Falas brancas
Renato Tapado
I
Em meio à brancura dos dias,
afago a palavra contra o muro.
E martelo a parede até o fim
com a fome do meu corpo e do teu.
II
Percorro as horas perdidas e paro.
Tudo são imagens, palavras saturadas, ruídos.
Eu busco a leveza do branco, o sentido do silêncio.
Minha voz é um relâmpago mudo.
III
De todas as cores, vivo as cinzas.
Fagulha do que toca minha palavra.
Meu corpo se aquece é na brancura de ser.
Mudo como um rio.
IV
Todo gesto me leva a mim.
Sou aquilo de que me alimento.
Fujo da cidade e sua vida cheia de tudo.
E estremeço diante da parede vazia.
V
Distraio o instante sem graça e escapo.
Preso ao chão, à curva do tempo, resvalo.
Então, procuro fios feitos de nada
e teço na palavra uma paixão alada.
VI
Tudo me separa de mim.
Menos meu olhar,
que se deita sobre essa paisagem falsa
e me devolve a fibra do segredo.
VII
Diante do dia, fecho os olhos.
Escuto a violência das falas e me escondo.
Só me abro para o branco e seu abraço.
A tessitura muda de um desejo.
VIII
Perda sobre pedra.
Tudo é seco e frio neste presente escasso.
Procuro o grito da gaivota
e sua promessa úmida de fomes.
IX
Nada a dizer, nada a mostrar.
Meu silêncio se insinua é no escuro,
no âmago de um corpo a céu aberto,
apenas véu: algo que não se vendeu.
X
Caminho a esmo e fico pasmo.
Escuto meus passos no deserto.
Grito para a rocha, e vem um eco.
Invento alguém que me responda.
XI
Apresso minha posse de um desejo.
Tudo foge, tudo cai nos dias abissais.
Apuro meu olhar e meu silêncio:
a fome que entrevejo atrás da porta.
XII
Ensaio o gesto de falar.
Uma palavra voa e não tem volta.
Brancuras que se jogam mar afora.
Aqui dentro, minha voz à espera.
XIII
Esta palavra não está aqui.
Esta brancura já ruiu.
Só restam estes corpos à espera:
você e eu.
XIV
Procuro
por um cego e surdo
(contra essa esfera bruta de
imagens):
um silêncio de estrela.
Passeio pela névoa nua.
XV
Me demoro diante do muro.
Mínimo navio.
Desleio um grafite em devaneio
e paro em mim num salto.
XVI
A crina que não agarro:
a pele densa do instante.
Invento um desejo sem dono
e te cedo essa poção alada.
XVII
Fecho os olhos e escuto.
É no murmúrio das águas que me aqueço,
no tempo escorrendo entre essas perdas,
para voltar a mim.
XVIII
Deliro no meio do rio.
Circulo em nada. Passo.
Evito a consistência de um alô.
Converso com a garça.
XIX
Clique: me disparo na palavra.
Tchau. Na pressa subtraio.
Zás sem fim, rubrica nula,
mula que me empaca:
a voz em branco.
XX
Seio que quero:
saber um ácido na pele.
O branco de uma língua rala,
uma gula que vinga,
a tez avara.
XXI
Sofro a pertinência dessas falas.
O barulho de vozes marteladas.
Danço sem música, meu corpo
aceso, no mínimo volume.
XXII
Espero que teu corpo chegue.
Desnudo e quente, as mãos abertas.
Tua voz em branco, um leite, pêlos.
Um círculo de giz que nos abrace.
XXIII
Minha voz: um traço que respinga,
o mar aberto, o branco
de uma sede sem começo:
escrevo umidades em teu corpo.
XXIV
Minha fome é de mim.
De teu corpo dentro, esse lampejo
que vislumbro e agarro:
colo onde resguardo essa palavra.
XXV
Falo num fio.
Um lume sem fulgor,
areias foscas, pele branca.
Grãos de grito.
XXVI
Um dia cinza me persegue.
O mar de chumbo enrugado.
A nave vazia de mim.
Minha alma em névoa.
XXVII
Chuva fina no telhado.
Gotas como pétalas.
A brancura de um talo nu.
Nenhum chá me aquece.
XXVIII
O lume dos olhos do gato
me detém. Nem a lua
me desvia desse túnel,
linha de ágata, móvel porcelana.
XXIX
Um piano, uma tarde, silêncio.
Os olhos de alguém que não esqueço.
Desisto de partir, exploro o instante
enovelado nessa fala branca.
XXX
Agarro Marguerite Duras,
me debruço em Debussy
e espero: uma voz muda,
teu corpo imóvel,
ave na parede branca.
XXXI
Desteço essa quase-palavra
que insiste em se fixar.
E o que sobra é essa brancura
na sombra, na garganta, no olhar.
XXXII
Mar aberto. Me fecho em mim
como a concha batendo,
sem aconchego,
na espuma dos dias.
XXXIII
Falo contra grades. Grito
na textura das pedras.
Picho de branco a sombra do silêncio.
Minha rouquidão me exaspera.
XXXIV
Tempo liso como folha branca.
Praia sem pau ou pedra.
Lanço uma sílaba: um grão
nessa erosão de esperas.
XXXV
O berro da águia na vidraça.
Minha sede se acende, exacerbada.
Há um rio dentro de mim que não alcanço.
Tenho pressa. E lanço
letras secas no papel.
XXXVI
Pausa na voz:
grãos de tinta úmida na pauta.
Da garganta,
da página vazia,
ouço meu silêncio.
XXXVII
Alma é uma mala.
Carrego-a vazia de mim
cheirando a sobressaltos,
sem saída: só passagens.
XXXVIII
Paro pra escutar o tempo
nessa massa de ruídos.
Sob o branco, na tessitura de um grito,
passo. E fixo este instante no papel.
XXXIX
Falo para além, aqui,
sob essa voz que geme.
Falo em sombras, em branco,
e finjo uma palavra clara.
XL
Minha voz hiberna
na pele de um sonho desgastado.
Minha voz é esse inverno sem fim,
sem gramatura, névoa de si.
XLI
Pássaros gritando, chuva fina.
Aqui, neste caderno aberto,
se instala a quietude:
voz branca, morte opaca.
XLII
Imito a precisão do gato.
Escrevo um gesto:
nada a significar, a não ser
o desenho de um gesto,
a brancura de não ser.
XLIII
O breu de um minuto vazio.
A fala isolada de mim.
Eu grafo a falta.
XLIV
Pele marfim, cabelos pretos:
a escritura de teu corpo abala.
Pressinto essa tensão no agora,
o grito que ainda não partiu,
a página rasgada.
XLV
Pálida passagem. Tempo neutro
à espera de uma espera.
Falas claras,
finas como folhas,
e um vento irremediável.
XLVI
Perplexo, me olho no ex-espelho:
eu já fugi. Resta a fuligem
de uma imagem vã,
disposta a me cobrir
de exasperadas cinzas.
XLVII
Cavo agora uma espera.
Invisto na agonia do não.
Sofro a inconsistência das horas
e me arco:
tensão de carta sem resposta.
XLVIII
Espero a hora do lobo.
A garra trêmula de fome.
O instante do deslize rumo à presa.
Espero na penumbra:
olhar de fogo
diante da palavra fugaz.
XLIX
Dia de silêncios.
Faca sem uso, palavra crua.
Talhe de brancura opaca.
Só um vento por dentro
remexendo folhas.
L
Meu gesto arde só.
Não sei onde guardá-lo.
Rabisco a dúvida na pele, e
ela treme:
chama de uma fala branca.