Gatos: pequeno dicionário poético
Renato Tapado
Não um dicionário de definições, mas de cintilações.
Roland Barthes, O neutro
A
ABANDONO
O gatinho mia. Seus olhos estão arregalados. Seu pêlo, frio. Tem muita poeira no corpo, e um ruído ininterrupto e irritante de dentro de si, mas não é um ronronar: é que ele não come. Quando avança uns passos, passa um carro rápido e aterrador. O gatinho recua. Pessoas transitam por ali, faz frio, cachorros ameaçam a distância, e nada convida a um aconchego. Ele mia outra vez. E mais. É quase um grito sua solidão aguçada pela sede, o mal-dormir, a ausência da mãe, os perigos da rua. Esse mundo não é para o pequeno e magro felino. E assim, com olhos tristes e sujos, ele percebe a sociedade dos seres humanos. E mia alto. Até que, do nada, de alguma espera do outro lado da vida, da rua ou da esperança, outro solitário se aproxima. E duas mãos mornas e fortes acolhem o gatinho, que fita essa pessoa espantado, incrédulo. Mas, afinal, feliz.
ACORDAR
O gato está dormindo há horas, mudando lentamente de posição de vez em quando, acumulando camadas de sono. De repente, um barulho forte e agudo o faz abrir os olhos e retesar o corpo como se estivesse totalmente desperto - e está. Noutras vezes, o dono passeia pela casa, ouve música, conversa ao telefone, e o felino nem pisca, derrotado pelos sonhos, até que, chegando a noite, ele vai abrindo os olhos devagar, observa o ambiente tranquilo, respira fundo e, mexendo os olhos, começa a perceber o movimento dos primeiros insetos. E há aquelas vezes em que o dono, vendo-o dormir, senta ao seu lado, não resiste e estende a mão até o pescoço do gato, por baixo das orelhas, e mansamente afaga seu pêlo de seda. O gato abre os olhos, vê quem é que está ali, então se espreguiça completamente, suspira e volta a fechar os olhos, sonhando acordado.
ÁGUA
Chove. O parapeito-observatório está úmido. Uma janela foi fechada. Há um ruído ininterrupto no telhado, e as calhas recolhem a profusão de águas e pequenas folhas, jogando-as nas lajes ao redor da casa. Uma porta se abre para o quintal. O gato espreita. O cheiro de terra lavada e restos de plantas chega ao seu focinho. Seus bigodes se antenam. Tudo lá fora mostra um movimento intenso. Ele estende uma pata e toca o piso frio. Depois, outra. Meio corpo já está no pátio, investigando a densidade da chuva e seus limites. Então, ele arrisca e salta para o jardim. Imediatamente, tem um choque. Suas patas afundam num musgo líquido e gelado, gotas-agulhas caem sobre seu dorso, o mundo respinga pontos úmidos cobrindo tudo, e o gato dispara de volta para a proteção da porta. Ali, estende uma pata e sacode-a, nervoso, até que a última gota atrevida se desprenda de suas garras. Depois, vai tremendo as outras patas, num balé desengonçado e rápido destinado a recuperar a secura do pêlo. A calma volta à expressão do felino, e então sua língua começa o longo trabalho de tornar seu corpo enxuto novamente. Ele olha com olhos tristes e amarelos para a rua. O mundo e suas chuvas não dão trégua. Nisso, a dona aparece à porta, e o pequeno felino, indignado, lança seu miado em que, ao mesmo tempo, apresenta a sua injúria ao tempo e pede, cabeça baixa, o afago manso - e seco - daquela que o protege da ira das águas.
ÁGUA CORRENTE
Na primeira vez, não se entende. No momento em que se está escovando os dentes, o gato dá um salto e para na pia, lugar úmido e onde jamais houve ou haverá qualquer indício de comida. Então, se fecha a torneira para não molhá-lo, e é quando ele nos olha de dentro de sua perplexa incompreensão. Só tempos depois se revela seu desejo insólito: beber da fonte de água corrente. Ele usa as garras para se apoiar na borda da louça como se ali houvesse rochas resvaladiças. Abaixa o corpo e estica o pescoço, como a investigar bichos miúdos, e leva a língua à cócega do líquido, lambendo o frio que não pára de passar. Imerso na memória dos arroios e cascatas, o gato, neste instante, resgata o sabor atávico das fontes, pelo menos alguns segundos, até que uma mão poderosa interrompe o fluxo da água, e a realidade volta a ser um lugar sem rio e com paredes.
ALMOFADAS DAS PATAS
Caminhar, para o gato, é um exercício de silêncio. Suas patas são dotadas de almofadas, que dissimulam a preparação do salto sobre a presa, os passos noturnos no telhado, a cata de alimento sobre a mesa. Servem de apoio para o ataque, quando das patas se estiram as garras prontas para o desenlace. Também são elas que delatam a presença do felino, gravadas no barro, à beira de um regato. E as almofadas também criam laços. É quando o gato apoia as patas levemente no rosto da dona, com o olhar enternecido, deixando ali as marcas invisíveis da carícia.
ALONGAMENTO
Primeiro movimento: com as garras descansadas, as vibrissas quietas, abre-se um olho calmo, e uma diminuta luz amarela busca o dia em sua tarde letárgica de sono. Então, as patas começam a tecer sua urdidura invisível rumo a esse limiar do corpo, lá, onde a entrega ao solo e ao ar é total. É quando, em seu paciente despertar, o gato vai desenrolando o corso, lentamente, até ficar assim, inerte e estirado, o olhar perdido no tempo, o corpo preparando-se para a hora da fome.
Segundo movimento: a língua ainda guarda a textura da comida, e já os membros se entregam à devassidão da extrema limpeza, expostos a essa lixa rosada que torna o gato um ser limpo sem as agruras da água. É a hora do suspiro. Passos quietos passam pelo dono, indiferentes. O pequeno corpo de pêlo asseado procura seu sofá. O mundo segue a rotação de si, não há ruídos. Um último olhar ao abajur aceso, o dono lendo na poltrona. Então, avesso a tudo que se move, o gato lança-se ao quase-esforço que é se espreguiçar inteiro, como lã rolando num segundo, até que, saciado, deita, fecha os olhos e sonha. E as cores começam a surgir.
AQUÁRIO
Um gato diante de um aquário desespera. A lâmina da água o desatina, transparente e oblíqua. O movimento leve, fluido e rápido o tonteia. As cores e seus brilhos o entorpecem. São peixes. O mundo despe suas máscaras e se revela, ali, de uma brutal beleza. Mas inacessível. O gato abre as pupilas e as garras. A ousadia vermelha de um peixe miúdo toca o vidro, provocante. Esse mundo é incompreensível. Faísca sua íris. Seus membros tremem. Suas presas zombam dele de dentro de um mundo hostil feito de água e paredes invisíveis. O gato suspira. E tece em sua mente, sem saber, um sonho com peixes.
AREIA
Para a fria Biologia, o felino doméstico enterra suas fezes para escondê-las de um predador maior e não provocá-lo. Mas a dona do gato sabe que, além dessa precaução aprendida, digamos assim, geneticamente, ele se incomoda mesmo com cheiros e substâncias inoportunas. Assim como a água, o gato evita colocar suas patas em coisas de fortes odores, a não ser, é claro, se o aroma for de uma suculenta coxa de frango. Se a dona, por esquecimento, deixa de trocar a areia de deu "banheiro", o gato se recusa a usá-lo, tampouco faz suas necessidades em superfícies demasiado lisas, onde não pode cavar nem enterrar nada. Mia e reclama, até que a higiene de seu espaço esteja resolvida. Depois de usar a bandeja de areia, ele tapa tudo, meticulosamente, cheira para sentir se não cometeu nenhum deslize e, satisfeito e orgulhoso, está ansioso para ser aceito num dos lugares de que ele mais gosta, essa ilha de limpeza, aconchego e cheiro bom de sua dona: o sofá. Pois, como disse o poeta Pablo Neruda, "tudo é imundo para a imaculada pata do gato".
ÁRVORES
Não há nada na árvore, a não ser suas próprias folhas enchendo a copa. No entanto, o gato, tenso no solo, olha para cima com as pupilas arregaladas, o rabo em movimentos nervosos, e pula. Escala o tronco com a velocidade do vento, suas garras se fincam na casca da árvore e o impulsionam para cima, seus músculos o lançam em segundos até os altos galhos, e, enlouquecido com o prazer da aventura, olha para baixo, para ver se a dona está lá, observando-o, e então se transforma num macaco, saltando para lá e para cá. Nos galhos maiores, se entrega ao deleite de ser felino, parente dos tenebrosos leões africanos e dos temíveis tigres da Índia e da Sibéria. Abre a boca e mostra seus dentes afiados, estica as garras, tensiona os bigodes e as orelhas, como verdadeiro selvagem que nas florestas procura descanso e posto de observação para caçar. A dona, lá embaixo, sorri. Então, o gato se cansa de tanta atividade, decide voltar e para na primeira forquilha. Olha para a dona com expressão ansiosa e perde rapidamente a pose de fera. Solta, então, um miado de desconsolo, que faz a dona se aproximar da árvore: o pequeno felino não sabe como descer... Ela vai até lá, e ele mia outra vez. Nesse momento, ela o tranquiliza e lhe estende os braços. O gato dá um último miado de preocupação por sua segurança, mas começa a descida, que acaba nos braços mais acolhedores que ele conhece. Finalmente, para aliviar a carga de estresse, ele vai se enroscar no sofá.
B
BALANÇO
Ouve-se dizer, nos lugarejos à beira-mar, que o gesto dos pescadores de balançar o barco, ainda em terra, antes de deslizá-lo sobre troncos e ganhar as águas - ação tão antiga quanto a migração dos peixes no inverno - é um estratagema para tirá-lo da inércia. Já em movimento, mas parado sobre uma fileira de paus expostos à intempérie, a baleeira
adquire a leveza necessária para sair da areia.
Perto dali, observando tudo, tal qual o vigia de olho nos cardumes azuis, o pequeno felino se esgueira por entre minúsculas gramíneas da restinga espreitando algum bichinho. Quando percebe um movimento vivo à sua frente, o gato se abaixa, quase rastejando, e mira aquele que logo será atacado impiedosamente. Olhar fixo, músculos tensos, na hipnose inadiável da presa, de repente começa a dançar - ou quase. Na verdade, toda a parte - digamos assim - traseira do felino balança, balança como se ele fosse enganar alguém, como se não estivesse ali, naquele exato instante, para caçar. Vencida a inércia, o gato salta. E suas garras caem sobre aquele ser vivo que, distraído em sua inércia contemplativa, nunca mais vai balançar.
BANHO
Não há nada mais irracional no universo felino do que um banho. Após as ásperas lambidas higiênicas, a cata da minúscula impureza, a saliva asséptica lustrando o longo pêlo, a chegada da água é um despropósito. É curta a paciência felina na hora incômoda do banho. O dono o atrai, sorrateiro, para o piso do box onde, às vezes, o gato busca água fresca para beber. Então, a armadilha começa a se mover: o ruído do chuveiro marca o momento sem retorno, e já a agressão suave da água morna sobre o pêlo imaculado delata a traição do ser humano. O gato, exasperado, mia, mia longamente, melancólico e irado, contra aquele ataque macio, inescapável, que mãos cúmplices, humanas, ajudam a cometer. Depois dessa tortura sedosa, o gato, desnorteado, encontra a aspereza clara da toalha, enxuta como o paraíso, acariciando a seda brilhante do seu pêlo. O dono, então, lhe dirige as mais afetuosas palavras. Em vão. O gato o ignora e, urgentemente, começa, com a língua rosada, a sua secagem salvadora, até que esteja completamente limpo dessa substância úmida e estranha sobre o corpo. Foi traumático. Mas agora, paparicado e impecável, mia. E sua voz denuncia uma felicidade felina.
BARRIGA
O gato, quando a dona começa a brincar com ele, protege antes de tudo sua barriga. Pode se esquivar da mão humana tentando atingir sua cabeça, seu focinho, suas patas, mas uma das coisas que mais o irrita é que alguém toque em sua região abdominal, área importante a preservar para a sobrevivência. Com a boca entreaberta, os dentes afiados à mostra, enquanto aquela mão tenta de todas as formas atacar esse ponto delicado, o felino expõe suas garras e lança coices com as patas traseiras, e com as dianteiras dá tapas convincentes, perigosos, que, se agarrarem alguma pele, arranham de verdade. Depois, os dois cansados, espichados no tapete da sala, a dona estende a mão e a pousa, lenta e delicadamente, sobre a pequena barriga ao seu lado. Então, o gato se alonga, enche o peito devagar, olha para longe, longe, com um jeito sonhador e recebe aquela carícia como sua prova de maior confiança.
BARULHOS
Se há algo que provoca o corpo inteiro do gato, desde o último pêlo fino de sua cola até a extremidade tenaz das orelhas, são os barulhos. Uma tampa de panela caindo o sobressalta como ninguém. O movimento amassando o saco plástico de ração o faz salivar. O tom de passarinhos ariscos o predispõe à caça. Passos estranhos lá fora puxam para cima suas orelhas. O pulo de um grilo o estimula. Tudo soa, tudo significa para o organismo-radar do felino. Até o ranger da cama ou da porta do roupeiro do quarto da dona, que o faz saltar, sem aviso, para estar com aquela que, com sua voz, lhe dispensa os melhores sons.
BIGODES
À noite, enquanto o dono está entretido com alguma coisa, o gato se esgueira pelas peças não iluminadas da casa. Pesquisa entre vários móveis e não esbarra em nenhum, pois tem um radar em seu corpo: os bigodes. Esses fios altamente especializados e eficientes ajudam a situar o felino entre tantos objetos inúteis para ele e, claro, também auxiliam na localização do que interessa: bichos. Aliados ao olfato, os bigodes têm a capacidade de "ver" o que nós, muitas vezes, não vemos. O gato, literalmente, quer pôr o nariz em tudo, pois sua curiosidade não tem fim. A não ser às vezes, quando abusa do gosto por dar fé de tudo na cozinha, e quando o dono, que está cozinhando, escuta um miado de reclamação e vai ver o que houve, demora para perceber: o gato está com a ponta dos bigodes chamuscados...
BISBILHOTAR
A dona abre o armário para escolher uma roupa, e o gato se infiltra ali, entre blusas e calças, dá meia-volta e sai. Ela olha se os sapatos que quer estão debaixo da cama, então o felino escorrega para lá, como se passasse sob arames farpados numa guerra, dá várias voltas embaixo da cama - fazendo não se sabe exatamente o quê - e ressurge, com o olhar ávido por novas descobertas. A dona vai telefonar para confirmar o encontro. Ele sobe no colo dela rapidamente e, quando ela começa a falar, ele cheira o aparelho, se roça nela e começa a morder o fio. E quando ela vai até a cozinha fazer um lanche antes de sair, o gato vai atrás, investiga o abrir de gavetas e portinhas, põe o focinho dentro da geladeira e tenta subir na mesa para saber o que há de apetitoso ali. Finalmente, a dona se despede dele e sai de casa. O gato, com o olhar jururu, fica ainda observando o trinco da porta. Depois, resignado, desiste de bisbilhotar e vai procurar um bom lugar para dormir (até que a dona volte...).
BOLAS
Há ocasiões em que o gato se depara com um paradoxo: como alguma coisa pode correr e parar, golpear e fugir, até saltar, intacta, diante de experientes patas felinas, incansavelmente, jamais se deixando agarrar? Estranha e redonda mariposa, no mais das vezes colorida, arrebatada e ágil, que sempre escapa, mas retorna e persevera. O felino, em sua perseguição, resvala. Num pulo, tapeia a sua presa esférica e fugaz, e corre. Esse objeto, quando se desenvolve no piso, emite ruídos insólitos. E quica. Nesses instantes, os olhos agudos do gato o acompanham, num movimento intermitente, até que a coisa, em sua envoltura repetitiva e sem arestas, descanse num canto. O felino observa. Que coisa é essa que, agora, se fecha em sua finita e perfeita geometria, e dorme? Ele não compreende. Então, suspira, volta ao seu sono reparador e sonha, talvez, com uma vida redonda.
BORBOLETAS
À luz do Sol, com a brisa de uma primavera suave e azulada, o gato descansa. Então, uma pétala talhada em arabescos passa voando, vermelha e negra, como levada pelo vento. Depois, uma folha ocre e ferrugínea pousa no tronco de uma árvore. Um floco bege, bordado com filigrana dourada, aparece, esvoaçante, entre folhagens. O gato assiste a tudo isso e arregala os olhos. Nada, fora os pássaros, passa no alto com tamanha beleza. Esse espera mais. E elas vêm: um leque enorme, púrpura-azulado, faz círculos no ar; um pedacinho de papel de seda da cor da água do mar, translúcido, pousa em flores amarelas; e um par de lumas simétricas, pontilhadas de branco, se movimentam perto do felino, que olha para todas elas maravilhado, perplexo, mas nem chega a esboçar um salto ou um de seus vôos exemplares, pois aqueles seres coloridos e alados provocam sua curiosidade, possuem o poder de exercitar sua existência estética fora do alcance de quadrúpedes, presos à terra e impotentes para o ar, como o gato que, sem piscar, fixa seu olhar nas borboletas e sonha em abocanhar uma porção dessa matéria tênue e deslumbrante.
BRIGAS
É próprio do gato macho brigar. O simples passeio de outro felino em "seu território" já é suficiente para haver uma cena violenta. Mesmo quando muitos "territórios" se sobrepõem - o que, aliás, é natural acontecer. No caso de uma gata circulando em cio por entre machos, a disputa, então, é ainda mais incisiva. Há muitas outras fêmeas no cio, continuamente, mas todos eles querem aquela... De volta à casa, o gato, arranhado, por vezes sangrando, o pêlo imundo, meio jururu, a primeira coisa que faz é buscar - dentro de sua "área" - seu dono. A segunda, miar. A terceira - por que, então, brigar, se fosse algo tão à toa? -, receber, sem exigências nem dilemas, os braços daquele que trata das feridas do pequeno felino como se fossem suas. E os dois, por fim, adormecem sem perceber.
BRUXAS
Para o imaginário medieval, o gato era associado às bruxas. Seus passos furtivos, seus gestos rápidos e sua independência em relação aos humanos só podiam ser sinais de sua essência de outro mundo, disposto, neste aqui em que vivemos, a ajudar nas manobras das más bruxarias contra os mortais mais ingênuos. Um felino negro de olhos claros é uma imagem que desde tempos remotos causou um arrepio a alguns na noite fechada de alguma sexta-feira... Nesse medo, se instalava, sub-reptício, o fascínio pelo que estava além do gato, por detrás das íris amarelas e profundas... Hoje, no entanto, o pequeno gato negro circula, incólume, entre móveis, fornos de microondas e televisores sem causar maiores sobressaltos aos incrédulos e racionais seres humanos da pós-modernidade. Menos quando não se é dono de um deles e se depara, de repente, com seu vulto escuro em ondulados espasmos junto a bananeiras noturnas, em dias de vento gélido e implacável, quando os olhos do gato preto, ao encontrar os nossos, faíscam em meio à tempestade...
C
CAÇA
Algo passa rápido. Nem se sabe se correndo ou voando. Não importa. Um ser movente, portanto vivo, trêmulo e quente, desperta a euforia dos reflexos e dos músculos felinos. Num salto, ele já está atrás da futura presa, na verdade um futuro tão curto, que quase se pode dizer que, entre um gato e sua presa, só existe um presente efêmero. De um mínimo grilo a um metido rato, tudo atrai o pequeno felino, disposto a estirar as unhas e agarrar, no chão ou no ar, aquele que ousa passear diante dele e agora, em poucos minutos, se transformará num brinquedo, num exercício e, quem sabe, numa ração apetitosa. Em algumas vezes, o gato lança pequenas patadas no bicho caçado, para lá e para cá, observando-o sem piscar, cercando-o para que não fuja, até o cansaço. Noutras vezes, carrega a caça até o dono, deixando-a à vista para mostrar como é que se caça. Por fim, há ocasiões em que, além de tudo, come o pequeno bicho, e sua mente volta a experimentar o ambiente florestal e inóspito do passado do gato doméstico, deixando em sua língua o sabor de algo selvagem e sem donos, sem pratos de plástico e sem rações.
CARNE
Os sabores e cheiros das rações industriais atraem o gato como grilos. Esperando o momento em que o dono agarra a embalagem e faz o ruído característico do plástico sendo aberto, antes mesmo de derramar seu conteúdo no pratinho de plástico, já o pequeno felino dispara e se inebria com a refeição crocante e colorida. Mas, em certas ocasiões, festivas, talvez, ou quando, simplesmente, a dona decide presenteá-lo com novidades, o gato percebe, inequívoco, o perfume da carne. Então, se entrega ao devaneio agressivo, fora de si, dilacerando fibras suculentas e tenras, como se há tempos não experimentasse a gosto de outros animais. Alguém, para observá-lo, chega perto e, para sua surpresa, o gato - com ares de um estranho cão - rosna. E, entre olhares de soslaio para todo lado, volta a atacar a carne, e o mundo felino, nesse momento, é todo prazer.
CADEIRAS
Há diversas cadeiras na casa. Uma estofada, bege, junto à escrivaninha e às estantes com livros. Outra de madeira crua, perto da lareira e do cesto de lenha. Outra, ainda, forrada de azul, para o conforto do dono, que ali, muitas vezes, trabalha no computador. E diversas cadeiras de menor importância, sem a personalidade das demais, dispersas por mesas e recantos dos aposentos. Aquelas especiais, na verdade, pertencem ao gato, que as tomou para si à revelia do dono. Ele escolhe as três cadeiras segundo não se sabe que critérios, mas, em sua bondade felina, aceita, por vezes, compartilhá-las com pessoas. O uso que faz delas aos poucos vai revelando sobre sua vida na casa. A bege, com jeito de poltrona, o gato usa para dormir, alheio a tudo o que acontece ao redor, quando se desliga dos barulhos e até mesmo da presença de algum inseto. Ali tece seu casulo de sono e se esquece do mundo. A de madeira crua, ele escolhe quando está desperto, à noite, e seu dono está junto à lareira remexendo o fogo, e o felino ronrona por isso tudo e qualquer algo a mais que surja - por exemplo, um pedacinho de carne... A cadeira forrada de azul, o gato procura quando a casa está vazia. Nenhum ruído, nenhum passo no piso frio da cozinha, lá fora chove, e há uma falta pesando o ar das peças. O dono não está, e o gato sente esse vazio no cheiro que encontra na cadeira, no calor que em algum momento esteve ali, na voz que se dirige a ele, no afago que recebe de suas mãos, no colo ausente. Então, se enrola no assento azul, fecha os olhos e sonha com a hora em que alguém voltará.
CÃES
Por que um cão tem de mostrar todo o tempo uma afeição desmedida ao dono, quando às vezes, é próprio de todo ser estar recolhido em seus instantes solitários? Por que os músculos do cão se retesam e o impulsionam, a qualquer hora do dia ou da noite, ao encontro de alguém, sob Sol ou sobre chuva, como se estivesse preso eternamente à contingência do contato? E quando passa alguém desconhecido, imerso em sua sina, inofensivo, por que o cão dispara a latir, descontrolado, levando sua fúria até aquele ser perplexo, acanhado, que se aproxima do território canino sem intenção nenhuma? São essas as perguntas que o gato se faz, deitado sobre o muro, espiando essa espécie estranha que é o cachorro, e então, indiferente, volta a dormir.
CAIXAS
O universo felino é amplo e cheio de possibilidades de exploração: jardins, bosques, casas, telhados, ruas... Mas ele troca qualquer item desses por uma boa caixa. Mundo para dentro, ali o gato encontra um meigo abandono, convidando-o a se recolher num espaço exíguo e aconchegante. Parece nada haver ali, mas ele extrai desse minúsculo horizonte dezenas de impulsos que o fazem pular, se enroscar, deitar, sentar, sair e voltar, e muitos gestos mais que não temos a capacidade de registrar. Se em vez de uma caixa houver uma mala ou uma mochila, não importa: o gato toma posse e passa ali um tempo se divertindo nesse mínimo conforto que lembra um abraço. Por isso, quando a dona lhe entrega uma caixa, o gato a recebe como um presente, usufrui dela com avidez até cansar, até recostar-se dentro dela como um filhote deita na barriga da mãe, e olha para a dona com olhos doces, agradecido.
CAMAS
De manhã cedo, o gato dorme num cantinho ensolarado da casa. A dona ainda não se levantou. Os dois prolongam o sono até as oito, quem sabe até as dez, não importa. O gato espera, se estica, rola e dorme de novo. Na cama, a dona se espreguiça, geme e também rola o corpo com suavidade. O felino, que escuta os mínimos ruídos, ergue as orelhas e, num segundo, se põe de pé. Lembra que é o momento de se alongar e, depois de esticar os músculos, procura o quarto. Na frente da cama, senta e observa. A dona, em meio-sono, sorri e estende um braço. O gato se aproxima, sente o aroma da mão, do antebraço, roça o focinho na pele daquela que suspira entre lençóis e se senta, expectante, inquieto com o instante. Da cama, um olhar o convida, terno, uma mão afasta os lençóis, e todo um campo morno se estende diante dele. Os olhos de ágata se dilatam, os bigodes se retesam, as patas se preparam. E eis o salto num segundo, que coloca o gato sobre a cama, cauteloso como um felino selvagem que, por fim, entregue à carícia e ao calor do corpo da dona, se estende ao lado dela, como num cesto cheio de algodão e afeto, e fecha os olhos.
CARINHO
É inverno. Chove fininho. O mundo está cinza e denso, opaco ao brilho inquiridor dos olhos felinos. Não há nenhum movimento perceptível, a não ser o das folhas das árvores, que, a cada gota que recebem em sua textura, se movem suavemente. Numa hora dessas, não passa nenhum inseto, e os pássaros se recolhem. O gato, sem distração, mas também sem sono, observa apático o desenrolar demorado das horas, esticado num pequeno cesto. Perto dali, o dono lê um livro, sentado numa poltrona. Nenhum ruído dentro de casa, apenas o da chuva lá fora. O tempo, às vezes invisível e esquecido, vai se tornando, nesse dia, pesado e úmido. O dono fecha o livro, entediado. O pequeno felino se espreguiça e, aborrecido, suspira. Ergue o corpo como quem toma uma decisão, mas não sai do lugar. Pisca. O dono se aproxima, senta no chão e estende a mão. O gato avança, pisa fora do cesto e abaixa a cabeça. Então, acontece o toque. O felino se estira no chão, o dono também. E ambos ruminam a possibilidade de outra vida.
CARROS
Quando o dono vai colocar as últimas coisas dentro do carro, tem uma surpresa. O gato está lá, deitado no banco de trás, tendo no olhar uma tranqüilidade disfarçada sob uma tensão que só outro felino perceberia. O dono o chama, mas ele ignora. À menor tentativa de retirá-lo dali, o pequeno felino passeia: pelo chão, por baixo dos bancos e, sobretudo, num dos lugares de que ele mais gosta: lá atrás, na parte mais alta, de onde pode observar tudo. No entanto, quando o dono abre a porta do carro e busca o gato por toda a casa para agarrá-lo, metê-lo rápido no veículo e partir rumo ao veterinário, o gato, do limiar de seu posto na janela, dá um salto e desaparece, em meio às plantas do jardim, por várias horas...
CASA
Para um gato, o que pode haver de mais desnorteador é uma mudança de casa. Depois de dois ou três dias desconcertado, por fim ele vai se adaptando ao novo lugar, esquadrinhando todo o espaço e tomando posse de cada cantinho. A partir de então, os objetos passam a ter significado e importância. Há o prato de alumínio, a cama de algodão com sua pequena manta lilás, o sofá bege, onde, por vezes, ele acompanha o dono em sua leitura, a cadeira giratória em frente ao computador, com seu assento azul, a janela de onde vislumbra um mundo lá fora, a mesa de jantar, na qual é proibido de subir, o jardim-parque-de-diversões-banheiro, o banheiro do dono, no qual jamais entra, com medo da água... Tudo conforma seu lar, as coisas dispostas como se fossem, desde há muito tempo, destinadas a ele, que memoriza todos os caminhos por entre móveis e tem suas preferências, dependendo do seu estado de ânimo. Por exemplo, o local mais aconchegante é a poltrona escura, que o pequeno felino elege nos fins de tarde. Mas, às vezes, tem de dividi-la com o dono... Mas não se incomoda. Afinal, sua casa é grande, possui diversos cômodos, e ele consente em dividi-los com esse ser humano solitário, inquilino dali, da casa que, na realidade, pertence ao gato.
CESTOS
Os vidros das janelas estão gelados e úmidos. Faz doze graus. O silêncio seria espesso, não fosse a chuva reiterando seu soar ininterrupto. Dentro de casa, está escuro em plena tarde. Ninguém circula por ali, até que o dono surge, em passos suaves, para fazer café. Em meio a tanta chuva ameaçadora, o gato desapareceu. O dono espia os cantos da cozinha, chama e não obtém resposta. Então, decide averiguar. Numa pequena sala, no chão, ao lado do sofá, se encontra um cesto de palha cheio de panos coloridos. O dono se aproxima. Há vermelhos, laranjas, marrons e azuis-marinhos. De repente, os tecidos se mexem. Do fundo do cesto, surgem duas pequenas orelhas, de um veludo cinza-escuro, e logo após dois olhos de intenso azul. O dono sorri. As patas dianteiras do gato se esticam, preguiçosas. Ele olha para seu dono com ar intrigado, curioso, como se perguntasse o que está acontecendo. Mas não há nada, apenas a chuva e a solidão das horas arrastadas. O dono, então, afaga a cabeça do gatinho, que pisca devagar e, ignorando a gravidade do tempo, boceja.
CHEIRO
Ao despertar, pela manhã, o gato se depara com o cálido aroma do café vagando pela casa. A dona, portanto, já acordou. É a hora da vasta espreguiçada, o saborear antecipado da ração e o gozo com o perfume daquela que, como todos os dias, lhe provê a comida. Hoje, é o rico conteúdo de um sachê cheiroso o que o pequeno gato almoça. Mais tarde, os cheiros vão se misturando: pessoas que passam, alguém que aparece, o vazio da casa sem a dona, a fumaça de seu carro chegando, que invade, maciça, as narinas do felino atento, cheirinhos rápidos de insetos e de sapos, de tecidos e aparelhos, de sapatos, discos, livros e tapetes... E o banho de sua "mamãe" e seu buquê ensaboado, algum xampu gostoso, e o gato já exercita o focinho buscando a dádiva vindoura, o ócio denso e perfumado desse colo macio que, limpo e quente, vai aconchegá-lo no sofá.
CHUVA
Começa a chuva. Pingos grossos despencam sobre as telhas e as calha, vergam folhas e fazem salpicar a terra. O ruído da água domina o ar. Portas e janelas se fecham. Lá fora, um pequeno corpo ágil se esgueira por entre ramagens incomodamente úmidas e chega à entrada da casa, sacudindo as patas, avesso a qualquer vestígio, por mínimo que seja, de água. O dono, imerso em seu ócio, tarda em escutar os miados que reclamam e, finalmente, vai abrir a porta. O gato entra disparado, para, seca furiosamente o pêlo com a língua e vai procurar o que fazer. Mas os passarinhos estão inativos sob a chuva, as lagartixas estão ocultas, as mariposas só virão à noite, após o aguaceiro, e o dono frita bolinhos doces. Então, o gato acha uma janela aberta - a única onde não há respingos da chuva -, pousa no peitoril suas patas macias e fia sua paciência: deita sobre as patas traseiras, estende as dianteiras, e passa a contemplar a ação da natureza contra a qual, simplesmente, não há o que fazer. Olhando para a chuva, o gato tem saudade do tempo aberto, ensolarado, e sonha com a cesta que o dono deixa preparada para seu sono terno e enxuto.
COLEIRA
Colocar a coleira no gato: eis a insensatez da dona. Na primeira tentativa, o felino resvala para o lado, dissimulando a fuga, e vai deitar-se perto do sofá. Na segunda, a dona conversa, afável, disposta, em voz macia e doce, a convencê-lo a receber a corda no pescoço. É um fracasso. Ele fita os olhos daquela a quem entrega a confiança e o calor, mas bem de longe, como que vigiando olhos caninos. Num derradeiro intento, a dona acelera seus gestos, cerca sua presa, lança as mãos àquele corpo fugidio e ágil, a coleira na mão, a força humana sobre o pêlo e a cabeça felina. Então, estupefato e cético, o gato dispara. Na janela, protegido pelo limiar que o mundo oferece à sua fuga, mia. E em seus olhos faísca a ira dos traídos.
COLO
Certo gato, arisco e fugidio, não se deixa apanhar pelos moradores da casa. Ele circula no jardim anônimo e às vezes penetra no espaço humano e ordenado das salas sem fazer ruído. Vem sorrateiro, de mansinho, comer no prato de plástico que lhe foi destinado num canto do pátio, e enquanto mastiga os flocos crocantes e coloridos, vigia ao redor, temeroso de alguma surpresa. Depois, desaparece. Ninguém o vê sair ou entrar. Às vezes, alguém tenta atraí-lo para um afago ou um jogo, mas o pequeno felino, meio selvagem, foge. Ele adotou aquela casa, mas não seus donos. Nem nome tem. Certo dia, alguém está descansando numa rede, quando o gato aparece. Ele pára em frente, senta, olha para a pessoa deitada e, finalmente, emite um miado de súplica. Quem está na rede o observa, atônito. Então, de súbito, o gato salta. E, pela primeira vez, depois de uma meia-volta, se deita e se aninha naquele colo quentinho. A pessoa, surpreendida, leva a mão à cabeça do gato para um afago, roça o seu focinho e descobre: ele está com febre...
COMER
Há quatro espécies de refeições para os gatos. Uma é a cotidiana, fornecida zelosamente pelo dono, fabricada em lugares especiais especificamente para os pequenos animais domésticos gatunos, previsível, portanto - porque assídua -, ainda que, por vezes, sabores novos surjam sem aviso, como um presente. Outra é casual e fugaz, quando, além das duas porções diárias regulamentares, uma pela manhã e outra à noite, há o perfume do pernil no forno, a tábua com carne assada sobre a mesa, o peixe recheado fumegante e outras delícias que o pequeno felino, aflito, exige ao dono em desespero, não sem conflitos, mas uma que outra vez consegue seu bocado de prêmio. A terceira vem da mão do acaso e sua invisível tessitura: algo que voa ou corre, um pequeno vulto que se esgueira, um volume parco que atravessa a sala, veloz, ou se oculta atrás dos móveis, e que garras rápidas logo apanharão para o prazer da presa descoberta. Por último, nessa gula felina infinita, há as inefáveis refeições sonhadas, com gosto, em horas e horas de sono e devaneio, quando o gato vislumbra, por trás da cortina da realidade diária, o que poderia ter comido.
COZINHA
Depois de um jardim cheio de variedades de seres vegetais e os ocasionais animais, nada é mais estimulante para o gato do que a cozinha. É ali, naquela pequena usina que funciona pelo menos três vezes ao dia - nas casas em que isso ainda é uma tradição e um prazer -, que se erguem aromas de toda espécie. E lá vem o pequeno felino, de onde estiver, das correrias no quintal, do posto de observação do peitoril da janela da sala, da escada-torre onde se sente um verdadeiro atalaia, para fazer vibrar o focinho à procura da fonte daqueles manjares que se anunciam gasosamente... Mas os ruídos também o provocam, como os abrires da geladeira, do forno e de qualquer embalagem plástica, além da própria presença do dono nessa peça sagrada da casa. E lá vai ele, olfateando os inefáveis éteres que se desprendem, deliciosos, dessas atividades alimentícias, e chega aonde for preciso para vê-las de perto, inclusive a cadeira, até em cima da mesa, de onde, depois do grito estridente do dono, dispara, medroso, cozinha afora, antes que o dono o chame de volta, com pena, e lhe ofereça - à sua salivação sem fim - um pedacinho de peixe.
CRIANÇAS
Para quem não conhece os gatos, parece um mistério: quando, numa reunião de visitas, crianças entram na casa em que nunca haviam estado e, surpresas, se deparam com um gatinho com olhar confuso no meio da sala, ele de repente foge, a buscar refúgio em algum canto. Isso acontece em maior medida com os gatos adultos. Os filhotes, inocentes e brincalhões todas as horas em que não estão dormindo, acham as crianças divertidas, só que um tanto exageradas. Mas os felinos adultos, depois de tantas experiências, são meio traumatizados. Para uma criança, um gato pode ser um ótimo brinquedo: pode-se, por exemplo, agarrá-lo pelo rabo, arrastá-lo em meio aos móveis, apertá-lo até ele miar, miar como ele até ele não agüentar mais e sumir, colocá-lo de cabeça para baixo, jogá-lo para o alto para verificar se é mesmo verdade que um gato sempre cai com as patas para baixo, e inclusive testar as tais de suas "sete vidas", pondo-o para secar no microondas ou dando-lhe um banho na máquina de lavar roupas... De posse desse conhecimento acumulado, o gato adulto, quando pequenos humanos entram na sala, disparam. A não ser aquela, que tem nome de flor e, tímida e de voz baixa, pergunta à dona se pode acariciar o gatinho. A resposta é sim, e a menina, em gestos lentos e meigos, sente no pêlo acetinado do gato que o mundo, às vezes, pode se tornar delicado.
CURIOSIDADE
Nos gatos, a curiosidade adquire a força de uma obsessão. Um ruído abafado detrás de uma porta, um movimento mínimo dentro de uma caixa ou gaveta, o arfar quase inefável de um ser vivo qualquer que insiste em voar, a singularidade de um pequeno corpo veloz como o vento sob seus bigodes: tudo alucina o conhecimento de um felino. E se exaspera sua pressa em fustigar, num delírio ofegante, até os espaços mais inacessíveis de uma casa. É nessa hora que as coisas comuns e imóveis do ambiente perdem a graça e se transformam em obstáculos, não intransponíveis, é certo, meros acessórios para o jogo gatuno com as circunstâncias. Tudo se distrai de si, menos o olfato felino. Tudo é aleatório, menos esse alvo que seus olhos certeiros enquadram, mirando o núcleo da espera, numa urgente paciência. As coisas dançam. As pistas e os rastros invisíveis se deslocam. Tudo se oculta na velocidade de um instante. E o gato, situado em meio a essa floresta de estímulos, elabora sua estratégia de cercar um objeto. Qual delas? Não importa. Então, num gesto preparado e rápido, sutil e nervoso, ele ataca. E quando, finalmente, conhece a tessitura da lã ou a lisura de um grilo sob suas patas, suspira deliciado, como se tivesse alcançado, enfim, uma fatia de plenitude.
D
DENTES
Os pequenos mas afiadíssimos dentes do gato são implacáveis em sua eficiência para cortar, dilacerar, rasgar qualquer carne, do peixe ao boi, quando ele se delicia com a refeição cravada de lembranças ancestrais, sobretudo ao roer um osso junto à carne devorada. E ao capturar, em rapidez alucinante, um passarinho em vôo ou um rato correndo, os dentes do pequeno felino se lançam à sua mais cruel tarefa, a de, depois de "brincar" com os pobres e apavorados bichos, matá-los. No entanto, quando o dono se achega e provoca-o para a brincadeira, o gato aceita a "luta", ávido por diversão, e "crava" os dentes em suas mãos e seus braços... O dono finge ser ferido, atacado, mas, por fim, se trata, como os dois bem sabem, de uma carícia felina.
DIFICULDADES
A dois metros e meio de altura, numa linha lisa e vertical em que nada oferece uma proeminência, um inseto pára. Ali, nessa superfície sem adorno ou artifício, não há onde se agarrar. A não ser para o inseto que, como um molusco na pedra, mantém sua firme postura, ignorando a gravidade da lei. Na faixa horizontal que define o solo, o gato - plantado em suas pequenas patas de garras escondidas, os pulmões trabalhando nervosos, o focinho dilatado, cheirando, os olhos fixos numa direção diagonal - fixa a mirada com pupilas abertas naquele minúsculo ser indiferente e desafiador. Calcula, vacila. Seu corpo, às vezes, parece tremer. Os dois, inseto e gato, quase totalmente imóveis. E quando o pequeno felino, irritado, quase avança para cima, em salto desesperado, o inseto voa, em linha reta, mais para cima. É uma derrota. Então, o gato ergue as patas traseiras, abandona o seu posto, caminha lentamente - como um leão na savana -, de cabeça baixa, e se recolhe - não sem uma pitada amarga de indignação - aos pés da dona.
DORES
Como em muitos outros aspectos, o gato é superior ao ser humano em sua resistência à dor. Com suas potentes endomorfinas, não sente a menor aflição em arranhões, golpes e quedas. Mas tudo tem um limite para o pequeno corpo gatuno. Nas brincadeiras em que o dono lhe provoca, se defende da pressão das mãos com suas patas. Na luta corpo a corpo com esses braços humanos, expõe suas garras afiadas, fugindo ao ataque, contra-ataca, ameaçando com seus dentes. Mas no momento em que o dono exagera e, num impulso sádico, lhe aperta os flancos, o ato grita: "Ruééééum!!", para, em seguida - imediatamente refeito da dor --, fechar os olhos e desfrutar as carícias de seu dono arrependido e amoroso.
DÚVIDA
Em poucos segundos, a indecisão se instala: o objeto semovente, lúdico ou perigoso - não se sabe -, não pára. As ranhuras retinianas do felino se inquietam. Há algo a fazer, urgentemente, mas o quê?
Antes de qualquer gesto em falso, uma pisada equivocada ou um deslocamento de ar que denuncie o ataque, o rabo do gato se move, de um lado para outro, sem descanso. Nesse tempo comprimido, ele deve decidir, mas vacila e abana o rabo - não de contentamento, como os cachorros, mas de hesitação nervosa.
De repente... O salto! E a cola do gato volta ao normal.
E
ESCADAS
O mundo é vertical. Há sempre algo a se alcançar abaixo ou acima dos limites do corpo, estendendo o desejo até o infinito. O felino exercita essa busca numa escada. Empenha sua velocidade à toda, subindo como uma pluma, quase sem tocar a madeira dos degraus. Já para baixo, caminha com prudência, mirando as tábuas, até esperar o dono à porta, em aflição contida. Mas há momentos em que suspende o movimento e se detém, com a pompa de quem comanda, num degrau intermediário. Dali, dessa atalaia, vigia os passos do dono e de qualquer inseto desatento. Alguém o chama, ele faz que não ouve. O dono pede sua presença, ele o ignora e fixa sua mirada num ponto inacessível para nós. Então, a escada se torna a suntuosa esfera de onde a criatura real exerce seu poder de vigilante soberano. Nada o demove dali, nada distrai suas pupilas infladas e aguçadas, o olfato aceso, todo ele à escuta de alguma coisa que pode suceder no limiar do instante. Até que acontece: o ruído dos passos do dono, da lata sendo aberta, o aroma da ração ganhando tudo, e o gato, então, dispara escada abaixo rumo àquilo que, no prato horizontal, afagará sua fome.
ESCURO
É Lua nova. Sob a extensão negra da noite, o gato fareja o ar na iminência de uma presa. Tudo se oculta para os seres diurnos, tudo é furtivo aos olhares triviais do meio-dia, acostumados à opacidade da luz. Mas para as pupilas luminosas do felino, a sombra de uma sombra é suficiente para sua curiosa investidura. Ele extrai do breu uma minúscula faísca de um movimento alheio - e salta. Uma surpresa se revela sob a escuridão quase total. Para tudo o que vive, ali não há nada. Para o dono do gato, que espia pela janela a identificar ruídos, tudo é negro. Mas para o gato e seu olhar aceso, um centímetro de grilo já é um brilho alucinante no meio da noite lenta. E suas garras disparam para o desenlace certeiro, o pulo rumo à fome, o gesto cristalino em meio ao turvo mundo. Então, depois dessa conquista solitária e sem alarde, os olhos do gato exibem seu fulgor próprio, como luz interna, que faz dele um animal eterno.
ESPIRROS
É inverno. As tardes têm seu final mais cedo, as chuvas deixam tudo mais frio, há ventos rascantes e gélidos. O dono de seu primeiro gato, fascinado com a carga genética deste que é parente dos tigres e dos leões, escuta o primeiro espirro. No início, não compreende, ou não quer compreender. Depois, uma segunda vez. É quase decepcionante: o felino, tão selvagem, parece uma criança. Tem um pequeno tremor, e no momento exato de baixar a cabeça, num lance abrupto, faz "kshi", "quish" ou algo parecido. E pisca. O dono se assusta, chega perto do gato, investiga seus olhos. "Quish"... É um espirro de verdade! Encosta o dorso da mão no focinho dele: está morno. Pior: demasiado úmido! Então, a fera se transforma num gatinho, ganha um lugar entre folhas de jornais e mantas quentes, num cesto feito de tecido, protegido do vento e da chuva, dentro de casa e, para reforço, uma refeição quentinha. O gato come, se mete no cesto, se enrosca nas mantas e fica ali, quietinho, com os olhos meio cansados observando o dono que, aflito, puxa o cesto para perto de si e, enquanto lê um livro, espia o comportamento daquele ser resfriado. Então, o gato estica as patas da frente, deita a cabeça nelas e fecha os olhos, contente de estar assim, tão bem cuidado. E o dono feliz, prossegue em sua leitura, não sem um tênue receio, uma sutil preocupação. Afinal, é a primeira vez que vê seu gatinho gripado. "Quish"...
F
FIM DE TARDE
É densa a espera. O corpo, afeito ao sono o dia inteiro, tensiona os músculos. As pupilas finas agora se abrem, apreendendo o escuro que virá. As patas se esticam, todo o gato desperta finalmente para a aventura noturna que vai começar, cheia de grilos e mariposas, ruídos desconhecidos e aromas estranhos. Então, o felino pára na janela, o focinho se mexendo para captar as novidades, as orelhas em pé, os olhos acesos. Mas é a hora do crepúsculo: o tecido do céu vai se tingindo de rosa, as copas das árvores vão se apagando, escuras, até formar um volumoso manto, as primeiras estrelas lustram seu espectro prateado, a noite se impõe azul-marinha por todos os cantos, e o seu silêncio, que será pontuado por outros bichos, se apresenta. Então, o gato, antes de se lançar à noite incógnita, se deslumbra com o fim de tarde, pisca porque não compreende a beleza e suspira por estar ali, vivo.
FLORES
Passeando pela casa, com um desinteresse disfarçado, o gato encontra um vaso de flores. Elas são belíssimas. Mas ele passa ao largo, olha-as de soslaio e desaparece. Alguns segundos depois, ele volta, cheira a beleza das flores, perscruta sua cor inimitável, sua forma aveludada e frágil, e dissimula o impacto. Há delicadeza demais ali, mas elas não têm voz nem gestos, e quando alguém esboça uma carícia, elas não respondem. Então, o gato lança um último olhar de desdém ao vaso e se afasta. Gatos não murcham.
FOGÃO A LENHA
Na hora em que o entardecer se torna rosáceo, depois azul-marinho, e o mundo se dissipa numa espécie de névoa escura, catam-se o os gravetos, as achas de lenha, e acende-se o fogão. Começam os pequenos estalos, o crepitar do fogo, as ondas de calor ainda incipiente, mas que dominará todo o aposento. Mexe-se em panelas, em colheres de pau e em pratos. Levantam-se os primeiros aromas de comida saborosa. Tudo o mais é furtivo, como esses passos sussurrados, tênues, sobre o piso de tábuas, de patas almofadadas, com a paciência felina buscando o conforto. Então, o salto rápido. E já o gato se instala no dorso do fogão, junto à parede, perto do cálido aconchego, mas distante o suficiente para não tostar os bigodes. Quando o vapor da carne inunda o espaço, o focinho do gato trabalha, suas orelhas se esticam, os olhos buscam a origem do perfume embriagador. Mas ele já comeu, agora é a vez do dono. Então, ele se deixa estar ali, no colo sólido e quente do fogão, e fecha os olhos que pressentem a luz da vela, e sonha com a barriga sedosa da mãe-gata.
FRUSTRAÇÃO
De um só pulo, ele sobe na mesa, mais um, e salta sobre uma prateleira, um terceiro, e já está sobre o armário, numa velocidade estonteante. Antes que se perceba do que se trata, tudo já se modificou, o gato volta, a busca recomeça, e agora ele corre a 30 km por hora até o quarto, passa por cima da cama quase sem pisá-la, volta voando, e o bichinho escapa outra vez. Há alguns deles que têm a desfaçatez de se grudar no teto, coisa até hoje impossível para os felinos. Então, o gato fixa o olhar no objetivo, ensaia uma estratégia, tenta alguma técnica, e o bichinho lá, longínquo, ileso, desafiando o caçador. É o desespero do gato. Mia para a dona, que recusa auxílio. Mia para o ar, como se alguém pudesse levá-lo à presa. Mia para ninguém, para si mesmo, perplexo porque o mundo não lhe oferece possibilidades, frustra sua luta e deixa-o sem ação. Por fim, indignado, ele se joga no chão, estira as patas e suspira por não ser um super gato. E mia outra vez.
G
GALERIA
Na vitrine, uma pintura a óleo mostra um corpo feminino deitado, envolto em tecidos leves, beges como uma campina seca. Não há ninguém. Ou melhor: nenhum ser humano circula pela galeria, que está fechada nesse horário de segunda-feira de manhã. Mas ali, diante do quadro, não contemplando a pintura, mas todo o mínimo movimento que se desenha lá fora, está ele. De largos bigodes brancos, orelhas pontudas ao extremo, como radares à cata do menor passo em falso de um inseto, com o olfato e avista apurados para tudo que passa pela rua, quase impávido, está o gato cinza, dono do espaço sem humanos. Detenho-me em frente à vidraça, observando-o. Mas ele tem mais interesse num carro, num lixeiro, numa passante qualquer ou em algo inefável que não alcanço a distinguir na bruma dessa manhã de outono. Nada mais a dizer sobre o pequeno felino, a não ser que permanece como um pequeno brilho em minhas retinas tão fatigadas ao longo do meu passeio improdutivo pelas calçadas vazias.
GARRAS
O dono lê um livro no sofá. A seu lado, o gato dorme com uma respiração vagarosa e a boca entreaberta. O dono segura com suavidade uma das patas do gato, com sua textura macia e norma, e pressiona a "almofada", e as garras vão surgindo, movidas por um mecanismo propulsor. O dono retira sua mão, e as garras se escondem. Mais tarde, o gato acorda, se espreguiça e começa a observar o ambiente. Aparece um bichinho, o gato vai atrás dele, e na primeira patada caçadora, as garras já saltam em direção à presa. Garras finas, afiadas, prontas para ferir e trazer à boca toda caça distraída, poderosas também para fixar o peso do felino num tronco de árvore e empurrá-lo para cima. Garras mortíferas, que arrastam um rato ou um passarinho para lá e para cá, entontecendo-os, até matá-los. Mas quando, já bem desperto, encontra seu dono, e este começa a brincadeira, o gato excitado, exercita suas garras dando pequenas patadas nas mãos daquele ser humano que quer agarrá-lo. Mas, então, já são as garras da amizade.
GRILOS
Não há nada mais silencioso do que um grilo - quando está perto de um gato. Mas há algo imperdoável no grilo: ele salta. E um bicho colorido que passe pulando na área onde está um felino provoca um alvoroço que pode ter graves conseqüências, pelo menos para o dono do gato: vasos, abajures, bibelôs, possíveis taças, tudo está a um passo do desastre quando o felino se movimenta ensandecido e rápido, aos saltos, quase voando atrás daquele ser vivo que insiste, petulantemente, em escapar. Um roupeiro ou um piano, para o bichano, são excelentes plataformas - dali, ele estende a pata com as garras roçando o teto. Mas às vezes o grilo tem à disposição a janela aberta, a sacada, e o gato é obrigado a interromper sua caçada no limiar de uma queda ou na impossibilidade de avançar. Então, desconsolado, olha para o dono e mia, mia como se lhe tivessem roubado o prato cheio de peixe.
H
HABILIDADES
Há um banquinho branco no meio do quarto. Há uma cômoda alta. Sobre este móvel, há uma infinidade de pequenas coisas frágeis. Ao lado, há um cabideiro cheio de roupas, cachecóis, bolsinhas e até colares pendurados. Mas a uma distância razoável, embora de difícil acesso, há um pequeno grilo verde como uma folha. O pequeno felino, cinza como a colcha sobre a cama, afina a mirada esverdeada de seus olhos, os bigodes tensos, a respiração entrecortada. O tempo parece que se detém. Grilo e gato imóveis. Então, de repente, há o salto: num ápice de velocidade, a pata perfeita já está sobre o distraído inseto, e as coisas no cabideiro, os objetos na cômoda, tudo permanece onde estava, intacto, sem a menor noção do perigo. E no mesmo segundo, no mesmo instante inflado desse ataque-surpresa, o gato já está de volta ao chão, de novo imóvel e atento, mas com uma diferença: com um pequeno e verde grilo entre os dentes.
HABITAT
Um sofá é um sofá. Uma poltrona é uma poltrona. Um cesto baixo, redondo, recheado de lãs, é um cesto recheado de lãs. Nada no lento movimento do planeta parece mexer minimamente nessa ordem universal. Até que chega a faxineira. Em poucas horas, há como um surdo e parco terremoto. Tudo sai do lugar, tudo se move na estranha elipse de um dia inesperado. São pés, patas, cabos, alças, panos, pós e líquidos perigosos subvertendo o espaço sagrado onde o pequeno felino estava instalado tranquilo antes da hecatombe. Nesse intervalo, ele desaparece. Ninguém consegue saber onde se esconde o gato da casa - da sua casa - nesse dia nefasto. Até que, depois de um tempo interminável, tudo se aquieta, os passos estranhos somem, os materiais insólitos são guardados e há, agora, um aroma demasiado químico no ar. É quando o dono chega em casa e procura seu gatinho de sempre. Tarda o encontro caseiro, tão comum nos dias anteriores, agora difícil. Mas o dono não desiste e procura, chama, assovia, estala os dedos. Até que uma mancha cinza, do fundo escuro de um móvel qualquer, vai surgindo em meio ao fim de tarde, quando a casa ainda está na penumbra crescente anunciando a noite. É o gato que se mostra, arisco, desconfiado, ressabiado. Mas há uma mão morna que o recebe, um afago que o contém, um carinho e um sorriso que o acalmam. E o gato, exausto de tanto estresse, se deixa estirar lentamente no chão.
I
INDIFERENÇA
Quando a dona entra em casa, o gato está dormindo no cesto com o cobertor amarelo. Não abre os olhos. Ela deixa a bolsa sobre a mesa, chega perto do cesto e se agacha. Silêncio. Não há mais ninguém em casa. Ela olha ao redor, como se procurasse algo. Neste exato instante, quando ela perscruta o espaço da sala, o pequeno felino abre os olhos, mas ela, ao se virar para ele, vê apenas a posição de absoluto relaxamento, as patas esticadas, os bigodes imóveis... Apenas o rabo, de vez em quando, se move, como num sonho. A dona, então, carente de carinho, estende a mão, hesita, mas acaba seduzida por aquele pêlo de veludo morno e o acaricia como se ele fosse uma pétala. O gato nem pisca. E quando ela desiste do contato, se levanta e se prepara para sair da sala, o pequeno gato gira o corpo, as patas para cima, e estende novamente todo o corpo, não sem antes espiar a dona, de soslaio, feliz.
INTIMIDADE
Há o tempo da ação, quando os músculos dilatam a experiência contra a dor e a fome, e lançam o corpo num espaço permeado de seres e de coisas. São os momentos da caça, da corrida e dos saltos, da inquietude vibrante, d dispersão de energia.
E há o tempo do recolhimento. É quando o gato se concentra em si, alheio ao que é supérfluo e fútil, e se entrega a uma espécie de esquecimento lento, sem projeto, no conforto do silêncio.
O dono está ali. Ele trabalha calado e não se move. Há uma onda de calor e aroma que ele exala. Então, num último esforço antes da suspensão do dia em rotação, o pequeno felino salta. Sem miar, sem olhar nos olhos de quem o recebe indiferente, o gato se agacha em câmara lenta, se encolhe, se encaixa naquele outro corpo solitário e abraça, por fim, esse minuto como se fosse o último.
ISCA
É hora de tomar remédio. As pílulas, drágeas e comprimidos são solenemente ignorados pelo pequeno felino. Mais do que isso: de sua régia desconfiança, sequer se aproxima desses minúsculos objetos traiçoeiros. O dono faz a primeira tentativa: mistura o comprimido à ração. Mas o gato, cujo olfato supera em muito o do seu dono, descobre de longe a manobra e não come. Segunda tentativa: o dono pulveriza o medicamento esmagado junto aos cubinhos de carne de cordeiro com molho. Mas o bichano cheira, cheira e empreende uma marcha-a-ré sem volta. Terceira tentativa: o dono, já sem paciência, agarra com brutalidade o focinho do gato, força sua abertura, mantendo os dedos da mão em tensão, a boca do animal aberta sem possibilidade de defesa - e joga goela abaixo a pequena drágea. Sucesso! Ou quase. Porque em poucos segundos a drágea volta por onde entrou, intacta, e o gato mira seu dono com um misto de espanto e irritação. Como ocorre muitíssimas vezes, o pequeno felino sai vitorioso da contenda. O dono, então, com pena do bichinho e uma ponta de remorso, desiste, se aproxima, estende a mão. O gato vacila, olha para o chão disfarça. Mas acaba se entregando a essa gentileza, baixa a cabeça e aceita a carícia. E a próxima tentativa? Terá que ser deixada para amanhã.
J
JANELA
Quando o gato se acomoda no peitoril de uma janela, o mundo se emoldura para seu olhar curioso. Dali, daquele limiar que o imobiliza em sedução visual, ele observa o ritmo das coisas e das horas se entregando à lentidão de seus gestos felinos. À medida que a paisagem vai se transformando, seu corpo muda de posição. Seus olhos amarelos, que não perdem um detalhe, se abrem ao máximo, as pupilas diminutas pelo Sol. Seus bigodes vibram. Quando passa um cão, o pêlo sofre um leve eriçar, e as garras se expõem, prontas para avançar. Um vôo de azulada borboleta quase o desequilibra, tão sedento se põe pela aventura. Uma perereca o enfurece. Mas o tempo passa, e a paciência do gato, diante de tanta realidade, sofre a inconstância do seu ser errante, oblíquo, preso à contingência. Então, disposto a transgredir, na promessa de um vago desenlace, o gato mira, lá fora, a sedução do risco. E salta.
K
KAFKA
Nesse dia, o gato desperta incômodo. Tenta se mexer e não consegue. Pensa em esticar as patas e não pode. Põe-se a exercitar seu olfato e não identifica nada nas imediações. O ambiente onde se encontra não é reconhecível. Mas seus olhos mantêm o mesmo poder visual de antes. Então, se surpreende ao perceber que suas patas não são mais de gato, seu pêlo não é de gato, o cheiro de sua barriga está diferente. Em poucos segundos, aterrado, o pequeno felino descobre que, ao acordar, é um cachorro. Suas orelhas tremem de nervosismo. Tenta miar ao seu dono, mas o que sai de sua garganta é um grunhido rouco e grave, que ele não conhece. Começa a se debater no cesto recheado de panos de lã - mas o cesto, agora, é pequeno demais para seu corpo, que nesse momento é muito mais voluminoso. É quando percebe a aproximação do dono, sua cara de espanto, abrindo a boca desconcertado, perplexos os dois diante de uma monstruosa evidência. De repente, se ouvem ruídos, o barulho de um prato de metal arrastado no chão, a voz do dono, longínqua, o calor de uma mão que o afaga... E o gatinho desperta de seu sonho.
KUNG FU
O primeiro salto o eleva à altura da cadeira de encosto de tecido azul. O segundo o leva até a borda da mesa de um metro e vinte, no canto da sala, onde perigosamente se equilibra um vaso de flores. O terceiro pulo é um pequeno voo, no qual ele vence a distância que há entre a mesinha e a borda da cristaleira. Nesse instante, parece que toda a casa vibra com o tilintar de cristais da Bohemia e porcelanas da Bavária. Mas tudo permanece intacto. O quarto e último salto é uma aventura digna de um peixe-voador nos confins do Oceano Atlântico. E o gato, todo preto, aterrissa no tapete cor-de-vinho da sala, deslizando com ele uns centímetros pelo assoalho encerado. Todo esse itinerário pelo ar se compõe de golpes violentos com ambas as patas, as garras expostas e os dentes afiadíssimos prestes ao embate. No final, a vitória sobre o tapete, meio enrugado, dobrado e deslocado no piso. A pequena mariposa bate as asas desesperadamente, mas já é tarde: está dentro da boca felina, derrotada.
L
LAGARTIXAS
Ela compõe sua camuflagem de pequena escultura de barro e camafeu exótico. Contorce sua elegância sinuosa e se detém, por minutos sem fim, como estatueta real. Quando menos se espera - quando se tema paciência do musgo e do batráquio -, ela engole, de um golpe, a distraída vítima. São minutos intensos, de maceração rápida e forte, e a lagartixa relaxa num olvido lento. Então, se arma o drama. O gato à espreita, em paralela espera, de garras e nervos estirados, salta. Não há crueldade maior que essa patada no âmago do medo, naquele ser ínfimo e belo, desprevenido e doce. A solução é a morte. Depois, indiferente, o felino abandona aquela forma que era viva e, sob o olhar estarrecido da dona, estica o corpo, se entrega à calmaria do tapete e sonha.
LEITE
A brancura do leite distrai o gato do mundo. Esse líquido suave, aveludado, doma a aspereza de sua língua e o leva a sonhos brancos. O gosto do leite é como o do pêlo materno. Nele, o gato sabe a lembrança da mãe-gata e a calidez do instante lácteo. Às vezes, seus bigodes tocam o leite. E quando ele se limpa com a pata feliz, alimenta a memória com o tempo eterno da carícia.
LIVRARIA
O que incomoda um pouco são os seres humanos que circulam, lenta mas insistentemente, pelas apertadas passagens da livraria. Pior são as crianças ávidas que se desgrudam das mães para corre e tentar agarrar o pequeno felino. Mas há as compensações. Labirintos de estantes, com livros de todos os tamanhos, desafiando o corpo ágil do gato. As mesas, o balcão do caixa, alguma cadeira, um grosso tapete, uma pequena escada! Tudo é um convite ao exercício -- mas também ao sono. Quando menos espera, um leitor em busca de uma Marguerite Duras ou um Georges Simenon se depara com um gato negro, no aconchego de um cantinho qualquer da livraria, sonhando com o campo... Quando desperta, o pequeno felino sempre é bem tratado nessa que é sua casa e onde reina a segurança: ali os cães não entram. Mas nem tudo é perfeito: também não há insetos que caçar.
M
MATO
Ultrapassando o limiar que separa a claridade do Sol da penumbra das árvores, entrando numa área cheia de espécies vegetais e microbichos, o gato pára, como se fosse dar mais um passo e seu gesto se congelasse na indecisão. Há uma infinidade de folhas, de arbustos, caules, pedras, poças, flores. Insetos cruzam o ar e o caminho em profusão. Tudo no corpo do gato, dos bigodes à ponta do rabo, se tensiona, em ansiedade muscular. Seus olhos não sabem para onde olhar, tamanha a variedade de atrativos. De repente, sai correndo num balé alocado e se detém de novo, exasperado: uma borboleta dá sua toureada suave, outra de uma cor deslumbrante o atiça, mais uma, minúscula, o atrai ao salto sobre folhagens. Mariposas e besouros o entontecem. O gato responde a tudo com a responsabilidade de não perder um detalhe, um movimento, e chega ao limite do estresse felino, depois de vasculhar, saltar e agarrar dezenas de pequenas coisas. Agora, como se o mundo tivesse parado e nenhuma vida se movesse, o gato se deita sobre as patas, descansa o olhar e relaxa os músculos. Está cansado, mas feliz em meio à sua minifloresta.
MIADOS
É difícil saber o que quer o gato, num certo momento, quando ele emite um miado que pensamos desconhecer. Mas há alguns indubitáveis, recorrentes, ávidos por serem interpretados. O miado de fome é inconfundível. É possante, longo, impaciente como o corpo do gato rondando a possibilidade de comida. Há o miado da tensão da espera, da caça quase perdida, da indignação pela fuga da mariposa. De manhã cedo, quando o gato percebe que o dono acordou, mia descaradamente para poder entrar, investigar todos os cantos da casa, subir na cama, brincar com o dono e, finalmente, receber sua refeição. E há, ainda, aquela hora em que o felino está quieto, piscando vagarosamente, deitado sobre as patas de trás, e então, de repente, levanta, chega perto do dono e senta. Olha com olhos de pedido e carência, e solta um miado curto e baixo, sofrido, até que o dono estende a mão, e o gato se apega a ela como se precisasse, fecha os olhos e afasta toda tristeza.
MIMOS
Nada acontece. Não há projeto, a casa está quase vazia, lá fora a chuva e o vento açoitam os vidros. O silêncio é composto de ausência de passos, pequenos ruídos não identificados, sussurros do ar e, por fim, ínfimos suspiros. O gato dorme ou finge dormir. Porque, quando a dona se aproxima, querendo ser imperceptível em suas pantufas de lã sobre o assoalho, o pequeno felino, mesmo dormindo, entreabre os olhos. São dois gestos quase mortos. Nem o ar se move. Mas no momento em que a dona se encosta no cesto cheio de panos e lãs, o gato de repente se espreguiça, até tocar, com a ponta dos dedos totalmente esticados, os dedos da mão dessa mulher que, em meio ao silêncio cinzento, lhe traz um pouco de calor. O sono do gato, então, se transforma numa coreografia preguiçosa ao redor da mão da dona. É que, para os felinos, não há diferença entre o sonho e a realidade. E aqui, nessa tarde de inverno carregada de chuva e frio, o pequeno gato sonha com mimos e, quando entreabre os olhos, os sente em seu corpo. E não se sabe, ao final, se sonha com eles ou se são os mimos que sonham com o gato.
N
NOVELO
Com o novelo, o gato destece o tédio. É a hora do exercício sem fim, desenrolando a espera sem angústia, lutando com um ser macio e solícito: seu melhor inimigo. O novelo tem as propriedades de correr lentamente e de um arranhar sedoso, coisas que só um felino entende. Numa cesta, um grupo de novelos desarma o gato: são tantos gestos de um ataque gentil, que ele cansa do jogo e acaba abraçando o adversário.
O
OBEDECER
O dono olha para o gato. Em seu olhar, está a marca da ira e do enfado. Olha fixamente os olhos esverdeados do pequeno felino que, tenso e imóvel, espia o dono de cima da mesa. O dono dá um passo. O gato tigrado - cujo focinho quase treme, cheirando a iminência do perigo -, pisca, nervoso. As sobrancelhas do dono se espessam, as narinas se inflam, as mãos de crispam. Os bigodes do gato se retesam, as garras quase saltam sobre a madeira da mesa. Então, retumba um grito pela casa. Nada fica em seu lugar, nem a quietude corrente dos dias de sono e sonho do pequeno felino em seu cesto de lãs, nem o silêncio acolhedor das tardes de café e bolinhos, nem mesmo o volume baixo de um Chopin ressoando, lírico, pelas paredes. Nesse instante, tudo isso cede ao imprevisto violento de um grito. O gato salta da mesa para o chão e, veloz, se esconde debaixo de uma cadeira. O dono suspira. "Finalmente, este gato me obedeceu", pensou. "Finalmente, eu o enganei, escapando de um castigo", pensa o gato.
OBJETOS
Um jarro, bibelôs de porcelana rosados e brancos, garrafas coloridas vazias, livros, revistas, cinzeiros, CDs, velas, pequenos vasos... Uma infinidade de coisas dispersas sobre toda a superfície da casa confundiam e intrigavam o gato em sua ronda diária. Sobre as mesas, sobre o aparador, sobre os armários, tudo oferecia dificuldades, obstáculos à liberdade de ir e vir. "Para que tudo isso?", parecia se perguntar o pequeno felino, sem ter consciência de que nem mesmo a dona sabia a resposta. Paciente, delicado e observador, o gato passeava pela casa apenas roçando cada minúsculo pedaço de coisa - decorativa ou inútil - que a dona deixava pelo espaço que, afinal, era território felino. Um dia, o gato topa com um bibelô, que cai de uma mesinha e se espatifa no chão. Então, escuta a raiva da dona em brados indignados. Uma vez mais, o bichano se oculta detrás de um pé de poltrona, protegendo-se da injustiça humana. "São infelizes", pensa o gatinho.
OUVIDOS
Encolhido num cantinho da poltrona, pegado ao encosto, o gato amarelo dorme. Perto dele, a dona lê um livro e, de quando em quando, observa seu pequeno animal de estimação, que parece imerso em profundidades oníricas. No entanto, sua orelha esquerda se mexe. Ela se move sozinha, independente, como uma antena. A dona estala os dedos. Então, é a orelha direita do gato que treme. Como pequenos radares, os ouvidos felinos captam qualquer mínimo ruído no ambiente, sobretudo os produzidos intencionalmente por sua dona. Ele dorme, mas está atento. Sonha, talvez, mas com os ouvidos postos no ambiente. Na outra poltrona, a leitura continua. Mas alguns minutos mais tarde, a dona o chama pelo nome, bem baixinho. Os ouvidos do gato se retesam, a postos. Ela o chama pela segunda vez, carinhosamente. E o pequeno felino, de dentro de seu sonho longínquo, entreabre os olhos, as orelhas voltadas para o lugar da dona. E em seu semissonho, suspira.
P
PARQUES
Quando caminho pelo parque, entre jardins organizados com grama e flores, árvores que têm décadas e alamedas cuidadas por zelosos funcionários, entrevejo, entre uma sombra e outra, entre folhas dispersas pelo outono e bancos pintados de verde, a presença furtiva de diversos felinos. Não são de ninguém. Ou melhor: não compactuam com nenhum ser humano que insiste em se autoproclamar "dono" dessas pequenas criaturas inclassificáveis. Vagueiam no parque à procura de comida, atividade, caça. Ainda bem, para eles, que esta cidade está infestada de pombas. Num único salto insano e certeiro, abatem a presa em pleno ar, e ao cair com ela no chão já são donos de um almoço bem-sucedido. São mais de vinte gatos convivendo em relativa paz. São quase ariscos, a não ser quando alguém, tão solitário e disperso quanto eles, se aproxima sem uma gota de ambição, sem maior interesse que o de estabelecer, recíproca e afetuosamente, um contato sem futuro nem promessa, apenas um toque doce e cálido em meio à aspereza do vento e dos pedriscos do passeio. São mais de vinte gatos. Mas sempre há um que me olha com desconfiança, depois com interesse, até que sua curiosidade o impele à minha mão, e aí, nesse instante sem palavras, obtenho, talvez, nesse toque entre palma e focinho, aquele diálogo que, em parques e entre humanos, não costuma acontecer.
PERDÃO
Quando aquela torta de atum sobre a mesa é demasiado tentadora e, como quase tudo, está ao seu alcance, o gato saboreia, num pulo, a refeição que não foi feita para ele. Então, dá de cara com seu dono. Escuta a repreensão raivosa e chega a sentir no dorso um tapa furioso roçando-o na fuga. Segundos depois, o gato volta para perto do dono, olhos tristes e sutis, e oferece suas desculpas. O dono resiste. Ameaça, ensina uma moral ao felino, mas acaba dando o seu perdão. Quando é a vez de o dono lançar uma farpa ferina, descarregando no animal a sua fúria humana, é o gato, mais uma vez, que se aproxima, roça o corpo nas pernas do dono, alheio às razões da violência e à violência da razão, e compõe ali uma teia quase imperceptível de afeto. O dono não entende - não quer entender - e se afasta. O gato volta a procurá-lo, entregando seu corpo como uma carícia, aceitando um perdão que não lhe foi dado, perdoando aquele que resiste a ser felino, até que os dois voltem a ser, no que resta de tempo naquele dia, duas carências animais.
POLTRONAS
Terça-feira, quarta-feira, quinta, a poltrona bege permanece abandonada. A dona está estudando à mesa, a família usa as cadeiras e o sofá, e a poltrona vermelha não recebe o calor de ninguém. Sexta-feira: chegam as visitas à casa, e é claro que uma delas escolha a poltrona bege. Então, o gato, que andava sumido, aparece, se posta diante do intruso, sentado, e lança ao ar seu miado de contrariedade. As pessoas riem, a dona faz algum comentário brincalhão, e o gato permanece no mesmo lugar: e mia de novo. Como ninguém lhe dá bola, ele salta. E antes que a visita se recupere do pequeno susto, o felino já está se acomodando, num empurra-empurra, entre aquele corpo humano estranho e um dos braços da poltrona. A dona sorri, vai até lá, agarra suavemente o gato - que mia, reclamando -, e coloca-o no tapete, sob os olhares condescendentes das visitas. Enquanto estão rindo, ele lambe as patas (é um disfarce), limpa os bigodes e a boca, dissimulado. Quando todos estão distraídos de novo, ele pula na poltrona vermelha, também ao lado de um convidado magro, e se instala ali. A dona olha para ele, se enternece com o jeitinho gatuno de se acomodar e decide, com a aprovação da visita, deixá-lo ali. Mesmo porque seria difícil arrancar o gato: o olhar dele mostra, para que ninguém se engane, que sua tomada de posse foi definitiva.
PRAÇAS
Na desigualdade, que é patrimônio das comunidades humanas, também moram felinos. Além dos que foram adotados, amorosamente ou não, por seres humanos e ganharam uma casa ou, pelo menos, um canto sob um teto onde passar horas de sono, uma tigela de água e potes de ração (no melhor dos casos) ou restos de uma comida qualquer (no pior), existem os felinos abandonados, sem teto, sem donos. O preço da extrema liberdade é a necessidade de buscar constantemente a sobrevivência. Bem... Entre uma hora e outra de sono.
Esses gatos são o inferno dos pássaros e habitam as praças. São o inimigo número 1 das pedantes pombas. E correm um risco permanente com a presença dos violentos cães, animais, como se sabe, de extrema insensibilidade e brutalidade quando encontram gatos.
Mas nem tudo é exclusão social nas praças. Há os humanos que passam sem perturbá-los. Há até os que se aproximam, sorrateiros, e lançam um pedaço do sanduíche que estão mastigando. E há aqueles que, por vezes, esperados com ansiedade pelos gatos, atravessam a grama da praça e, pacientemente, convencem um pequeno felino de rua a aceitar, sem ter que dar nada em troca, o afago de uma mão carente.
Q
QUEDA
Um gato não cai jamais. O dono se engana quando, por vezes, acredita vê-lo numa queda prosaica, simplória, como se fosse um objeto qualquer - ou mesmo um cão. O que se assemelha a essa antipática ação da gravidade, na verdade, se trata de maneiras felinas de driblar as circunstâncias. Há três delas: uma, quando ele, semidormindo, com um piscar intermitente e vago, numa sesta estendida pela tarde, vai deixando as patas descerem lentamente do sofá. Outra, quando, depois de ter se aventurado árvore acima num frenesi de saltos a garras estiradas, parece descer despencando, sem medir perigos, mas chega ao chão intacto. E uma terceira: o gato se entrega às carícias da dona, na beirada do assento da poltrona, inclina a cabeça para baixo, relaxa o dorso e o pescoço num devaneio doce e, saboreando o instante irrepetível, se deixa deslizar, contente, até o tapete.
QUEIJO
Sobre a mesa posta para o café da manhã, há um queijo. A uns cinco metros dali, deitado no pelego de ovelha, o pequeno felino abre os olhos e fareja no ar, com seu focinho úmido e frio, um aroma atraente. O dono se move pela cozinha-sala de jantar, sossegado, terminando de pássaro café. O gato se espreguiça e se levanta, olhando ao redor. O dono observa a cafeteira que produz um barulhinho de líquido em ebulição. O gato caminha dois passos, lento, com o focinho em alerta. O dono apaga o fogo. As pequenas patas do animal, mansas e furtivas, reduzem a distância entre ele a mesa a dois metros. Os passos humanos ressoam no assoalho de madeira. A mesa, agora, está apenas a um metro daquele que, como em posição de caçar, estica os bigodes à procura do perfume quase comestível. O dono esquece o açúcar e vai buscá-lo no armário da cozinha. Em meio segundo, num salto veloz, o gatinho já se encontra sobre uma das cadeiras da mesa de jantar. O dono fecha a porta do armário e se vira, começando a caminhar em direção ao seu café da manhã disposto sobre a mesa. O pequeno bichano, com as garras presas à borda da mesa, estica as orelhas ao escutar o dono e olha para ele. Então, o grito, o salto de volta ao chão, a corrida, num jato até os pés da poltrona. De mansinho, aos poucos, o pequeno felino vai levantando a cabeça, as orelhas baixas, e mira o dono com olhos de súplica. Como recompensa, recebe uma carícia. O gato fecha os olhos, aliviado. O dono senta à mesa e começa a tomar seu café. Cansado do pequeno estresse, o gatinho fecha os olhos e dorme, sonhando com queijos.
R
RUÍDO
O ruído de automóveis é constante. Há horas, durante toda a tarde, os carros vão e vêm pela rua levando e trazendo humanos.
O gato, recostado ao pé da mesa de centro, estirado sobre o tapete, finge dormir. Tem os olhos fechados, mas os entreabre, por microssegundos, ao detectar a mínima presença de algo vivo e vacilante como um inseto.
De súbito, abre bem os olhos, ergue as orelhas, faz tremer os bigodes. Há um acontecimento novo neste instante. De muitos ruídos, ele destaca um, antenado ao seu significado, e se levanta, espreguiçando-se rapidamente.
Imediatamente, o pequeno felino caminha até a porta de entrada da casa e permanece ali, atento como em uma caçada.
Segundos depois, um carro pára na garagem. Como o gato já sabia, é a dona que está chegando.
S
SELVAGEM
Quando olhamos nos olhos de um gato, não sabemos exatamente se estamos diante de um animal doméstico ou um felino que, de alguma forma, permanece selvagem.
Se ele nos devolve o olhar, vemos nessas duas retinas ranhuras por onde caem "moedas de ouro", como escreveu Pablo Neruda, a curiosidade indiferente com que esse "animal de estimação" de verdade nos estima, mas a seu modo, fixando em nós tudo aquilo que não compreende em nossos gestos humanos.
Se, ao contrário, ele não nos devolve o olhar, podemos sentir, a certa distância que nos separa - seres humanos e felinos -, a vaga exatidão com que ele fixa, em seu olhar de exímio caçador, algo para além de nosso horizonte, ao longe, onde ele vê, mais que a possibilidade de uma presa, o infinito de ser felino.
SONHO
Depois de muito tempo de sono, entregue à mansidão do tapete, o gato está imóvel, esquecido do mundo. Então, uma pata tem um pequeno espasmo. A ponta de uma orelha acena, rápida. Um bigode vibra. Uma pálpebra treme. A boca se entreabre mostrando a pontinha rósea da língua. Há um miado mínimo, indeciso, perdido num devaneio indevassável. O gato sonha com algo que jamais, em tempo algum, compreenderemos. Encontra alguma coisa tão preciosa quanto uma caça especial, uma delícia que vai saborear no sonho sem fome, sem cães e sem humanos - e dá um longo suspiro.
T
TAPAS
Todos os dias, o gato recebe do dono o presente de brincar, durante uns bons quinze minutos, quando aquele humano adulto chega a se estender no tapete, rolar como um bicho, provocar o felino até a exaustão com correrias e tapas - que o pequeno bichano assimila com prazer, como carícias febris -, e tudo é rapidez e reflexos, e um divertimento só.
Mas, um dia, por alguma coisa que faz e não entende, sem nenhum indício de brincadeira, o gato recebe um violento tapa. A voz alta do dono o agride. Sua expressão atroz, a marca da mão ardendo no dorso felino, os olhos ferozes de quem sempre lhe dá comida, água e afeto fazem o gato entristecer até o limite e se recolher a um canto sedoso do sofá, sem olhar sequer uma vez para trás. O corpo do gato dói - ele que possui endomorfinas contra as dores físicas -, seus olhos estão secos (porque não sabe chorar), suas garras estão retraídas (porque não sabe retribuir a agressão do dono) e sua voz se apaga dentro da garganta apertada. Não quer mais brincar, não quer, de dentro de seu quieto sofrimento, nenhum diálogo. A noite cai. O silêncio se avoluma. E os olhos do gato se fecham, como gotas de chuva caindo num jardim abandonado, e ele sonha com a língua materna enternecendo seu pêlo.
TELHADOS
Telhado: poço de tentativas; campo de jogos, experiências e riscos; lugar de afetos violentos; área de patinação felina; quase-esconderijo; minifesta em horários indeterminados; pátio de observação, reflexão e eventuais conflitos; horizonte de onde o gato vê o universo; intervalo no qual um felino encontra outro e, por vezes, desenham uma carícia.
U
UBIQUIDADE
De manhã cedo, quando a cozinha se movimenta com os aromas do café e do pão tostado, um bicho de pelúcia se encontra inerte sobre uma cadeira. É branco tem uma perfeição que parece artificial. Mas de repente, com um ruído de xícara, o bicho desperta, abrindo os olhos. Durante a manhã, até o meio-dia, o pequeno felino se enrosca em si mesmo, a cola pegada ao corpo, no tapete alto e fofo da sala. Agora, a função da casa se transfere da cozinha para a sala de jantar, onde alguns humanos se reúnem para comer. De novo, o aroma de café chega até o gato, que se instala - toda a casa é seu território - na poltrona bege situada perto da janela. Então, vem o sossego da tarde, sem nenhum corte, e as horas passam como se nada mais fosse acontecer por muito tempo. Mas quando esta tarde começa a minguar e tudo vai escurecendo, o gato, de repente, salta. Foi o barulho arquiconhecido de um pacote de ração para gatos sabor cordeiro, e em segundos os bigodes do pequeno felino já estão ora roçando as pernas e as mãos carinhosas da dona, ora olfateando o prato contendo as coloridas e saborosas borboletinhas comestíveis. Depois de tanta atividade e prazer, o bichano precisa descansar. Então, é a vez do sofá vermelho quase vinho, aquele que a dona adora, mas que, quase sempre, está ocupado por Cocteau, que é dono de tudo, numa casa onde tudo lhe pertence e onde ele, por direito e por costume, dorme em todos os lugares.
ÚNICO
Quando a porta da casa se abre, duas pequenas orelhas se retesam diante do improvável. De lá, de seu canto enovelado em panos, o pequeno felino tigrado adverte o perigo. É o dono quem entra com ares de contentamento. Traz uma caixinha de papelão forrada com papel de jornal. Àquela distância - uns dez metros -, o gato afina o olfato, seus bigodes quase tremem, seu pêlo, imperceptivelmente, ganha volume. Cada passo de seu dono torna o ambiente mais incômodo. Antes de perceber qualquer outra coisa, o que o felino sente é a força invasora de um novo cheiro, que entra em ondas suaves, mas incisivas. De olhos bem abertos, mirada fixa e todo o corpo teso, o gato tigrado observa. Quando seu dono entra na peça e deposita a caixa de papelão a uns dois metros, ele ergue o corpo, e suas garras já se dispõem a saltar. Então, se ouve o que já se esperava: um miado curto, forte, agudo, ao mesmo tempo em que um minúsculo conjunto de pêlo branco, focinho úmido e olhinhos azuis surge na caixa e tem a impetuosidade - misturada a uma ingênua alegria - de aproximar-se do cesto de panos onde o gato da casa está instalado. Não demora nem uns segundos: o felino adulto salta do cesto e, numa rapidez vertiginosa, dá uma pequena, mas contundente patada - as garras abertas - naquele intruso infantil em seu território. O dono, visivelmente aborrecido, grunhe qualquer coisa, deposita o filhote branco na caixa e o leva embora. E o gato tigrado, em seu orgulho dominante, pisca e volta a acomodar-se em seu cesto - posto de observação de seu território. Quando, finalmente, escuta a porta da casa sendo fechada, suspira e volta a dormir.
V
VELAS
É noite. O pequeno felino começa a se agitar da iminência da caçada noturna a mosquitos, mariposas e lagartixas que chegarão aos poucos, inadvertidamente, não se sabe de onde. Enquanto isso, passeia despretensioso pela casa iluminada.
Mas, de repente, percebe uma movimentação, e tudo se torna mais escuro. O dono anda para cá e para lá, tropeçando em móveis e objetos, até poder criar pequenos pontos de luz.
Para o gato, a falta de energia elétrica só tem como conseqüência uma maior abertura de suas pupilas, com as quais continua enxergando perfeitamente os pequenos seres vivos invisíveis ao ser humano.
Mas, então, algo lhe chama a atenção. São esses pequenos seres tremulantes e dourados, que dançam e transmitem calor. O gato se aproxima. Sua curiosidade, como sempre, é insaciável.
Ao chegar perto com seu focinho e mexer as narinas, dá um passo atrás, intrigado. Há algo ali que lhe aquece o nariz e pode queimar.
Depois, ergue lentamente uma pata e tenta agarrar aquela coisa quente e móvel. O pequeno fogo o repele e o assusta. O gato não sabe o que é uma vela. E, desconfiado até o limite, afasta-se desse pequeno bicho estranho e amarelo que nuca se deixa capturar.
VETERINÁRIO
Os gestos do gato são morosos, ressabiados. Seus passos mal tocam o piso, não fazem nenhum ruído, têm dificuldade em submeter-se ao que se avizinha, implacável, atrás da porta branca. Os odores são insuportáveis. Em todo lugar, faz um frio clínico. Esse homem cheirando a sabonete neutro e seu sorriso são suspeitos, talvez hipócritas. Quando duas mãos familiares, maternais, agarram o gato e o colocam sobre uma mesa de pedra, seu olhar busca os olhos da dona com um misto de desconcerto e desespero. Quando mãos estranhas o tocam, treme. E no final, depois da introdução do termômetro e da picada aguda da injeção, ele produz um miado terrível, presságio da pior tortura e do mais profundo sofrimento, que acabam não acontecendo, pois em minutos o gato está de volta ao colo da dona, magoado, com a sensação de ter sido traído, mas já ávido pela refeição de recompensa.
VISITAS
É noite. O gato já dormiu várias horas durante o dia e agora está aceso para a caça e para os jogos. O dono está atarefado, andando de um lado para outro, movendo coisas, fazendo ruídos, sem prestar a menor atenção ao gato. De repente, começam a chegar os seres estranhos. Passos, vozes e risos, cheiros diversos, a ocupação de lugares estratégicos - como o sofá, a poltrona, a cadeira de balanço. Encurralado, o gato se esconde atrás de um pé de mesa ou de uma estante, espreitando os intrusos. Alguns deles têm a ousadia de querer agarrá-lo - chegam até a correr! -, mas nada numa casa - exceto, às vezes, um pássaro - é mais rápido que um felino. Os invasores, resignados, se abandonam a suas posições sentadas. Tudo volta à calma. O ruído diminui. Os músculos e as respirações relaxam. Nesse instante, o gato percebe alguém calado, de gestos lentos, voz melodiosa e aroma atraente. Alguém que tem os olhos brilhantes e a paciência do desejo adiado, como se tivesse todo o tempo do mundo para receber. Então, o gato sai do esconderijo, passos curtos, sem alarde, e se aproxima, olha nos olhos desse alguém para trocar uma confiança, roça suas pernas para se apresentar e salta. E o colo onde se aninha já é uma promessa de amizade.
VOO
O mundo começa a se mover. Os músculos felinos se retesam num segundo. Todas as coisas se oferecem num delírio de formas. O gato se surpreende num frenesi de gestos, saltos e golpes para todos os lados. Agarra uma bolinha, ela escapa. Dá um tapa numa rolha, ela rola. Pula sobre uma folha caída, ela se desloca com o vento. Atiça uma linha perdida que vem da toalha, corre pela casa na rapidez de uma lebre, investiga em tempo recorde os cantos, as esquinas e os lugares obscuros. Tudo treme na casa com o frêmito felino. Então, de súbito, ele pára, fixa o olhar em algum alvo imponderável e, antes que haja tempo para sequer perceber sua parábola, ele já está no ar. O mundo trava. Há um segundo eterno nesse instante. Suas garras saltam. E o gato, em pleno ar, abole o tédio desse insípido minuto.
VOZES
Há uma entonação de voz que chega da despensa, junto a um ruído de embalagem sendo aberta, passos que se aproximam, e flocos crocantes e apetitosos caindo na cumbuquinha plástica, voz a que o gato atenta, inquieto, salivando. Há outra voz que, em súplica sutil, exige afago e afeto, e o gato vai de mansinho, se encosta no corpo de quem chama, baixa a cabeça, sensível à carência de quem cuida dele, e nessa troca de carinhos chega a fechar os olhos. E há aquela voz soando alta, ríspida, em tom de ordem, de censura e de desprezo, que fere os agudos ouvidos do gato, e ele se afasta, se encolhe e chora por dentro.
W
WAFFLES
Chove. São quatro e meia da tarde. O aroma do café recém-preparado - intenso, saboroso, acolhedor - percorre o ambiente. Entre o ruído da chuva e o perfume do café, o gato se move, inquieto, pela casa com orelhas e bigodes atentos. Para e move quase imperceptivelmente as narinas. Não se escutam movimentos da dona, que parece ter saído, ido ao banheiro ou quem sabe apenas olhe a água caindo lá fora. Talvez ela esteja arrumando algo na parte coberta do pátio... O gato avança, transpõe o limiar da cozinha. Com o cheiro forte do café, vem o perfume inigualável de algo desconhecido: uma mescla de baunilha e ares de campo, meio doce e com um toque, talvez, de leite, levemente frutado, nada picante, quase com a doce ternura do chocolate. Num pulo, o gato está sobre a mesa, e debaixo de sua língua pequenina, numa esfera vermelha que lembra o pôr-do-sol, se dilui, passiva, uma geléia de amoras frescas sobre camadas de algo feito de trigo, que a dona chama - quando está presente - com o nome estrangeiro de waffles.
X
XAROPE
É espantoso - quase inconcebível, até -, mas os gatos também caem doentes por uma pequena gripe ou um aborrecimento passageiro, mas sabe-se lá, e o dono passa a andar com semblante preocupado e tenso. Mais indolente do que nunca - mas doente -, o pequeno felino diminui seus movimentos, dorme mais, quase não troca de assentos durante todo o dia, e chega até a ignorar ativos grilos noturnos. O cúmulo: quase desdenha, em seu ritmo enfraquecido, a porção de peixe. É hora da decisão difícil, e o dono, empertigado e lúcido, decide. Vai administrar o xarope. Ou pensa que vai, planeja o ato, mas o gato de súbito, à aproximação da colher com aquele líquido horroroso, assume de repente sua condição altiva de velocidade e dispara. O dono, depois de tentativas, o agarra, força a abertura de sua boca, chega perto com a colher... E um miado, um balanço inapreensível, uma fuga violenta põem tudo a perder. O dono, estupefato, pára. O gato olha-o ressabiado. Então, feitas as pazes, cada um vai para o seu lado, o dono, ainda preocupado, o gato, debilitado, mas ágil, aborrecido, mas alerta, e disposto a curar-se da melhor maneira possível para um gato: no cestinho em meio às lãs...
XERETAR
Geralmente espichado em seu sossego e sonolento a maior parte do dia, em certas ocasiões, entretanto, o gato chega a um grau de impaciência que o deixa hiper ativo. Que ocasiões são essas? Ah, a dona... Ela resolve mexer na bolsa, por exemplo, à procura daquele cartão que lhe foi entregue na noite anterior... E patas pequenas, mas com garras afiadas, já se intrometem na pesquisa. Ela se põe a conversar ao telefone, quando ele morde o fio e se atira ao colo dela sem explicação. Ela decide, por fim, sair e vai escolher a melhor roupa para essa noite. E enquanto desliza os cabides, o gato salta e dança por entre as lãs, as sedas e as linhas de algodão, de olho naquilo que não vê, circulando em volta do nada, apenas o perfume daquela que é a dona, na verdade, de seu interesse e cuidado.
Y
YAKISOBA
Com tantos afazeres, a dona não tem tempo de cozinhar e resolve pedir algo para comer por telefone. Decide-se pela comida japonesa, saborosa e perfumada. Enquanto espera o pedido, seu gato manchado, tricolor, dorme na poltrona mais próxima. A campainha toca. A dona se move, buscando a carteira. O gato abre os olhos, perscrutando os ruídos, cheirando o que se avizinha. A porta se abre, sons humanos se diluem no ar, a porta se fecha. A dona se senta à mesa e põem ali uma travessa de algo fumegante e intensamente aromático. Começa a comer com uma voracidade felina. Mas o gato manchado, que se aproxima da mesa, mostra apenas uma leve curiosidade, apesar de ainda não ter comido. A dona devora o yakisoba com verduras e frango, bem temperado, com molho de soja e toques de sabores desconhecidos para ela. A curiosidade do gato aumenta, ele sobe em uma das cadeiras, sob o olhar vigilante da dona, que acaba de comer e se levanta, levando no prato um pouco de yakisoba que não comeu. O gato salta ao chão e a segue. Em seu pratinho de metal, a dona coloca aquela iguaria japonesa, com massa oriental, verduras, frango e aqueles temperos exóticos. O pequeno felino tricolor aproxima o focinho, cheira, cheira, cheira aqueles aromas tão diferentes da ração diária, ousa até tocar com a ponta da língua aquela comida tão humana... E finalmente a abandona, deixando a dona desapontada. Então, ele olha para ela com ar de súplica: exige manter sua rotina alimentar, seu gosto próprio, sua segurança. E quando a dona abre o pacote de ração sabor cordeiro e coloca os flocos crocantes e coloridos em outro pratinho, o gato se lança a mastigar, com tanta intensidade e prazer, que, ao olhar de novo para a dona, já tem a expressão aliviada de alguém que foi salvo.
Z
ZANGA
De repente, em meio a tanto sol e ao ar de primavera, doce e perfumado, algo tão rápido quanto o vento e leve como uma pétala invade a sala. O gato levanta as orelhas. O dono sente que algo ocorreu e vai à sala, com um pano de prato nas mãos. De seu tapete de pêlo de ovelha, o pequeno felino observa, interessado naquilo que irrompeu no espaço. O dono percebe o perigo. Junto à vidraça, perto das folhagens que crescem, viçosas, naquela estação, um minúsculo ser se debate. O dono chega mais perto, com passos leves. O gato se levanta, intrigado. Chega a produzir um som forte esse ínfimo bicho, no ar, como se fosse um helicóptero em miniatura, feito de folhas. É um beija-flor. Antes de o gato saltar, quase num voo, em direção ao passarinho, o dono já lança o pano de prato e agarra aquela coisa viva, quase uma pluma, que pode ser esmagada em um segundo. Com cuidado, envolva o beija-flor no pano e se dirige à janela aberta. O gato, atrás dele, mia e faz menção de saltar. O dono o repreende, isso não se faz com um pobre bichinho. O felino volta a miar mais forte, totalmente indignado. Sob seu olhar brabo e inconformado, o dono desdobra o pano e solta o beija-flor, que voa tão rápido quanto entrou. O dono, então, mira seu gato com olhos de censura. E o gato, mais irritado do que nunca, volta ao seu pêlo de ovelha, se deita, e passados uns instantes já parece meio conformado, quando solta, finalmente, um misto de desabafo e reclamação: "Miaaauuuuuu!". E seus olhos zangados encaram os olhos do dono, que sorri.