© 1965 Editora Musical Arlequim). Foi incluída no primeiro LP, já citado.
- "Januária" (© 1967 Editora Musical Arlequim). Foi gravada no LP "Chico Buarque de Hollanda, vol. 3" (1968).
- "Sabiá" (© 1968 Marola Edições Musicais). Canção nunca gravada por Chico Buarque, mas sim por Tom Jobim nos LPs "Sinatra-Jobim sessions" (1969), "Stone flower" (1970), "Terra Brasilis" (1980), "Tom Jobim inédito" (1987/2005) e "Rio revisited" (1987). Também está no disco "III Festival Internacional da Canção Popular, vol. III", de 1968.
- "Apesar de você" (© 1970 Marola Edições Musicais). Gravada num compacto em 1970 junto com "Desalento", depois incluída no LP "Chico Buarque", de 1978.
- "Construção" (© 1971 Marola Edições Musicais). Foi gravada no LP com o mesmo nome em 1971.
- "Acorda, amor" (© 1974 Marola Edições Musicais). Incluída no LP "Sinal fechado" (1974).
- "Meu caro amigo" (© 1976 Trevo Editora Musical). Gravada no LP "Meus caros amigos", de 1976.
- "Olhos nos olhos" (© 1976 Marola Edições Musicais). Incluída no mesmo LP citado acima.
- "Homenagem ao malandro" (© 1977-78 Marola Edições Musicais). Gravada no LP "Chico Buarque" (1978).
- "Pivete" (© 1978 Trevo Editora Musical)
- "Bye, bye, Brasil" (© 1979 Marola Edições Musicais). Gravada no LP "Vida", de 1980.
- "Já passou" (© 1980 Marola Edições Musicais). Incluída no mesmo LP citado acima.
- "Eu te amo" (© 1980 Marola Edições Musicais). Gravada no mesmo LP citado acima.
- "O meu guri" (© 1981 Marola Edições Musicais). Gravada no LP "Almanaque", de 1981.
- "Pelas tabelas" (© 1984 Marola Edições Musicais). Incluída no LP "Chico Buarque", de 1984,
- "Mil perdões" (© 1983 Marola Edições Musicais). Gravada no mesmo LP citado acima.
- "Vai passar" (© 1984 Marola Edições Musicais). Incluída no mesmo LP citado acima.
- "Anos dourados" (© 1986 Marola Edições Musicais). Nunca gravada por Chico Buarque, apenas por Tom Jobim no LP da novela "Anos dourados", da Rede Globo (em versão instrumental) e no disco "Passarim" (1986).
- "O futebol" (© 1989 Marola Edições Musicais). Gravada no LP "Chico Buarque", de 1989.
- "Baticum" (© 1989 Marola Edições Musicais). Incluída no mesmo disco citado acima.
- "Futuros amantes" (© 1993 Marola Edições Musicais). Gravada no LP "Paratodos", de 1993.
- "Bolero, blues" (© 2006 Nossamusica Produções e Edições Musicais). Gravada no CD "Carioca", de 2006.
- "Renata Maria" (© 2005 Nossamusica Produções e Edições Musicais e Marola Edições Musicais). Incluída no mesmo CD citado acima.
- "Nina" (© 2010 Marola Edições Musicais). Gravada no CD "Chico", de 2011.
- "Essa pequena" (© 2010 Marola Edições Musicais). Incluída no mesmo CD citado acima.
- "Barafunda" (© 2010 Marola Edições Musicais). Faz parte do mesmo CD citado acima.