Nenhum silêncio

Renato Tapado



Para Lucas Steiner

Sílvio Barros

Renata Maciel



"a vida então sem visitantes formulação atual nenhum

visitante desta vez nenhuma história exceto a minha

nenhum silêncio exceto o silêncio que devo quebrar

quando não puder mais suportá-lo é com isso que tenho que durar."

(Samuel Beckett. Como é. São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 18.

Tradução de Ana Helena Souza.)


Era inverno. A areia da praia estava úmida e fria, e quase não havia pegadas por ali. As poucas que restavam tardavam muito a desaparecer, a não ser quando a maré subia, avolumada, e as apagava. Pelas manhãs bem cedo, uma névoa cobria toda a imensa orla, e não se podia enxergar o mar. Não havia ninguém, não se via quase nada pela praia, era mesmo difícil caminhar nessa área. Quando saía o Sol, lá pelas dez horas, a neblina começava a se dissipar lentamente. Aos poucos, se via algum albatroz bordejando a linha d'água. Alguns siris saíam das pequenas tocas. O mar estava violento por causa do tempo que havia feito nos últimos dias. Sua cor era cinzenta. Fazia um frio de doze graus. Nessa praia, não existiam casa na beira do mar. Somente a uns cento e cinqüenta metros da orla se encontravam algumas pequenas e velhas casas, muito poucas, de pescadores. A maioria delas eram de madeira, pintadas de azul, amarelo, cor-de-rosa, como se aquele povoado fosse um lugarejo onde nevasse. Mas não. Só agora, no inverno, é que a temperatura descia, às vezes, a oito, seis graus. A mais baixa havia sido de dois graus, há muitos anos. As gaivotas ignoravam a temperatura da água e mergulhavam buscando peixes, ou os bicavam na linha de espuma. Entre várias quedas apontando para baixo, às vezes voltavam com um pequeno peixe prateado preso ao bico. Depois, o engoliam. Em dias como os desse inverno, em que o mar estava revolto, nem sempre se via uma gaivota pescando, pois desapareciam por trás das ondas altas. Lá fora, depois da rebentação, havia uma ilha. Era deserta e sem praias. Alguns se aproximavam dela para pescar, mas não desciam. Era perigoso abordá-la por causa dos enormes rochedos. Nesse ponto da praia, não havia barcos. Eles eram guardados em pequenos ranchos de madeira, a um quilômetro, no canto de pedras, onde se elevava o morro e havia uma pequena baía. Apenas os barcos maiores, das indústrias pesqueiras, eram vistos dali, parados lá fora, lançando suas enormes redes, mas não em dias como esse, com o tempo ainda instável e o mar perigosamente mexido. Pouca gente tomava banho nesse mar. Havia ondas fortes, e quando se entrava nele, uma descida forte do solo de areia causava um repuxo que arrastava as pessoas ao fundo. Os pescadores de tarrafa, que apareciam nos finais de tarde, ficavam na beirinha, com a água pelas canelas, aguardando as mantas escuras de cardumes próximos. Quando já estava escurecendo, eles voltavam para casa com poucos peixes em cestos de palha ou em um balde. Eram oito horas da manhã de um dia frio, escuro, com sua cerração espessa. Lá nos lados do mar, a claridade ainda demoraria a se fazer mais forte. Para oeste, do lado dos morros, a escuridão ainda persistia, e soprava um vento sul gelado. Desse lado escuro, oposto ao mar, onde havia algumas casas, vem uma mulher. Ela caminha pela faixa de areia e vegetação baixa, em geral, com alguns pequenos arbustos, pouquíssimas árvores, que estava entre a zona das casas e a praia. Vestida com uma calça jeans, um blusão azul-marinho e um casaco marrom, usando botas e um gorro de lã, ela atravessa a parte mais alta das dunas e chega até a praia. Ali, pára de frente para o oceano, olhando a névoa cinzenta. O barulho do mar era enorme. Durante mais de vinte minutos, nada se mexia, nenhum pássaro se avistava por perto, apenas o vento cortante trazendo finíssimos grãos de areia e gotículas geladas. A mulher permanece em pé. Seus cabelos eram louros, um pouco ruivos, talvez, compridos e despenteados, ondulados. Ela tem olhos azuis e claros. Pisca um pouco e protege o rosto do vento com a mão direita. Não havia muito que ver. A neblina não se desfazia, o céu ainda estava nublado, o dia tardava em clarear. A mulher dá as costas ao mar e começa a caminhar de volta. Cruza a faixa de areia e vegetação rasteira, encontra uma pequena rua de terra, e a uns cem metros dali havia uma casa de madeira, térrea, de um verde-escuro cuja pintura já estava um tanto descascada, com um fundo acinzentado. A casa mais próxima desta ficava a uns quatrocentos metros em direção à baía onde atracavam os barcos, na ponta esquerda da praia. A mulher pára em frente a essa casa, olha uma vez mais para o lado do mar e abre a porta. Bate com a sola das botas no chão de cimento e entra. A casa era uma peça ampla com assoalho de madeira escura. No lado menor, à esquerda, havia uma mesa, uma cadeira e uma estante com poucos livros. No centro, um tapete envelhecido, outra mesa com uma cadeira, e uma cama de solteiro encostada na parede maior, junto a um baú. À direita, havia uma pia sobre um pequeno balcão de madeira, uma geladeira antiga, de porta arredondada, e um fogão. Outra cadeira jazia contra uma parede perto da geladeira. Num canto, uma porta dava acesso a uma soleira com outra pequena pia, que ficava entre a casa e o banheiro, este com um vaso e um chuveiro. Ao lado, se encontravam um tanque de cimento e um pequeno varal. Dentro da casa, mais ou menos entre a parede da direita e a mesa do centro, um fogão a lenha estendia para o alto, varando o telhado, sua chaminé de manilha de cerâmica. Ao lado, um cesto de palha retangular continha pedaços de lenha. A mulher pega uns restos de jornal velho e alguns gravetos, e começa a aquecer o fogão a lenha. Enche uma chaleira com água e a põe sobre a chapa de ferro. Com alguma lenha, o fogo já começava a produzir ruídos. Enquanto prepara o café, ela olha pela janela. O tempo ainda estava cinza e úmido, mas já se podia ver uma faixa de céu, em meio às nuvens, acima da neblina. Alguns albatrozes voavam ao longe. Ela tira o pão, a manteiga e o açúcar da geladeira e espera a água ferver, sentada à mesa do meio da casa. Passa o café num coador de pano e toma-o lentamente. Já fora, um gavião gritou. Ela se levanta rápido e vai até a janela espiá-lo: era um grito como que desesperado, agudo, mas que estava, ela sabe, vinculado apenas à urgência da fome do pássaro. Ela não consegue ver onde ele estava. Volta a sentar-se e acaba de tomar o café preto. Depois, se levanta, vai até a mesinha próxima à estante, abre uma gaveta sob o tampo e tira dali uma caneta e um caderno amarelo. Abre-o e, numa caligrafia lenta e hesitante, escreve: "Gavião". Guarda o caderno e vai lavar a louça. Fazia frio. Ela coloca mais lenha no fogão e atiça o fogo. Tira o gorro de lã, dá alguns passos pela casa e olha de relance o único quadro que havia na parede, uma reprodução de "A sesta", de Van Gogh, já meio descolorida. A moldura era de madeira clara. Ela puxa uma cadeira que está ao lado da mesa e da estante, e a coloca junto à janela. Tem que secar a umidade condensada no vidro com a manga do casaco para poder enxergar. Senta-se e fica olhando os lados do mar oculto, ao longe. Eram nove e meia da manhã. A mulher esfrega as mãos e balança a cabeça, como se o movimento de seus cabelos pudesse afastar o frio. Ainda não pode ver o mar, o horizonte. Ela espera. Passou outra vez um gavião, e ela dá um quase-sorriso. Lá pelas onze e meia, ela continua sentada. A neblina estava mais fraca, desfazendo-se, quando o Sol iniciava sua aparição, aos poucos, por entre amontoados de nuvens. O mar passou a ser visível em algumas partes. Ela levanta, abre a janela, levantando a folha de baixo, e volta a sentar. Depois, vai até a pia, pega um copo, enche-o de água e bebe devagar, em pequenos goles. Pendurado na parede, perto da geladeira, um relógio de pulso marcava essas horas lentas. Faltavam quinze minutos para o meio-dia. Ela mexe na área das panelas - são poucas - e se põe a cozinhar um pouco de arroz. Da geladeira, tira uma panelinha de barro contendo um pouco de feijão e deixa-a um tempo sobre a pia, onde também havia um prato de porcelana branco e talheres, que ela leva à mesa. Enquanto o arroz cozinhava sobre a chapa do fogão a lenha, ela espera que a panela de barro esteja menos fria para, então, também colocá-la sobre a chapa. Ela espia novamente pela janela. O mar surgia maior e menos cinzento, diminuindo a sensação de frio. Alguns albatrozes se deslocavam sobre a praia. Não apareceu nenhum barco. O vento tinha diminuído, as areias das dunas estavam quietas. O feijão e o arroz ferviam. A mulher desloca as panelas para a área menos quente da chapa e espera o arroz secar. Procura sob a pia a farinha de mandioca, guardada num vidro com tampa, onde resta muito pouco. Um grito de criança lhe deu um susto. Parecia próximo, mas ela não vê ninguém. Outra vez, o grito do gavião. Ela corre até a mesa próxima da estante, tira o caderno da gaveta e olha para ele. Não toca na caneta. Segura o caderno por alguns segundos, mas tem que devolvê-lo e cuidar das panelas. Enquanto almoça, não olha lá fora, apenas para o prato. Come como se não sentisse fome, em garfadas vagarosas e espaçadas, com um intervalo grande entre elas, mas no final não deixa nada no prato. Toma meio copo de água da torneira. Depois, tira o casaco, se deita na cama e fecha os olhos.

܀

Desperta com a luz do Sol. Olha pela janela à direita e vê o céu azul, com pouquíssimas nuvens. Tem a sensação de não ter dormido, apenas um leve cochilo. O Sol agora batia na parede da frente da casa, aquecendo o local onde a cama estava encostada. No verão, a mulher desloca a cama para junto da parede maior para evitar o calor. Ela levanta e bebe um copo de água. O gosto estava diferente, talvez pelas chuvas da semana anterior. Ela abre a porta e sai, caminhando um pouco, muito devagar, ao redor da casa. Não havia uma cerca nem um jardim. O terreno era arenoso, com vegetação baixa de restinga, alguns arbustos, nenhuma árvore. As pequenas poças d'água de dias atrás secaram. Agora, ela sente menos frio. Tira as botas e as meias, e anda um pouco descalça sobre o chão áspero com grandes grãos de areia. O solo não estava muito frio, a umidade do terreno já diminuíra. Havia que tomar cuidado com as rosetas, que espetavam os pés. Um cão latiu longe dali. O brilho das minúsculas pedras e das gramíneas ao Sol ofuscava o olhar. Ela entra em casa, onde encontra uma semipenumbra fresca e agradável. Vai até a estante de livros e a examina. Dos poucos volumes, alguns pareciam novos, outros já tinham sido bastante manuseados e estavam em estado bem precário. Ela escolhe um desses muito usados e senta junto à mesa. Não abre o livro imediatamente, permanecendo por algum tempo com ele nas mãos, olhando-o com cuidado, passando a mão sobre a capa, virando-o. Lê o título, o nome do autor, observa a gravura e só então o abre. Depois, lê a folha de rosto, daí parte às últimas páginas, folheia-o aleatoriamente, fecha-o. Então, abre-o de novo, passa as páginas iniciais sem pressa e pára. Olha o mar. Agora, o horizonte estava visível. Não havia nenhum navio. Ela começa a ler o poema. Termina, impassível, e o lê novamente, palavra por palavra, depois torna a lê-lo mexendo os lábios quase imperceptivelmente, como se mastigasse. Desliza a mão pelo papel e vira a página. Assim, vai lendo umas dez páginas, até fechar o livro. Quando, com uma das mãos, faz o gesto de afastar um volume da estante, para abrir espaço e poder guardar o que tem nas mãos, um deles caiu no chão. Era um livro que, durante anos, talvez, não fora manuseado. Ela o recolhe do chão, coloca o volume que ia guardar sobre a mesa e abre aquele que havia tempo não lia. Folheia-o displicentemente. Era um texto em prosa. Ela sente algo mais rígido dentro dele, além das páginas de papel grosso, que sente ao tocá-lo. Procura entre as folhas. Era uma carta. A mulher olha o mar, de um intenso azul. O envelope ainda estava fechado. No lugar do remetente, estava escrito um nome de homem. No destinatário, um nome de mulher. Vê os selos com a estampa de passarinhos e o carimbo dos correios. O volume não era muito grande, teria umas duas folhas. Ela fecha o livro com o envelope dentro e o devolve à estante. Pela janela, começava a entrar um novo ar frio. Ela guarda também o livro de poemas e fecha a janela. Fica ali esfregando as mãos, inquieta, com os olhos azuis piscando. Para o lado do fim da praia, na direção norte, urubus sobrevoavam, provavelmente, alguma carcaça. Talvez fossem peixes jogados pelos pescadores de madrugada ou de manhã bem cedo, ou algum outro animal morto. Ela decide verificar o que havia no armarinho embaixo da pia, e não restava muita coisa para comer. Põe a touca de lã e o casaco. Pega uma sacola de pano, pendurada ao lado do fogão, a carteira que estava dentro da gaveta, e sai de casa. Vai caminhando pela estrada de terra, entre a restinga e o início dos morros, com as mãos nos bolsos do casaco e a sacola pendurada no braço esquerdo. Tem cerca de quatrocentos metros a percorrer até a casa mais próxima. Depois, avança mais uns cinqüenta metros e encontra mais casas. Uma delas tinha um pequeno armazém na frente, que vendia, entre outras coisas, alguns alimentos. Chegando lá, entra devagar. Atrás do balcão de madeira um tanto velho, estava um homem de uns sessenta anos, cabelos grisalhos, pele escurecida pelo Sol, ressequida e enrugada, vestindo um blusão de lã marrom de gola alta e um boné surrado. "Boa tarde", ele disse. Ela assente com a cabeça e começa a examinar algumas prateleiras. Pega um quilo de arroz, outro de feijão, um de farinha de mandioca. O homem pergunta: "Quer frango?". Sim, ela quer, pois faz semanas que não come carne de ave. Ele também pôs sobre o balcão um pé de alface, alguns ovos, café, farinha de trigo e um tablete de manteiga. Foi até o fundo do armazém e voltou trazendo algumas cebolas e um pedaço de bacon. "Está bom assim?", ele indagou. Sim, para ela é suficiente. Ele anotou todos os valores numa caderneta, completou a soma e mostrou a ela em quanto estava sua dívida. Ela vê as anotações, os olhos fixos. O homem ficou segurando a caderneta durante uns segundos, a fim de que ela pudesse estar ciente de tudo. "Tudo bem", ele disse, "quando a senhora puder, a senhora vem e me paga." Ela quase sorri, junta tudo que estava sobre o balcão, coloca em sua sacola de pano e acena desajeitada para o homem. Na porta, surgiu um gato de pêlo grosso amarelado. Ela sai. Atrás do homem do balcão, ouviu-se uma voz de mulher: "Era ela?". "Sim", disse ele. Ela volta para casa na luz alaranjada do fim de tarde, carregando alguns quilos, o que, às vezes, a obrigava a trocar de braço para segurar a pesada sacola. Fora o desconforto do peso, ela olha tudo com um certo gosto, uma presença de si mesma entre as cores da estrada e a vegetação dourada pelo Sol morrente. Chega em casa, abre a porta - sem chave, como de costume - e começa a guardar as compras no armarinho. Quando não há mais nada na sacola, fica um pouco entristecida, não tanto pela quantidade ou variedade de produtos, mas porque acabou a atividade de guardar as compras. Pendura a sacola de pano ao lado do fogão e caminha até a mesa da janela. Estica os braços enquanto olha para o mar. Fica bastante tempo nessa contemplação, com o dia correndo ao seu lado. Seus olhos brilham nessa hora, em que o dia começava a desaparecer e um vermelho ia se impondo no lado do crepúsculo. Rastros rosados de nuvens permaneciam sobre as águas, no horizonte, e o frio voltava a crescer rapidamente. Agora, albatrozes voavam de algum ponto do mar, que ela ignora, talvez da ilha, em direção ao pôr-do-sol. O azul bem acima do oceano escurecia aos poucos. Ela senta e espera a escuridão chegar. A praia ia se tornando azul-marinho, tudo mergulhava nesse azul-escuro intenso, e mal se podia ver o contorno dos morros na ponta da praia onde ficavam os barcos de pesca. Ela se lembra que tem que fazer pão. Inicia sua preparação e acende novamente o forno a lenha, esperando alguns minutos, para que a massa descansasse depois. Gosta de amassar o pão. É como se estivesse fazendo uma escultura ou, talvez, batendo em alguém. Isso lhe dá fome. Enquanto a massa ficou descansando, ela se põe a cozinhar. Como fazia frio, lhe apetece comer uma massa com bacon e cebola. Aproveita, fica perto do fogão e se aquece. Ao longe, ela avista algumas luzes. Eram as casas. No mar, não havia nada, somente o negrume. Um pouco de vento circulava pelas frestas. Ela acende uma lâmpada. O cheiro do bacon fritando lhe deu mais fome, e a saliva engrossou em sua língua. Faz movimentos rápidos para deixar a massa pronta, acrescentando as cebolas ao bacon. Quando termina, ela se serve num prato fundo branco e senta à mesa. Cheira a comida quente, mexe a massa com o garfo, misturando bem o bacon e as cebolas, e espera que a comida esfriasse um pouco. Não havia queijo. Começa a comer devagar, tão lentamente como se a estender a duração do jantar. Mastiga dezenas de vezes cada porção colhida com o garfo. Quando, por fim, acaba de comer, permanece sentada, fixando na memória aquele sabor. Então, levanta, levando o prato e os talheres até a pia, e lembra do pão. Tira a massa do forno apagado, volta a trabalhá-la com as mãos e corta-a em dois pedaços. Unta com óleo duas pequenas formas de alumínio e coloca nelas as duas partes de massa, levando-as ao forno apagado a descansar mais uns 45 minutos. Depois, vai lavar a louça. Anda até a pia do banheiro, lá fora, para escovar os dentes. Não acende a luz, aproveitando a luminosidade do interior da casa. Evita olhar-se no pequeno e velho espelho. Já dentro de casa, escolhe gravetos e pedaços de lenha para reacender o fogão. Antes de fazê-lo, retira os pães crus e coloca-os sobre um canto da chapa. Acende, por fim, os primeiros gravetos, e o fogo começou a crescer, aumentando em contato com os pedaços de lenha maiores. Ela deixa aberta a portinha do fogão de ferro para ver as chamas. Procura uma vela, acende-a sobre uma mesa e apaga a lâmpada. Deita no tapete cor de vinho esmaecido, ao lado do fogão, e fecha os olhos. O mar, nesse instante, se tornou audível. Era um ruído baixo, constante, como um avião que nunca acabasse de passar. Os outros barulhos de fora eram variados, de pássaros em última viagem ao local onde dormiriam, o vento, que logo acalmaria, alguém, um cão. O mar era permanente em seu som que rugia longe, mas à noite o volume era maior. Junto com o oceano, ela ouve a lenha, que às vezes estalava no fogo. A dureza do chão lhe causava desconforto. Ela se espreguiça, levanta e vai até a janela que dá para os lados do mar. Essa semana era de Lua nova. Perto do vidro, o ar era mais gélido. Ela vai até o fogão, examina a temperatura da porta do forno e coloca as formas com os pães lá dentro. Depois, volta à janela. Lá fora, estava muito escuro. Perto do fogão, o ambiente estava mais quente, aconchegante, instando-a a deitar-se novamente no chão por uns vinte minutos. Era hora de retirar os pães. Ela verifica se estão bem assados, por fim decide tirar as formas, com a ajuda de dois panos de prato, e coloca-as na beirada do fogão. Depois, leva-as para o fogão a gás, onde deixa os pães esfriando sob um pano seco. Agora, ela tem sono e se dirige à cama, para baixo dos cobertores. E lembra de um verso que tinha lido à tarde. Dorme antes de a vela acabar.

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Era cedo. O dia estava nublado e úmido. O frio tinha aumentado, havia poucos pássaros em movimento, e o mar produzia um barulho semelhante ao que se escuta à noite. A mulher acorda e olha o fogão a lenha, já frio havia várias horas. Um silêncio quase completo dominava o ambiente. Ela se levanta e olha o dia cinzento. Logo, põe o casaco e o gorro de lã, e vai lá fora, ao banheiro. A água que sai da torneira está gelada, suas mãos eram muito sensíveis, e sua pele sentiu como que pontadas de agulhas. Volta à cozinha e pega um copo para tomar água. Quando se dirige à pia, o copo escapou de sua mão e se espatifou no chão. Ela tem um pequeno sobressalto, ainda um pouco sonolenta, a mão direita estendida sobre a chave da torneira. Olha o chão com o corpo inclinado, recolhe devagar o braço direito estendido à pia e fixa o olhar nos cacos de vidro. Ainda tem o barulho da queda do copo ressoando em seus ouvidos. Agora, imóvel, ela volta a escutar, tênue, o ruído do mar. Finalmente, um pássaro gritou. Alguma coisa se moveu em sua memória. Tem medo de se abaixar e juntar os cacos. Deixa-os no chão à espera de alguma limpeza mais tarde. Pensa durante alguns segundos e decide pegar outro copo. Bebe água devagar, pois ela estava fria. Vai preparar o café da manhã e retira o pano que cobria os pães. Veio-lhe um cheiro de pão fresco que lhe avivou as papilas. Ela esboça um sorriso. Faz o café preto forte e toma-o com grossas fatias do pão recém-cortado e manteiga. Depois, como sempre, tem essa hesitação ao enfrentar a louça que exigia ser lavada, continuando a atividade lançada pelo dia, ou deixá-la ali, esquecida, e fazer uma pausa após o café, prolongando o prazer de seu sabor e o ócio. Como um meio-termo, ela recolhe a louça suja da mesa e deposita-a na pia. De repente, se lembra de um sonho. Às vezes, lhe vinha essa imagem de uma casa ampla, com assoalho de madeiras de cores diferentes, janelas altas com aberturas pintadas de branco, poucos e sóbrios móveis, e um pátio, na verdade um terraço, algumas árvores frutíferas, outras com as copas desfolhadas pelo inverno. Nada acontecia nesse espaço. E se havia algum personagem, era secundário, desimportante. O que restava sempre do sonho, além da imagem desse ambiente, era uma sensação de aconchego perdido, de uma temperatura agradável, como num salão no qual a calefação arrefecia o frio de um dia nevado, cinzento e com árvores secas. Aqui, agora, o que havia era uma louça para lavar, cacos para recolher, uma casa vazia e o tempo à espera de algum acontecimento. Ela veste seu casaco e umas botas velhas, e sai. Vai a caminho da praia. Um vento sul voltava a carregar lentamente as nuvens. Andando, ela vê flores minúsculas, ao nível do chão, brancas, amarelas, roxas, diferentes das que se encontravam no verão. Quando cruza as dunas e chega à praia, o som do mar era tão alto que duas pessoas teriam dificuldade para conversar. Ela caminha rumo à esquerda, com o vento às suas costas, e olha o mar cinzento. Nesse momento, não vê os albatrozes. Mas no chão, em meio a galhos secos jogados pelo vento, ossos de peixe e algumas linhas de nylon de pesca, lascas de madeira apodrecida pelas marés, com a pintura gasta e uma profusão de cacos de conchas, ela encontra um pingüim morto. Ele tinha os olhos abertos. Ela se agacha a fim de observá-lo melhor e fixa seu olhar nos olhos daquele pequeno corpo imóvel. Chegou um momento em que as pernas dela doíam, e ela tem que se levantar. De repente, gira o corpo e caminha rapidamente, quase correndo com dificuldade na areia, com a cabeça baixa, o vento sul agredindo seus cabelos, até a parte da praia em que diminuía a vegetação das dunas e se abria o caminho para a pequena vila. Ela abandona a praia e segue, com as mãos nos bolsos do casaco, até sua casa. Abre a porta, entra, vai direto até a mesa perto da estante, pega a caneta e o caderno. Folheia-o e pára, com a caneta na mão direita, ainda de pé. Senta na cadeira que está junto à mesa e leva a mão direita ao caderno. Houve um instante de hesitação. Ela olha em direção ao mar, impaciente. Então, baixa a cabeça e escreve, lentamente: "Pin...". Coça a cabeça, olha para fora. Por fim, acrescenta: "...guim". Depois, corrige a letra "u", colocando um trema: "Pingüim". Pensa um pouco, vai riscar o trema, não o risca. Fecha rápido o caderno, guarda-o na gaveta, se levanta e anda até a janela, onde fica encostada, com as mãos na abertura de madeira e o olhar perdido em direção ao vasto oceano.

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Com preguiça de cozinhar e, ao mesmo tempo, inquieta, ela corta um pedaço de pão, envolve-o num pano e sai de casa. Volta até a praia, caminhando na direção norte. Vê o pingüim morto, anda um pouco mais e pára. O mar continuava agitado, e a uns cinqüenta metros da praia, sobre as ondas, os mergulhões se lançavam à pesca, fechando as asas junto ao corpo e furando a linha d'água numa velocidade estonteante. Ela decide sentar na areia e comer o pão, enquanto assiste à pescaria dos pássaros com olhos quase sedentos. A areia da praia permanecia fresca. O Sol saía, por vezes, timidamente, mas não chegava a aquecer a atmosfera. A sensação era de uma tranqüilidade tensa, uma contemplação afoita, esperando, quem sabe, alguma conclusão que não havia, o desenlace do que nem tinha começado. Ao mesmo tempo, era acolhedor esse momento ocioso em frente ao mar. Ela não sabe por quê. Apenas os mergulhões, umas fragatas e sua fome. Nada a distraía mais do que essa pesca certeira, obstinada, na qual os pássaros arpoavam suas presas com seus finos bicos. Nada a concentrava mais em si mesma. Seu olhar acompanha o ciclo de ações do mergulhão, do reconhecimento do peixe, a vários palmos acima da superfície, até o ataque fatal, e tudo estava completo, sem fissuras. Sem palavras. O vento trazia uma névoa invisível, úmida, que passava roçando seu corpo. Ela recebe essa umidade no rosto, fecha os olhos e não se incomoda com o frio, pois está aquecida por dentro. Quando está assim, com o corpo quente por alguma atividade interna, pelo metabolismo agindo às pressas, não se importa com as rajadas frias. Como se não precisasse de um teto para abrigá-la. Seu calor era suficiente. Sua pele experimentava esse afago do vento e se expunha à própria textura apessegada. Lá fora, passava um barco. Parecia que estava parado, visto, assim, a essa distância da praia. Talvez fosse um barco pesqueiro. Ela olha para ele com avidez. Sente uma forte atração por lugares longínquos no mapa-múndi, casas isoladas no campo e barcos singrando ao longe, no horizonte. Imagina quem está lá, como passam as horas, como é o pôr-do-sol em alto-mar, o que fazem à noite, quando há infinitas estrelas ou uma Lua cheia que faz sombra nos cabos e mastros. Ela percebe que o barco se movimentou um pouco, portanto não lançara âncoras. Ela se fixa nessa palavra, põe as mãos na areia, imagina a profundidade do mar. O Sol, agora, estava mais forte. Ela tira o casaco, arregaça as mangas do blusão e tira as botas. O vento diminuíra. A mulher fecha os olhos, abre-os novamente durante uns segundos, o suficiente para poder enxergar o barco e não ser molestada pela luz solar. O barulho das ondas permanecia forte. Ela escuta o mar, que produzia variações em seus sons, com ondas mais fortes ou mais fracas. Era um som sem começo nem fim, num volume alto, grosso como o próprio mar, e que ela acolhe com gosto. Outros ruídos esparsos, altos ou baixos, chegando à sua casa imprevistos, ela os odeia. Foge deles, tapa os ouvidos. Mas com o mar e sua música ruidosa e monótona, ela consente. Um gavião lançou um grito. Gaivotas buscavam peixes na orla. A mulher começa a sentir fome de novo. O barco já estava indo embora, deslocando-se vagaroso. À esquerda, a praia se estendia, vazia. Outro grupo de gaivotas levantava vôo e tornava a pousar alguns metros mais adiante. Ela olha e vê uma mancha escura. As aves se deslocaram outra vez, a uma distância maior, ficando mais visíveis. E alguém vinha caminhando. Um homem. Ela calça as botas, veste o casaco e parte de volta para casa. Vê os cacos de vidro esquecidos no chão, recolhe-os e joga-os no lixo. Agora, a fome a atacava. Abre gavetas, busca utensílios de cozinha. A faca estava afiada. Tira o frango inteiro da geladeira e começa a destrinchá-lo. Reserva uma coxa para o almoço. Em seguida, lava um punhado de arroz e passa a cozinhá-lo. Volta à coxa de frango, e tempera-a com sal e limão. Enquanto o arroz estava no fogo, ela vai pôr a mesa rápido. Pára e espia pela janela. Não havia ninguém lá fora. Volta ao fogão a gás com o intuito de fritar o pedaço de frango. Já eram duas horas da tarde. Quando tudo estava pronto, ela se serve num prato fundo e vai para a mesa. Mastiga com rapidez, com força, uma espécie de nervosismo, a cabeça baixa, mexendo os pés, roçando uma ponta da bota na outra. Às vezes, suspira. Um suspiro mais fundo acompanha o final da refeição, ao mesmo tempo em que, saciada, ela se espreguiça. Lembra que os gatos também se esticam depois de comer. E seus olhos, nesse instante, sem que ela soubesse por que, ficam úmidos.

܀

A tarde não tinha vento, e o Sol dominava o ar. A mulher abre os olhos, deitada de lado na cama, com o rosto virado em direção ao fogão a lenha. Fecha-os. Ouve o dia. Abre os olhos de novo. Como se estar ou não estar ali não fizesse diferença. Como se tudo que pudesse acontecer, todos os atos, os eventos imprevistos ou alguma decisão e suas conseqüências, não tivessem significado, como o vento quieto, a luz cíclica, o mar infinito. Senta-se na cama. As janelas, o azul do céu, o canto de alguma ave pequena pareciam falar. No entanto, a casa era um manto de silêncio. E se ela gritasse? Nada. O resto das coisas permaneceria impassível. Deita-se novamente. O sono era o avesso do silêncio. Não o sonho, que lhe falava com palavras mudas, dispersas como grãos de areia, umas que a atordoavam, cravadas em sua lembrança ao acordar. Depois, eram os dias sem sonho, brutos e duráveis, sempre, sem jamais oferecer a diferença de um abalo. A não ser o fogão a lenha, crepitando sua paciência noturna como um afago, dispondo a gramatura do breu como lãs, compondo a imprecisão do instante atravessado de esperas. Então, as noites de fogo. O inverno era um abandono cuidando de si, à luz de uma vela, como o fogo, irrequieta em sua calma ardência, de uma paciência voraz, exterminando as impurezas do ar à sua volta, carregado de resquícios de fatos inúteis, os fatos do dia. Espreguiça-se: a presença dela expandindo-se para dentro. Resolve levantar e enfrentar a tarde, o esboço de algo. Vai até uma janela. Lembra-se. Procura o caderno, abre-o ao meio, numa folha qualquer intacta, e escreve: "Alguém". Fecha-o com força. Coloca-o rápido sobre a mesa. Recorda, também, um poema que falava do mar. Busca-o nos livros da estante. Primeiro, o lê em pé, depois senta e lê sem pressa o texto como quem reflete. Alguém. Sente um ligeiro receio, a penugem de um instante elétrico a lhe roçar os braços. Então, tem vontade de sair. Não veste o casaco. Sai, fecha a porta e caminha pela estrada. Olha em direção à praia, mas não vê nada. O que vai comprar? Velas. Talvez fósforos. As casas pareciam fechadas, as pessoas estavam em algum lugar trabalhando na cidade, viriam para as casas, quem sabe, no verão. Ela se dirige ao armazém. Antevê o interior da casa: pé-direito alto, piso de madeira já gasta, lisa, janelas com pequenos vidros quadrados, folhas externas de madeira, duas mesas, uma com três cadeiras, outra com quatro, sem toalhas. Os tampos tinham as bordas arredondadas pelo uso. Nas tábuas, abriam-se pequenos veios. O balcão escuro com vidros na frente expunha mercadorias que pareciam esquecidas. No teto, havia produtos pendurados. Salames e queijos descansavam numa mesinha ao lado do balcão. A essa hora da tarde, ofereciam pães salgados e doces, com creme ou farofa, sobre papéis lilases de embrulho, oriundos de alguma padaria próxima. À direita, numa prateleira estreita, viam-se garrafas de bebida. Ela entra no armazém e não vê ninguém. Sempre a mesma penumbra. O gato amarelado se aproximou, surgindo de trás do balcão, espiou a freguesa, saiu pela porta rápido e parou lá fora. Ele olhou de relance para ela. Ela também o olha, e os dois ficaram assim por um momento, tentando se reconhecer, fixando nos olhos do outro alguma dúvida ou simplesmente um chamado. Ela com seus olhos azuis, quase cinzentos nesse dia, ele com olhos esverdeados. O gato sentou, lambeu as bordas da boca, olhou para o lado, limpou rapidamente a pata com a língua, mas voltou a olhar para ela, que permanece ali. Era um gato quase ruivo, como os cabelos dela. O dono do armazém surgiu, e ela o cumprimenta com um movimento de cabeça. O gato foi embora. Ela se aproxima das prateleiras da esquerda, pega um pacote de velas brancas e duas caixas de fósforo pequenas, e mostra tudo ao dono, que pegou a caderneta correspondente a ela, onde anotou os preços e as quantidades. Ela evita esses números. Com o olhar, procura o gato lá fora, mas ele tinha desaparecido. O homem disse: "Ele nos adotou. Chegou aqui há um mês e não saiu mais". Ela sorri, ainda com os olhos fixos na entrada do armazém. Vira-se para o homem e baixa a cabeça. "A senhora precisa de mais alguma coisa?" Não, ela não precisa. O homem grisalho ficou calado, de pé, apoiando os cotovelos no balcão. Ela percebe que está sem a sacola de compras. O homem se deu conta e lhe alcançou um saco plástico, onde ela coloca as velas e os fósforos. "Não anda faltando luz", ele pensou. A mulher do dono do armazém apareceu e se encostou no marido. Ele sorriu. A freguesa ruiva acena com a cabeça e sai do armazém. "Ela pagou?", perguntou a mulher do dono. "Ainda não", respondeu o homem. Ela retorna à casa com as compras. As flores do inverno eram diferentes das do verão. Minúsculas, púrpuras, rosadas, brancas, nasciam como campos tingidos ao crepúsculo. Ela as vê toda vez que caminha por ali. Uma coruja piou alto. Parecia que a tarde chegava ao fim. Ela abre a sacola e olha as velas e os fósforos, como que se certificando da presença deles ali, para algum uso necessário, depois, nas noites isoladas e repletas de tempo. Quando chega em casa, o Sol já tinha descido bastante, se pondo atrás dos morros, e nesse momento o céu ficou cor-de-rosa. Alguns albatrozes voavam alto, em linha reta, serenos. Não estavam passeando ou pescando, mas seguramente voltavam ao seu lugar noturno, onde dormiam. Sempre viajavam no final de tarde. Ela não sabe por quê. Antes de abrir a porta, ela pára. Olha de novo os albatrozes. Eles partiam tranqüilos rumo ao norte. Depois de um tempo, a mulher entra. Coloca as velas e os fósforos sobre a mesa do centro, e se dá conta de que lá fora fazia frio. Antes de pensar em qualquer coisa, espia por uma das janelas, perto da mesa e da estante. Lá longe, no horizonte levemente escurecido, um navio ia se afastando. Ela olha esse navio como se houvesse alguém conhecido lá dentro. Ele mal se deslocava, aos olhos de quem estava em terra. Depois, desapareceu. As coisas iam perdendo seu contorno aos poucos. Do lado da praia, pelo caminho que mal se via, uma sombra parecia se deslocar. Não, não era uma sombra naquele lento anoitecer. Um vulto avançava em direção à casa. Uma silhueta de homem. Ela abandona a janela, sai por trás, fecha a porta e entra no banheiro. Um grito de coruja caçadora encheu o ar. Do mar, vinha uma melodia compassada, indefinida, das ondas. Ela não acende a luz, a casa toda estava às escuras. Espia pela janelinha do banheiro, sente o frio trazido da praia. Não havia ninguém, nem ruído de passos. Ela espera uns quinze minutos, então sai devagar do banheiro, entra em casa, caminha devagar até a janela do lado norte e espreita pelo canto do vidro. Ninguém. Nesse instante, ela sente um frio que não se encontrava lá fora, vinha da casa, denso e incômodo. Coloca o casaco e o gorro de lã, e começa a juntar uns gravetos. Quando pega a caixa de fósforos é que decide: não acende luz alguma. Com toda a casa já dentro da noite, ela risca um fósforo junto a uma vela e vislumbra seu pavio em chamas. No início, a luz da vela era fraca, com todo o ambiente no escuro. Depois, ela acende o fogão a lenha e fica ali ao lado, se aquecendo com as mãos em frente ao fogo. Aos poucos, a luz da vela, aos seus olhos, foi se tornando intensa, e ela já pode ver os móveis e os objetos. Pensa que é hora de preparar algo para comer. De vez em quando, cuida do fogo, pondo mais um pedaço de lenha ou abanando-o com um pedaço de cartão. De novo, sente vontade de sair, mas para onde? À noite, ela sabe, homens iam ao armazém sozinhos, dois ou três se encostavam no balcão, trocavam algumas palavras com o dono, cumprimentando a dona, quando esta vinha dar uma olhada no movimento, a cada meia hora, ou trazer algum pedido da parca cozinha - um coração de galinha, uma posta de peixe frito, lingüiças com farinha. Outros - não mais do que dois ou três, igualmente - sentavam às mesas de madeira escura e gasta sem toalha, e pediam um Steinhäger, uma cachaça, algumas cervejas. Alguns não comiam nada. Falavam do tempo e da pesca. Quando já era mais tarde, e já tinham bebido vários copos, discutiam futebol. Ela nunca vai até lá à noite, não conhece aqueles homens. Pega o caderno, abre-o em páginas totalmente brancas, deixa a caneta ao lado e pensa. Não havia luz suficiente ali. Ela carrega o caderno e a caneta à mesa do centro, junto à vela. Decide comer. Não havia lâmpadas acesas, dentro ou fora de casa. Às vezes, ela tem vontade de não dormir, perscrutando os ruídos anônimos da madrugada como se fossem o som de um rádio, tentando ver no escuro o vôo de algum pássaro noturno, esperando que de dentro da escuridão surgisse algum evento insólito, um estalo no tempo, ou então imagina que sua casa é uma embarcação, e dele ela olha tudo em volta com a curiosidade de alguém buscando um golfinho ou uma baleia, quem sabe peixes-voadores. Mas se cansa, deita na cama olhando o fogo, conforta-se com os sons da lenha e fecha os olhos, demorando para dormir, sonhando com a Lua que não tinha vindo. Agora, ela lembra do caderno aberto. Sai da cama e se posta sentada diante dele. Agarra a caneta. Tudo o que ela quer escrever não cabe naquelas folhas ou é inútil. O caderno fica ali na frente dela sem uma palavra inscrita. Ela se levanta rápido da cadeira, como se tivesse decidido algo, vai até o armarinho da cozinha, abre-o e retira dele uma garrafa sem rótulo, fechada com uma rolha, cheia de cachaça. Pega um copo e serve uma dose. Volta à mesa, bebe o primeiro gole, deixa-o na língua uns segundos antes de tragá-lo, absorve sua ardência, seu gosto de cana-de-açúcar. O álcool, finalmente, lhe deixou a sensação de aquecimento. Sua memória se avivou, e lhe veio a imagem de pupilas finas e esverdeadas que a olhavam sem desvio. Ela roça a ponta da caneta no papel, encostando a mão direita no caderno, desloca a vela para enxergar melhor o branco da página, olha a janela e seu breu total de fundo, como a buscar ajuda. Ela está circunscrita a esse espaço alaranjado-escuro das luzes inseguras vindas do fogão e da vela, com a mancha clara das folhas do caderno aberto diante de seus olhos. Um inseto se chocou contra o vidro. Ela escreve: "Olhar felino" e solta a caneta com alívio. Toma mais um pouco da cachaça. Precisa pagar sua conta no armazém. Existia a vontade de circular, de vez em quando, que quase a impele a alguma ação externa e resoluta. Havia algo a dizer, mas não sabe como. Quer ver todos os pássaros ao mesmo tempo, os albatrozes, os trinta-réis, os socós, as fragatas, as gaivotas, os gaviões, as corujas-do-campo, os bicos-de-lacre, os sanhaços... Mas era impossível. E o bar do armazém lhe era vedado. O mar consistia num mundo próprio a poucos passos dali, mas era, à sua maneira, inalcançável. Ela recomeça a cuidar do fogo. A lenha estava em brasa, era preciso atiçar as chamas e pôr mais pedaços de madeira. Pega o copo de cachaça e senta no assoalho de madeira, em frente ao fogão. Toma o último gole. Por fim, se deita. Não havia mais nada a fazer.

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A mulher acorda com cantos insistentes de aves. Havia uma claridade inusitada para o inverno, ainda que ele estivesse perto do fim. As nuvens tinham se afastado, o céu estava límpido, transparente. Ela toma café com disposição, morde o pão com vigor. Depois, parte rumo à praia. O mar estava mais calmo do que nos outros dias, a maré baixa acolhia na espuma que chegava à areia dezenas de pássaros em busca de comida. Ela tira as botas, deixa-as na areia e começa a caminhada. O vento era suave nessa manhã, como se fosse um dia de primavera. Quando ela passa, alguns gaviões levantavam vôo sem alarde ou sobressalto, apenas se punham a planar perto dela. Sua memória estava vazia, branca, às vezes tinha alguns lampejos, figuras dúbias, manchas de um acontecimento perdido. Neste instante, por exemplo, lhe surgiu uma súbita fagulha visual, ela caminhando para trás, de olhos fechados, numa praia ampla, sem obstáculos. Então, tenta a mesma coisa, com cuidado, fixando os calcanhares atrás, bem devagar, evitando cair. Dá alguns passos assim, e o mundo ia recuando à sua frente. Continua, e vê mais cacos de conchas no chão e alguns siris que corriam. Mais segura, fecha os olhos e caminha para trás, escutando o mar à direita, sentindo o calor do Sol e a brisa no rosto. Abre os olhos. Tudo prosseguia em sua calma matinal. Fecha-os e retoma o passo, o corpo se aquecendo, a areia sob os pés já não estava tão fria, ainda não sente a temperatura da água. Ouve um pássaro e sorri, mas sem abrir os olhos. Anda compassadamente na praia fofa e ainda um pouco úmida. De repente, tropeça com algo morno, se desequilibra, emite um som do fundo da garganta, rascante e mínimo, e cai. No chão, um homem piscava contra a forte claridade, ela se levanta rápido, entontecida, e num salto corre, corre sem escutar o que o homem tinha dito, se olhar para o seu rosto. Corre. Longe, ela se vira para uma visada rápida, e lá estava ele, de pé, os braços estendidos ao longo do corpo, que não parecia o de um pescador. Chega aonde estão as botas, se abaixa até elas, e o homem continuava na mesma posição. Ele era moreno, estatura média, magro, usando uma bermuda que ela não sabe de que cor era, talvez marrom, e uma blusa também escura de mangas compridas. O coração dela ainda pulsava inquieto. Sem calçar as botas, empreende o caminho para casa.

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Na manhã seguinte, ela toma uma decisão: pagará a conta do armazém. Ou, pelo menos, parte dela. Tira da gaveta da mesa pequena uma pasta de plástico azul. Dentro, havia documentos, papéis e um envelope pardo. Pega este envelope e remexe, com os dedos, seu interior. Retira algumas notas, pega uma delas e guarda as outras. Prepara-se para sair. No relógio de pulso pendurado na parede, eram dez e quinze. Ela abre a porta e ganha a rua. O dia voltava a estar nublado, com possibilidade de chuva. Uns urubus sobrevoavam a casa. A mulher põe a mão no bolso da calça e sente que o dinheiro está mesmo ali. Caminha a passos rápidos. Quando se aproxima das primeiras casas, sente o cheiro de feijão sendo cozido e lembra vagamente de barracos de obras na cidade com suas chaminés soltando fumaça a essa mesma hora. Chega ao armazém. O gato amarelo estava bem na entrada, encostado na forra da porta, dormindo. Ela entra. O gato não abriu os olhos. O dono a recebeu sorridente por trás do balcão. Ela apenas insinua um sorriso e, com expressão firme, quase satisfeita, lhe entrega o dinheiro. O senhor reteve a nota na mão esquerda, enquanto com a direita abriu uma grande gaveta e tirou de lá a caderneta a fim de verificar as contas. A nota que recebera não saldava toda a dívida, mas uma boa parte. O homem sorriu. "Precisa de alguma coisa?", perguntou. Nesse instante, um homem entrou no armazém, fazendo ranger uma das tábuas escuras do assoalho. Ela olha para ele. Era moreno, estatura média, magro, sério. Vestia uma calça jeans e uma blusa escura de mangas compridas, e cumprimentou os dois. Ela se volta ao dono do armazém com olhos de quem diz que tudo está bem e faz menção de se despedir, mas pára. O homem pediu licença a ela, que não entende, e foi sentar-se a uma das mesinhas quadradas. Dali, pediu uma cerveja. O dono disse "Pois não", e foi buscar uma garrafa no freezer e um copo. O homem sentado olhou o gato. Alguém, talvez, poderia afirmar que ele teve um súbito estremecimento, mas tão leve que era imperceptível, como o ar que se desloca, vagaroso, sem que se perceba, mas que os bigodes do gato detectam. Ela aproveita para fitá-lo e tenta absorver dele algum indício, um sinal de quem ele era ou queria. O gato abriu os olhos e viu o homem, que sorriu. Depois, levantou, se espreguiçou e sentou sobre as patas traseiras, limpou a boca com a língua e olhou para a mulher, que lhe retribui o olhar. Depois, o felino fitou o homem moreno. O dono do armazém saiu de trás do balcão e serviu a cerveja de 600 ml e um copo baixo e estriado, de vidro comum. O homem sentado encheu o copo, formando uma boa quantidade de espuma, colocou-o por uns segundos na mesa e, depois, bebeu lentamente. Ela continua parada perto do balcão. O dono do armazém pergunta: "Precisa de alguma coisa?". Ela sorri desconcertada e se apóia no balcão, o corpo dizendo que não, apenas quer ficar ali sem finalidade. A esposa do homem grisalho não apareceu, devia estar na cozinha. O homem que bebia cerveja olhou os cabelos meio ruivos e os olhos azulados dela. Então, com uma certa pressa, ela sai do armazém, sob o olhar do gato e dos homens.

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Quando chega em casa, a primeira coisa que nota ao entrar é o quadro "A sesta", de Van Gogh. Fixa o olhar nas cores, no azul e no amarelo. Na praia, também havia essas cores, e existiam certos dias assim, azuis, e esse repouso de qualquer atividade, o sono sem hora, sem tropeço, no feno amarelo. De madrugada, começou a chover. Ela acorda no meio da noite com o rumor forte da água no telhado e o estrépito de trovões ao longe. Depois, volta a dormir. De manhã, a chuva continuava, fina e constante. As folhas dos arbustos não se mexiam. O frio tinha aumentado. Ela fica na cama até mais tarde. Às dez horas, acaba levantando, com a vontade de sentir o aroma e o gosto do café. Prepara tudo com preguiça, saboreia o café e o pão, enquanto lá fora a chuva mantinha seu ritmo, que aparentava ser atemporal. Nesse instante, bateram na porta. Ela se assusta. Talvez esteja enganada. Espera uns segundos. De novo, as batidas na porta. Ela se levanta, se aproxima da porta de entrada e decide espiar pelo canto da janela. Era o carteiro, um jovem com uma bolsa a tiracolo e uma enorme capa de chuva amarela, ao lado de uma pesada bicicleta. Ela pensa que devia ser um engano essa presença ali fora do tempo e de qualquer causalidade. O carteiro a vira, só lhe resta abrir a porta. "Bom dia", ele disse, tirando da bolsa uma correspondência e entregando-a a ela, que a pega sem olhar o envelope. O jovem se despediu dela, tomou a bicicleta e partiu. Ela fecha a porta e senta para terminar o café, pondo a carta sobre a mesa. Toma um gole e espia a parte de trás do envelope. Tinha um nome de homem. Ela se ergue e busca o outro envelope, que estava guardado num livro. Encontra-o. O remetente era o mesmo. Sua mão tremeu um pouco. Recolhe as duas cartas juntas, ainda fechadas. Até o final do café, a chuva persistiu, quase como uma garoa, mas depois engrossou, e se ouviam grandes pingos caindo da beirada do telhado sem calhas, abrindo pequenos buracos na terra.

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A chuva continuava, já há quarenta e oito horas, sem parar. Às quatro e meia da tarde, começava a escurecer, tantas eram as nuvens cor de chumbo como um anteparo poderoso contra qualquer luminosidade. Dentro de casa, estava tudo úmido. Ela tem dificuldade para acender os fósforos. No dia anterior, o primeiro de chuva combinada com frio, ela acende o fogão das nove da manhã até a hora de dormir e percebe que a lenha está no fim, tem que pedir mais uma carga ao dono do armazém. Agora, no final da tarde, depois de sentir uma tênue exasperação de tédio, ela pega o caderno, arranca uma folha e anota: "Lenha. Limão". Pensa um pouco, vem-lhe um calafrio, e escreve: "Chocolate". Dobra o papel, guarda-o no bolso traseiro da calça e se levanta. Pega o guarda-chuva, uma capa que há muito tempo não usa e sai de casa. Na estrada de terra, várias poças, com partes de lama nas bordas, deixavam manchas marrons nas botas e nas calças. Ela se pergunta para onde vão os pássaros com tanta água caindo. Demora um pouco mais para percorrer o caminho, evitando as poças maiores e a lama, e chega à porta do armazém, que estava quase sempre aberto, e nesse momento as luzes já tinham sido acendidas. "Boa tarde", disse o homem grisalho, com uma expressão de quase assombro. Ela fecha rápido o guarda-chuva e dá um passo para dentro da casa. De sua capa, gotas d'água caíam sobre o assoalho. Na mesa da esquerda, o mesmo homem moreno estava tomando uma cerveja, como se tivesse ficado ali desde antes da chuva, preso pela intempérie, isolado do tempo e por circunstâncias que se ignoravam, nas últimas quarenta e oito horas. Ele fez a ela um aceno com a cabeça, sem sorrir, e ela, deixando o guarda-chuva apoiado na porta, se dirige ao balcão. Tira do bolso traseiro o papel amassado e entrega-o ao dono do armazém, que o leu e disse: "Vou lhe mandar quinze quilos de lenha amanhã de manhã". Foi até lá dentro e voltou com meia dúzia de limões. Disse a ela, apontando para um mostrador à direita, sobre o balcão, com balas e chocolates: "Pode escolher". Um homem louro entrou no armazém, de chapéu de feltro, disse "boa tarde" sem olhar para ninguém e parou junto ao balcão. O homem grisalho pegou uma garrafa de cachaça e lhe serviu uma generosa dose. Ela está escolhendo o chocolate, hesita, por fim decide, pega duas barras e as estende ao dono, que as põe junto com os limões numa sacola de plástico. "O correio veio anteontem", ele disse. Ela se vira para a porta, olhando numa fração de segundo para o homem moreno, que também olhou para ela. A água da chuva golpeava as telhas, escorregava pelos beirais e gotejava profusamente por todos os lados da casa. O gato estava sumido. O homem louro pediu a segunda dose e observou: "Chove mais dois dias". Ela permanece no balcão, como se estivesse disposta a esperar esses dois dias ali, de pé. Houve um silêncio de mais de cinco minutos. Depois, se escutou o homem grisalho enchendo pela terceira vez o copinho de cachaça do louro de chapéu, que suspirou: "É...", bebeu tudo, bateu com o fundo do copo vazio no balcão, pagou a bebida e saiu, meio cambaleante, acenando com a mão direita levantada, embora já estivesse de costas para os outros. Na rua, esteve uns segundos sob a chuva, antes de pegar o guarda-chuva que deixara junto à parede do lado de fora, e partiu. O homem moreno arrastou uma cadeira, virando-a para que ficasse de lado em relação à mesa - e a ele -, e disse a ela: "Sente-se, senhora. A chuva vai demorar". Ela olha de soslaio para o dono do armazém - que ergueu um pouco as sobrancelhas -, muito rapidamente, e senta, com as mãos sobre os joelhos. O homem grisalho, então, depois de alguns minutos, trouxe um copo e o colocou sobre a mesa deles. Não disse uma palavra, não olhou para ela, simplesmente executou o gesto, voltou ao seu posto de comerciante e acendeu uma lâmpada que iluminava a área do balcão. Tampouco o homem da mesa fez algum comentário nem perguntou nada. Serviu a cerveja. Ela não pode sorrir. Alcança o copo devagar, leva-o à boca, segurando-o firmemente para não causar nenhum tremor, e bebe. De repente, lhe veio um relâmpago na mente, quase uma imagem formada, ainda em borrão, que a perturbou. O sabor da bebida. Ela olha o homem com uma espécie de espanto que, no entanto, não o impressionou. Ela toma outro gole. Era como se quase lembrasse, mas não sabe do quê. Reflete, mas sem matéria. Termina o conteúdo do copo. O homem sorriu e lhe serviu um pouco mais. O dono do armazém trazia uma expressão entre divertida e incrédula. Então, como se tivesse se dado conta de alguma coisa, pegou um pano e começou a limpar o balcão. Ela olha a chuva lá fora, depois para o assoalho de madeira. O homem moreno quis observá-la mais detidamente, mas, afinal, o fez rapidamente. Depois, virou-se para ver os artigos à venda nos mostradores sobre o balcão e alguns produtos pendurados no teto. Ela pode analisá-lo um pouco, com cautela, prestando atenção a algum indício de que ele voltasse a olhar para a chuva, então seus olhares se encontrariam. Mas ele ficou como estava e se deixou ver com certa facilidade. Seguramente, não era daquele lugar, estava de passagem ou, talvez, comprando algum imóvel, hipótese, entretanto, pouco provável no meio do inverno. Vestia-se de modo simples, mas elegante e até sóbrio. Não usava aliança. Devia ter uns cinqüenta anos, talvez menos, e era atraente, não exatamente bonito, mas de olhos vivazes. E, o que indicava que ele não fazia parte daquele pequeno mundo da praia, era silencioso. Ele se virou, com os olhos para baixo, e ela tem tempo de olhar para frente e agarrar o copo de cerveja. Bebe. Ele acabou de esvaziar seu copo. No espaço exterior, o tempo foi ficando cada vez mais escuro, as árvores se intumesciam de água, a noite se avolumava antes do tempo normal, com rapidez. A mulher do dono do armazém surgiu dos fundos da casa. "Mais uma cerveja, doutor?", perguntou o dono. "Sim, por favor", o homem respondeu, sem olhar para ela, com uma voz que parecia feliz, não dando nenhuma importância para a chuva, para a noite iminente ou para o excesso de silêncio. Ela se levanta. A escuridão avança com força, a estrada estaria ainda pior, era hora de ir. Dirige-se ao balcão para pegar suas compras. O homem moreno disse: "Senhora, eu a levo em casa. Chove muito... Não deve morar longe, não é?". O homem grisalho, entregando as compras a ela, falou: "A casa dela é aqui perto", enquanto ela olha para ele séria, se volta, dá um sorriso frio ao homem moreno, agarra o guarda-chuva e sai no meio do aguaceiro.

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Ela caminha a passos lentos e lhe agrada estar assim sob uma chuva incessante, com algumas lâmpadas acesas nos postes iluminando um pouco a massa cinzenta de água e nuvens dentro da noite. Chegava a ser aconchegante esse passeio forçado no tempo tempestuoso, durante alguns minutos, só para ser melhor ainda a entrada em casa tirando as botas e as meias, pendurando a capa de chuva num prego na entrada do banheiro e deixando o guarda-chuva na porta da cozinha, para depois tirar a roupa, tomar um banho quente e vestir-se com uma blusa quente e umas calças velhas, cômodas, para então sentir a fome que advém de alguma incursão fora de um dia comum. Mas o que a levava a esse aconchego era a pressão de uma circunstância qualquer, o ímpeto inadiável da partida, sem demora, como se houvesse um compromisso que, na verdade, não havia jamais, e a pressa apenas a lançava para dentro de si mesma, no meio de um redemoinho que também mexia com sua memória, a chuva na praia, a noite fria e escura, o sabor da cerveja, o fogão a lenha. Assim, o dia se completava por um instante, para em outro já apresentar suas fissuras, suas perdas possíveis, carregado de esperas num tempo alargado pelo ócio e pela solidão invernal. Tudo isso, de certo modo, postergava o fim do caminho, esticava esse tempo inchado de água e de noite, mas também cortara o momento da cerveja no armazém e a arremessara à travessia até chegar ao seu corpo, à sua casa, prensada entre o ficar e o partir, assim como algo a pressionava a calar e, ao mesmo tempo, agora, a sair do silêncio. De repente, a urgência em chegar se instalou nela para forçá-la a expressar - mas o quê? - essa mancha pesada que se espalhava sem controle por seus poros. Ela anda mais depressa, tem cuidado com os buracos na estrada, e percorre acelerada a distância até avistar sua casa, toda apagada, pois esquecera de deixar uma lâmpada acesa. Abre a porta, entra, acende a luz. Volta ao espaço imóvel, fixo, ondulado apenas pelo ritmo dos dias e do mar. Encara o fogão, terá que reavivar o fogo, terá que cozinhar. O próprio estar, simplesmente estar ali, sobrevivendo, tinha suas obrigações, seu lento e contínuo desenrolar de gestos com a finalidade de preencher as horas com necessidades. Ela tira as botas e as meias, vai ao banheiro, se despe e toma uma ducha quente. Volta descalça à sala na ponta dos pés, sentindo o úmido frio que vinha do assoalho, e põe meias grossas e uma roupa quente. Trabalha no fogão a lenha para que o fogo retorne e decide cozinhar nele. Agora, sente o frio acumulado por toda a tarde, pega a garrafa de cachaça, hesita em beber mais, mas acaba servindo uma dose num pequeno copo e toma um gole. Prepara a comida rapidamente, afoita, como se fosse receber alguém. O fragor da chuva nas telhas prosseguia. O frango começou a chiar na panela, o arroz fervia, o ambiente se aquecia a ponto de embaçar os vidros das janelas. Quando ela senta para comer, pára, olha tudo, respira fundo, começa a jantar com fome e aquece seu corpo. Toma mais um gole da cachaça e se sente levemente tonta. Acaba de comer, leva o prato e os talheres para a pia e senta na cama, olhando para o fogo e sua impermanência viva. Trata de lembrar-se de algo, mas não consegue. Ainda havia um pouquinho de bebida no copo, mas ela deixa-a para mais tarde. Vai procurar um livro, recorda as cartas fechadas, escolhe um volume de poemas e abre-o ao acaso. Volta para a cama e lê durante um bom tempo, sempre demorando-se muito numa mesma página. O que ela lê é a "Oitava elegia de Duíno", de Rilke, que a perturbou um pouco. Ela fecha o livro, olha a capa, abre-o novamente, manuseia-o como se segurasse um pedaço de madeira polida, cheira-o, como sempre faz com os livros, esses objetos inusitados, esquecidos nas estantes, mas vivos. O tato lhe lembrou o copo de cerveja, úmido e frio, e o próprio sabor da cachaça agora em sua língua, como a recuperar o sabor da cerveja perdido há tempos, algo entre um sonho de verão e um contentamento difuso, que ela, agora, não pode apreender. Então, num impulso, toma toda a cachaça do copo. Rilke. Ele quase lhe ardia no corpo, como a bebida na língua. Ela sai da cama, procura uma vela e a acende. Apaga a luz elétrica, tira as calças e a blusa, vestindo por baixo somente uma camiseta, e volta para a cama, cobrindo-se com os cobertores e observando as chamas no fogão. Só havia o ruído da chuva, nesse momento mais fina, e o da lenha em esporádicos estalos. O calor do corpo, aquecendo a cama e os cobertores, lhe dava a sensação de entrega e sonho. Nesse espaço cálido, vinha um resquício inquieto de perigo, uma minúscula tensão que se apoderava da calma para provocá-la e, por que não, até diverti-la, num risco latente que ela lembra, agora, na quietude da noite lenta. Espreguiça o corpo. Fecha os olhos, e em sua escuridão intensa abraça a chuva e o fogo. Com a mão direita, levanta um pouco a blusa e roça a região do umbigo. Um pequeno arrepio percorreu linhas invisíveis, como se o vento houvesse penetrado ali e dissolvido sua fúria em mínimas carícias. Desce mais a mão e desliza sobre a colcha. Toca as coxas, que ainda estavam um pouco frias. Estica os pés. Sente um calor não sabe de onde. Alisa o algodão da calcinha e abre as pernas. Assim, fica alguns minutos. Depois, tem que escorregar a calcinha pelas coxas, não tirá-la totalmente, mas mantê-la como um limite que as pernas não pudessem transpor, presas nesse espaço estipulado pelo desejo. Sente seus pêlos, enfia a mão por ali e começa a afagar seu sexo muito lentamente. Não pensa em nada concreto, abre os olhos para a dança das chamas, movimenta a mão na cadência necessária, ininterrupta, crescente, como há tempos não fazia. Foi tomada por uma quentura súbita. Mais movimentos da mão, mais as coxas se levantavam, forçando as costas e as nádegas no colchão, erguendo os cobertores, tudo limitado pela calcinha que não chegava aos joelhos, tensionada em seu elástico. Então, antes do desenlace, ela se cansa. E deixa a mão ali, completamente úmida, em sua próprio calor. Depois, antes que a vela acabasse, dorme.

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No outro dia, ela acorda tarde, embora a chuva tenha se dissipado e o céu estivesse completamente azul. Fica mais tempo na cama, fecha os olhos, só os abre de vez em quando, enquanto escuta, longínquo, porque fraco, o ruído do mar. Lembra vagamente de um sonho, ela caminhando por uma casa ampla, com um longo corredor, pé-direito alto, janelas enormes, assoalho de madeira, varanda com bancos de madeira e um pátio com uma parte de piso antigo, além de umas poucas árvores secas, pois devia ser inverno. Ela está sozinha nessa casa, mas tem a sensação como de felicidade, do prazer de percorrer as salas e os quartos, e ver por suas janelas abertas fragmentos do pátio silencioso. A casa era cinzenta, talvez tivesse alguma parede de pedra, e parecia estar na cidade, numa rua pavimentada, embora, no sonho, isso não fosse visível. Quando desperta, nos primeiros segundos ela tem dúvida sobre onde está, em que casa, em qual cidade, e só consegue ir abrindo os olhos aos poucos e perceber a claridade forte em contraste com a chuva escura do dia anterior, e se dá conta de que está em sua casa de madeira, nessa praia um tanto isolada, e as ruas próximas eram de terra, ao seu lado estava o fogão a lenha, a vela consumida em cima da mesa, tudo como estivera antes que ela se entregasse, na noite anterior, ao sono, menos o barulho de um motor se aproximando em meio à sua sonolência matinal. Alguém a chamou, batendo palmas. Ela quase se assusta e espia pelo canto da janela. Um homem moreno, de uns cinqüenta e poucos anos, de boné e luvas grossas, estava ao lado de uma caminhonete. "Senhora!", gritou ele, "a lenha!". Ela põe a cabeça na janela, e o homem a viu. Então, ela vai se vestir. O homem começou a retirar os sacos de lenha do veículo e colocá-los perto da entrada da casa. Ela abre a porta e indica com a mão o fogão. O senhor entrou, empilhou três sacos ao lado da cesta, voltou, trouxe mais dois sacos, se despediu, entrou no carro e partiu. Ela prepara o café, e degusta o pão e a manteiga, manjares, àquela hora, com sabor de manhãs ensolaradas, de suficiência. Mais uma fatia de pão, mais uma xícara de café quente com seu vapor convidativo. Depois, ela aproveita o Sol para sair, apesar do frio. Resolve acender o fogão em outro momento, não usar a lenha já - como se estivesse adiando um compromisso, fugindo da sua inexorabilidade, para gazear, vagar pelas areias da praia, desfrutar um pouco de frio. Caminha para o mar. Em casa, tem o necessário, do fogo ao alimento. Não havia o que comprar de imediato nem o que resolver. Então, a ida a praia. Ela se deixa quase empurrar pelo vento sul, quando chega lá, e anda a favor dele, com o Sol em sua face direita e toda a extensão da praia pela frente. Sem pressa, pois não havia, propriamente, aonde chegar. Apenas a passagem de um instante a outro, lendo a gramatura casual da areia e seus dejetos: conchas, penas, pedras, tábuas carcomidas, flores arrancadas pelo vento. De novo, grupos de albatrozes se antecipavam a seus passos, deslocando-se mais para a região central da praia, em meio à espuma. Mais adiante, ela encontra pingüins mortos e prefere não olhar para eles. Apesar do Sol, ainda fazia frio, a umidade era gelada e chegava, por vezes, a espetar a pele. Ela, no entanto, goza o tempo. Anda um pouco de olhos fechados, como gosta de fazer, e sempre, nesse primeiro momento, tem um certo desequilíbrio. Abre os olhos, caminha alguns metros, depois fecha-os de novo. Aos poucos, se acostuma e pode andar trechos maiores sem enxergar a paisagem. Algum pássaro gritou. O som do mar estava alto pela força das ondas. Ela passeia cerca de um quilômetro de praia e começa a voltar. Agora, o vento estava contra, era preciso maior esforço. Mais uma vez, ela fecha os olhos, protegendo-os do ar áspero e nervoso. Após uns minutos, enxerga de novo o lugar de onde tinha saído, perto da entrada para o pequeno caminho até sua casa, e se deita por ali. O Sol, acima do mar, estava de frente para ela. Tira o casaco, coloca-o na areia todo dobrado e encosta a cabeça nele. Siris começavam a sair da terra. Dois trinta-réis sobrevoaram as primeiras ondas. Ela recebe o pequeno calor do Sol no rosto. Às vezes, ela pensa em como seria bom se ela tivesse comida pronta na hora em que pressentisse uma fome, mas as opções - comer num restaurante (não havia nenhum tão perto de casa, só no povoado) ou ter uma cozinheira - não lhe agradavam e tornavam-se economicamente inviáveis. Percebe, de repente, uma mancha atrás das pálpebras fechadas, uma quase-sombra se interpondo entre ela e o Sol. "Bom dia", disse alguém. Ela se ergue num grito contido, as palmas das mãos na areia. Era o homem que tomava cerveja no armazém outro dia. Ela o encara como se fosse uma condenação, não sabe o que fazer, põe a mão direita sobre a testa para poder vê-lo melhor, senta dobrando as pernas. "Desculpe incomodar você", ele disse. Ela olha os albatrozes ao longe. "Faz frio. Espero que tenham entregado sua lenha." Ela compõe um sorriso falso. Ele possuía um modo de não fazer nenhuma pergunta direta. Mas os olhos eram sempre serenos, sempre à espera, sem o aturdimento da seqüência das horas. Então, ele sentou ao lado dela, também de frente para o mar. Usava bermudas e blusa escuras, e estava descalço. Não usava óculos. Ela não se move, permanece entre o receio e a dúvida. Tem medo de que ele lhe fale, lance uma pergunta no ar pescando alguma frase dela - mas qual? -, puxando de um poço a inconsistência de uma fala tapada, abafada. Como se não fosse possível agir sem falar, a sintaxe corroendo as ruínas do ser, do estar infante num mundo crescido, já velho demais. O fosso do silêncio. Daí o seu incômodo no corpo, prestes a reter em si o absurdo daquela presença falante, mas que se afigurava ser como um espelho com véu, uma faísca em sua memória embaçada por tanto tempo e passado. Ela se arma com uma coragem que esquecera, mas recupera agora, e olha diretamente para ele, que via o mar. Olha para ele, insiste, pronta a enxergar ali um desvendamento qualquer. O homem moreno ficou assim, impassível, avesso a alguma curiosidade maior. Estabeleceu para si uma posição e a guardou, como um pássaro num fio. "O mar", ele falou. E mais nada. Ela pensa se ele não a preservava como um castelo de areia. Ele olhou para ela minutos depois, como se suas palavras ainda reverberassem. Ela fez que sim com a cabeça, com um sorriso para dentro. Ele relaxou. O Sol foi subindo, o frio diminuiu por volta das onze horas. Algumas gaivotas, agora, chegavam mais perto deles. Ela quer ir embora, mas teme ofendê-lo. Deita de novo, de olhos cerrados, para sair de si. E assim se aquece por um bom tempo. Depois, abre os olhos, tapa-os com a mão, se ergue, vai se acostumando aos poucos com a férrea luminosidade do fim da manhã, e percebe que ele já tinha ido embora. Sente uma espécie de alívio, levanta, se espreguiça um pouco e começa a caminhar de volta para casa. Algumas poças d'água ainda estavam por secar. Quando chega em casa, tira as botas e deixa-as na entrada. Abre todas as janelas e as portas, expondo a moradia à brancura do dia e à sua calidez progressiva. O mar chegava com seu som de ondas batendo. A lenha aguardava em seus casulos o momento de novamente aconchegar o tempo no interior de um espaço autônomo, sozinho. Era o caso, então, de cozinhar no fogão a gás, e é o que ela faz. Lembra que não tem cerveja em casa, é que quase não lhe apetece essa bebida no inverno. Em compensação, tem os chocolates. Talvez seja o caso de comprar umas tainhotas para fritar. Ela pressente essa sensação diáfana de ir a um pequeno mercado e escolher peixes, ao final da manhã, trazê-los frescos para casa e fritá-los, cozinhar o arroz e preparar batatas, as cores escandalosas das saladas, a transparência dourada do azeite. De repente, ela sente isso, o cheiro da carne do peixe, que lhe dá vontade de mordê-lo, assim cru, antes que o fogo a transforme. E há mais alguém que comerá esse peixe. Havia uma imagem lavada pelo tempo, úmida de imprecisão e de vertigem, sobreposta a qualquer coisa que se amontoou nesse volume de anos deixados, não para trás, mas para dentro, em alguma inconclusão eterna. E o que havia, ela não sabe, mas remoía o resquício de uma cena, uma fala, plausível, mas ininteligível, dentro da turbulência aquosa das semanas e dos meses. Então, tudo pronto, ela senta para comer. A casa aberta. O cheiro de terra e de ervas molhadas agora secando. A fugacidade aproximada do inverno, que ainda consistiria de alguns quilos de lenha queimando a espera, mas acabaria em um mês ou um pouco mais, então a casa teria que se abrir mais vezes, as chamas do fogão deixariam de se mostrar à noite a olhos densos e famintos, o mar se aqueceria chamando para o banho, e as andorinhas começariam a chegar. Agora, no presente espesso, acaba de almoçar. Está alimentada para a duração da tarde, até o Sol cair no oeste. Quem era esse homem? A luz ao máximo sobre a casa, as sombras curtas, encostadas nas coisas. A louça vai ficar para ser lavada mais tarde. Era isso. Isso era um homem, esse. Tinha os olhos e cheiro de homem, surgiu no meio do mundo, porque ele existia ali, no espaço mais amplo de tudo, e também naquela praia, naquele inverno. Ela não se convence, mas é uma evidência. Um homem como desses que carregam lenha. Mas, não. Ele era ocioso. Teria seu nome, como todos. Compraria coisas, como a cerveja que tomou, pagaria serviços. Além do mais, ele caminhava. Era um homem, sim. Atarefado num ócio suave. Ela tem um ímpeto de força e começa a abrir dois sacos de lenha, eram difíceis, de um plástico transparente de embalar cereais ou algo assim, então pega uma faca e rasga a borda dos sacos com violência, despeja toda a lenha de um deles no cesto, do outro, ela vai tirando os pedaços e empilhando ao lado. É toda a tarefa que desabava com ela no seu ápice: carregar coisas. Como uma abrupta ação no meio do nada. Depois, arruma um pouco os objetos, tira o pó, passa um pano branco sobre a superfície esquecida das coisas, varre, seus músculos numa cadência feliz, lembra de uma música, bate o tapete na grama, tira a gaveta com as cinzas do fogão. Pega a toalha de banho e a estende numa corda de plástico - o seu varal. Senta na cama e suspira. Havia uma urgência a perseguir seus segundos. Ela levanta e vai até a estante, observa os livros, escolhe um que não abre faz tempo. Senta na cadeira, apóia os antebraços na mesa e lê. Aos poucos, vai descobrindo uma obviedade que cancelara em si mesma: é que cada verso era, só ele, uma partida dali, uma consistência que perfurava o dia e se incrustava no corpo, leve e firme, engrossando uma realidade tão palpável como aquele monte de lenha. Mas tudo sem a avareza da ação. Tudo sem o alarde interminável da cidade e sua sina de força. Não, ela e aquele livro erguiam a face do mundo num instante pleno, no coração de sua própria vida, num real que era um enorme bloco. Então, tudo se condensou num verso que lastreava sua situação na cadeira, na casa, na praia, no planeta, e ela pega o caderno e escreve: "Pus o meu sonho num navio - Cecília Meireles". E pára, ela mesma, para sonhar. E em seu sonho, vinha um homem que ela não conhece, mas lembra, e não compreende. Ele a provocava numa mansidão marota, juvenil. Ela tem medo e volta a ler, bem devagar, no ritmo do Sol, que descia rumo ao final da tarde. Põe o livro sobre a mesa e vê, pela janela, as gaivotas indo em direção ao norte em pequenos bandos. De novo, começaram a surgir nuvens brancas no horizonte. Ela fecha o livro e mantém o caderno aberto. O mar e o céu foram escurecendo em tons de azul. Uma hora depois, ainda sentada, ela sente frio. Retoma, nesse instante, um cansaço antecipado - ou conhecido - e se movimenta, como alguém que não quer partir, até o cesto de lenha. Apanha alguns gravetos, um pouco de jornal, os fósforos, e inicia o fogo dessa noite. Coloca os primeiros pedaços de lenha e vê as chamas crescerem. Não sai dali. Diante daquele vermelho quente, ela escuta o ar, que subia com força pela chaminé. E enxerga - ah, o que ela vê... - a beleza fugaz de cada labareda e sua fixa imprecisão, rodeada de tempo e calor, que avançava pelo miolo da noite. Uma substância tão urgente e delicada, mantendo-se da carência das horas, o mero seguir, mas insuflado pela potência de uma chispa. O sonho. E esse homem... Ela levanta rápido, tateia na parede em busca do interruptor, acende a luz e vai até a estante, desloca uns livros, folheia um e outro, e acha as cartas. Dois envelopes com o mesmo remetente. Talvez, ela recebesse cartas num passado que era quase mítico, mas não nesta vida que era sua desde um tempo indeterminado. Escrever para alguém. Ela tem um calafrio, fecha o livro, guarda-o e volta a sentar num lugar de onde pode ver o fogo. Tem fome e vai preparar uma massa com alho, tudo com a luz acesa, mas depois come à luz de uma vela e continua assim até ter sono. Quando vai deitar, o fogo ainda está bem vivo, e ela fica admirando as chamas, a portinha do fogão aberta, os sons da lenha, o ruído agigantado do mar trazido com o vento, as sombras moldadas pela vela.

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O dia estava claro, com nuvens pequenas, distantes umas das outras. Ela acorda vindo de um sonho de que já não se lembra, ávida por resgatá-lo e saboreá-lo, mas foi impossível. Apenas um vestígio de prazer, como uma mancha confusa, despertou com ela, e esse sabor de um doce e de um risco tornava a manhã repleta de antemão, dentro do seu casulo sem fatos. Um bando de bicos-de-lacre avisou sua proximidade, e a mínima música que compunham atiçava as hastes das gramíneas. Ela sai um pouco do aconchego das cobertas, se ergue e olha pela janela. Eram mais de trinta passarinhos rosados com seu bico escarlate, numa atividade que não tinha correspondência naquela área. Ela sorri. Quer ficar ali na cama vendo os bichinhos e tomar um bom café, mas não era possível, pois tem de levantar para prepará-lo. Então, a agulha da memória se moveu - uma bandeja com pães e doces apetitosos -, e a imagem varreu suas idéias naquele momento, fixando-a no sabor do café e na visão daqueles pássaros rosados. Sai da cama e faz o café com pressa, corta fatias de pão, distribui a manteiga por elas, coloca o açúcar na xícara ainda vazia, verifica a temperatura da água. Ainda não. Coador de pano, pó de café, bule. Passa a bebida com sua fumaça doce e leva-a à mesa. Vai rápido até a cama e senta. Os bicos-de-lacre já tinham partido. O café da manhã lhe mantinha por um bom tempo entretida com o instante, sem o alvoroço de um horário ou compromisso. Cada gole de café preto encorpava a existência, dilatava o dia. O pão alimentava e adiava o mundo externo. Essa refeição estendida sem projeto como que continuava um sonho e seu sabor. Ela se entrega, assim, a essa gula de si, imersa na ternura da casa e sua manhã luminosa. Até o momento em que o café acabou, não havia mais pão no prato, o dia exigia um afinco no que quer que fosse. Ela lava a louça, calça as botas e sai. Anda até a praia observando se havia bicos-de-lacre. O que vê são as pequenas flores de inverno. O mar estava mais calmo, não havia vento, as areias tranqüilas, fixas, ainda úmidas, recebiam o desenho dos pássaros e dos siris caminhando. A ilha, lá fora, estava azulada, e seus rochedos pareciam um navio ancorado. Ela começa a passear para o lado norte da praia, olhando para o chão e seu inumerável tesouro de pequenos despojos. Gaivotas pousavam longe. Um gavião-carijó planava sobre as dunas. Ela vê, mais à frente, uma mancha amarelada na praia. Caminha devagar. Aos poucos, percebe que a mancha estava se aproximando. Ela pára, hesita antes de voltar, tem uma espécie de vergonha por isso, olha o mar, vira de costas. Retoma a caminhada, displicentemente, na direção sul, tendo as dunas com sua vegetação à direita. Descobre uma bela concha intacta no chão e se abaixa para juntá-la. Nisso, olha para trás e vê que alguém chegava mais perto. Esse homem. Ela continua o passeio, mas ele caminhava mais rápido, e houve um ponto em que ele esteve apenas uns dez metros atrás dela, que não faz menção de percebê-lo, de acolher sua presença, apenas se deixa levar na pesquisa, sem conseqüências, de conchas e restos de qualquer coisa. Ele chegou perto dela, uns três ou quatro metros à esquerda, entre ela e o mar, e quase pararam juntos, quando ele disse: "Um pingüim". Ela olha para trás, para as dunas, circula o olhar pela vegetação rasteira. "Um pingüim vivo", ele completou. "Está nadando." Ela se põe ereta, esticada, a cabeça querendo sentir, sobre qualquer possível obstáculo de ondas, a presença da ave estrangeira. Lá estava ele, depois das primeiras ondas, visível quando a rebentação aparecia, e voltava de um mergulho. Um pingüim vivo. Ela vibra. O homem disse: "Ele não sobrevive por aqui. Dificilmente, consegue uma corrente para voltar ao sul", como se quisesse dissuadi-la de uma esperança, algo que a distraísse dos dias e da visão dos pingüins em esqueletos pela areia. Ela não olha o homem, se fixa na ave como uma pequena vingança. O animal desapareceu num mergulho e de novo veio à tona uns segundos depois, metros à frente. Assim, continuou por uns quinze minutos. Depois, foi se afastando para o sul. O homem continuava ali. Era como uma presença calcada numa vizinhança arisca, mas inofensiva. Não se ouvia sua respiração, dele vinha um consentimento dado ao instante, silencioso, envolto na música que o mar mandava para a praia. Ela o aceita ao lado como se ele fosse uma ave se alimentando a uma distância prudente. Ele tinha uma forma de emudecer e de não olhá-la, disperso pelo peso das formas amplas que a praia inteira lhe entregava à visão, que parecia intrigante. Esse homem não perguntava nada, sua fala era um comentário sobre as coisas, passando ao largo delas, mantendo-as intactas. Lá fora, despontava um navio cargueiro, no lado sul. Ela o vê. Ele disse: "Já estive num navio como esse". Ela olha de soslaio para ele, incrédula. "Eu não tinha dinheiro para viajar de avião. Eu precisava partir..." Então, ela suspira. O Sol já estava mais alto, a areia, seca, pássaros buscavam comida. Ela caminha um pouco mais, até chegar ao ponto de onde tem de seguir para casa. Ele veio devagar, atrás dela, em silêncio. Ela pára. Não sabe o que fazer, como se despedir sem o incômodo de um reconhecimento que ela não quer oferecer, estranhos que eram nesse lugar isolado. Ela o olha. Ele falou: "Apareça no armazém", mais para o mar do que para ela, sem nenhum sorriso irônico, sem ênfase. Ela o deixa na praia e segue para casa.

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O fim do inverno investiu uma fúria inesperada. Primeiro, começou a soprar um vento vindo do sul, início de uma frente fria que tinha, como sempre, origem na Antártida. Nuvens cinzentas se aproximaram, cobrindo o céu e encrespando o mar. As areias se moviam, as folhas se perdiam em redemoinhos nas ruas de terra. As gaivotas, os gaviões e os urubus, durante um tempo, ainda aproveitaram esse momento inicial do ar e planavam. Depois, a força do vento aumentou, trazendo blocos de nuvens mais escuras, forçando com ruído as frestas de todas as portas e janelas, golpeando com estrondo partes de madeira das casas e até arrancando telhas sem amarração para o lado sul. A temperatura baixou a oito graus durante o dia, e a chuva despencou, inicialmente, fina, em seguida numa torrente avassaladora que lembrava os aguaceiros de verão. Ela permanece em casa olhando pelas janelas a natureza em ação desordenada e violenta. Seus olhos recolhem do tempo a intensidade de um abalo, vislumbrando, por entre a malha de chuva escorrendo pelos vidros, o final dessa estação irrequieta. Era necessário acender as luzes, mesmo sendo dia, mas ela se acomoda à clausura cor de chumbo das horas, apenas fendida pelas chamas do fogão a lenha. Anda com o casaco e o gorro de lã dentro de casa. Estende ao máximo o café da manhã, a caneca quente nas mãos, o pão tostado no fogão, à frente do calor acolhedor do centro da casa, como um núcleo de estar. Só sai dali para ir ao banheiro, quando tem de vestir a capa de chuva e cruzar rápido o vão que o separa da peça principal da casa, fustigado pelos grossos pingos frios. Quando volta, sente o cheiro de feijão, uma fisgada visual que atravessa seus olhos, quase um arrepio, detendo o corpo no gesto de pendurar a capa. Sente o cheiro e saliva, àquela hora da manhã, com a memória vazia abalada por algum grão de tempo congelado na espera. Nessa hora, o frio ganhava as paredes da casa contra a força do fogão a lenha, a chuva caía sem a mínima indecisão, o silêncio das coisas em seus lugares cimentava um dia inerte, tudo parecia estar acontecendo uma segunda vez. Então, agarrando-se a esse instante que a devolvia a uma vaga lembrança que não conhece, ela vai cozinhar feijão numa panela de ferro, sem se importar com as horas que o cozimento consome sem ter deixado os grãos de molho na véspera. Era preciso carregar o fogão de mais lenha, durante muito tempo, até que as chamas fizessem o feijão ferver e o vapor escapar pelas bordas da tampa, ininterruptamente. Mais uma fonte de calor, e os vidros das janelas acabaram criando sua névoa própria, em contraste com a água gelada da rua, o ar da casa foi se aquecendo lentamente, o aroma do feijão dominava aquela manhã propícia ao apetite. Ela come, três horas depois, como se estivesse festejando ou tivesse trabalhado desde cedo. Depois, se encosta na parede da cama, não disposta a dormir, mas a observar a neutralidade do dia em sua calma escura. Alguém gritou lá fora e, imediatamente, bateu forte na porta. Ela tem um sobressalto, uma sensação de urgência que a faz esquecer de olhar pela janela para verificar quem era, e vai abrir a porta. O carteiro, com um guarda-chuva, além da capa, lhe estende rápido um envelope e se despede. Ela fecha a porta, olha a correspondência amarela, respingada de chuva, pequena, para conter, talvez, um cartão-postal ou um convite qualquer. Vira-o e vê o mesmo remetente das outras cartas. Decide guardá-lo junto aos outros envelopes fechados, vai até a estante, abre um livro e enfia a carta ali. Quando está se dirigindo à cama, pára, num segundo que a intrigou, volta à estante e busca o envelope recém-chegado. O que enxerga, agora, e que a tinha perturbado sem que ela atinasse o que era, é o carimbo do posto do correio daquela mesma localidade em que morava. Guarda rápido o envelope e senta na cadeira em frente à mesa. Olha os lados do mar, abre a gaveta num gesto demorado, mecânico, tira o caderno e abre-o. Pega uma caneta que está sobre a mesa, e só então olha a página em branco, volta a olhar pela janela, por fim se concentra na mão direita sobre o papel e escreve: "Medo".

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No outro dia, ela acorda com raiva. O sonho - de que não lembra os detalhes, somente passagens com a força de uma ventania - lhe deixa essa seqüela matutina de certa amargura sem causa. Levanta rápido, vai ao banheiro gelado, volta e começa a se atarefar com o café da manhã e com a louça, como se muitas atividades estivessem esperando por sua energia naquele dia cinza. Tinha parado de chover. Mas o fim gelado do inverno estava incrustado em cada grão do solo, em cada folha de gramínea molhada, pétala minúscula e caco de concha. A umidade de tudo lhe desgastava, desde o esforço em riscar um fósforo várias vezes, antes que conseguisse dele alguma faísca, até a água da torneira, que gelava as mãos, picando-as com farpas invisíveis. O pão estava acabando. Para o almoço, ela tem feijão, mas não frango. Do bacon, restava um pequeno pedaço. Havia roupa suja, mas ela não se propõe a lavá-la com esse tempo. E ainda era preciso retirar as cinzas do fogão a lenha, reacendê-lo e mantê-lo vivo durante o dia. Uma febre lhe advinha, não sabe de onde, perfazendo uma trajetória muscular e nervosa. Não era algo que a motivasse a ler, a contemplar, mas devolver ao tempo a provocação de sua inércia. Então, ela resolve remover tudo de seu lugar resignado pelo hábito e sacudir sua muda existência: os livros, os papéis, os objetos de algum passado inexplicável, as roupas, os calçados, até a louça, tudo passou por uma revisão irada, destinada a limpar a casa de uma poeira irônica, maligna. No fim da tarde, mais escuro que em outros dias, ela se arma de coragem e toma um banho, precedido de uma friagem que coroava sua tarde determinada. Depois da trégua com o dia que foi o banho quente e relaxante, o café lhe restituiu a serenidade do inverno na praia quase desabitada nessa época. Mas o intervalo fora curto, o dia ainda podia render mais, e seu cansaço, em vez de levar seu corpo à cama, empurrava-o para fora de si e do espaço, de cara para o ar frio, depois da cauda da intempérie, que agora se transformara num anoitecer com as primeiras estrelas brilhando num manto negro sem Lua. Coloca o casaco, o gorro, as luvas pretas e as botas, mais um cachecol vermelho. Pára por um momento, como se não visse sentido nessa iminência retraída, dissimulada, que a jogava num alvoroço próprio, em meio a quatro paredes tão seguras de si e agora contendo coisas tão bem arrumadas em seu sossego de objetos. O fogo ao seu lado lançava fagulhas. A primeira coruja da noite gritou. Do mar, vinha algo que se escutava como trovões abafados ou um velho motor de navio coberto com lona. Ela abre a porta e sai. Percorre o caminho com a precisão de quem vai cobrar uma dívida. De longe, já se viam as luzes do armazém. Quando ela chega à soleira da casa, dois olhares a enquadraram: o do gato amarelo, deitado ao lado do balcão, desinteressado e alheio, vindo de um sono longínquo, talvez, e o do homem moreno, sentado na mesa da esquerda, com uma garrafa de vinho tinto e um copo de vidro comum, que pareceu, nesse momento, esperar uma resposta a uma pergunta que sequer havia sido formulada, mas logo endireitou-se na cadeira, assumindo uma feição já sem surpresa, e disse: "Bem-vinda". Ela entra no armazém e se apóia no balcão ao lado do gato. O dono apareceu, cumprimentou-a, e olhando de relance para o homem moreno, falou: "Vinho dos bons. Foi o senhor que trouxe". O homem logo acrescentou: "Traga um copo para a senhora, por favor". Ela não se mexe. Era tão estranha a falta de um tipo de pudor naquele homem e, ao mesmo tempo, era tão natural, até atraente, que ele se dirigisse a ela como se já se conhecessem há anos, que ela, como numa hipnose muda, mas divertida, vai e senta ao lado do homem com sua garrafa de vinho tinto. O dono do armazém transpassou o balcão por uma portinhola e colocou o copo na frente dela. Foi o homem moreno quem a serviu. Enquanto o dono sumiu dentro da casa, ele levantou seu copo em frente ao dela e propôs: "Tim-tim". Ela pega seu copo, quase ruborizada, e toca o dele com uma delicadeza que seria um receio de quebrar os copos, se estes não fossem de vidro comum e resistente. Toma seu primeiro gole e saboreia o vinho aveludado e seco, antes de pôr o copo na mesa. O homem disse: "Eu imaginei que a senhora... Que você gostasse de vinho". Ela abre os olhos azuis para ele e, imediatamente, olha as mãos. O homem bebeu um pouco. "Estou, digamos assim, de férias", ele falou. "E gostei daqui." A dona do armazém veio de trás do balcão com um prato cheio de queijo cortado em cubos e alguns palitos. "Só temos isso!", disse, sorrindo, desculpando-se, e enquanto estendia o braço direito para pôr o prato na mesa, colocou a mão esquerda no ombro dela, que nesse instante retesa o corpo, imperceptivelmente, e logo sorri um pouco desajeitada. A dona voltou para o balcão, deu uma espiadela na mesa dos fregueses e foi para dentro. "Eu gostaria de viver assim", disse o homem. Ela toma outro gole de vinho, suas faces ficaram mais rosadas, ela tira o gorro de lã e expõe seus cabelos ouros, quase ruivos, meio cacheados. "Belos cabelos", ele arriscou. "Acho que você sempre gostou de cabelos compridos." Ela agarra o gorro de lã, mas se detém. Toma outro gole, sente o calor, olha a porta, onde encontra os olhos do gato amarelo, imóvel, sem piscar. E fixa seus olhos no olhar esverdeado dele, sorvendo ali a duração daquele instante estremecido e frágil. Então, ela se volta, resoluta, e come um pedaço de queijo. O homem sorriu. Ele bebeu um pouco mais de vinho e enfiou as mãos nos bolsos grandes do casaco de lã preto. O dono do armazém reapareceu e rabiscava qualquer coisa, ao acaso, numa folha de jornal. Ninguém passava pela estrada. "O silêncio do inverno", disse o homem. Ela olha para ele, sente um conforto prévio ao sabor do vinho tinto, pega a garrafa, coloca um pouco mais em seu copo e bebe. O homem sorriu de novo e comeu mais queijo. Ficaram em silêncio, até que acabaram de comer e de beber. Ela se levanta lentamente e percebe que está um pouco tonta. Vai até a porta e pára. Volta-se para o homem e o dono do armazém, e sorri. O homem moreno lhe diz: "Eu levo você para casa". Ela sai. O homem disse ao senhor grisalho: "Anote minha conta" e foi atrás dela. A noite se avolumara, fria, fechada em sua imensidão de estrelas. Ela coloca o gorro de lã. Ele começou a caminhar a uns dez metros dela e apressou o passo. Ela anda devagar, sem olhar para trás. No primeiro poste de luz, ele a alcançou e a acompanhou calado. Pôs as mãos nos bolsos e diminuiu a distância entre o seu corpo e o dela. A casa já estava próxima. Ela sente a respiração dele, e um pequeno tremor ia envolvendo seu corpo. Não tem calafrios, é o corpo todo que vai tremendo, primeiro suavemente, como se reagisse ao frio, mas na verdade era um espécie de frio interno, que aos poucos aumentava e provocava os primeiros golpes no peito, nas mãos, e ela toda treme. Chegaram à entrada da casa. Ela pára e põe a mão sobre a maçaneta da porta, que geralmente deixa aberta. Só então olha para ele e não consegue sorrir. Ele falou: "É uma bela noite". Estendeu a mão para ela: "Boa noite". Ela tira a mão direita do bolso e, tremendo, encosta-a na dele. Ele apertou a mão dela com sua temperatura cálida, olhando nos olhos dela, que tira a mão sem sobressalto, mas ainda trêmula, e entra em casa. Ele ainda a olhava, quando ela fecha a porta e, até ele ir embora, não acende nenhuma luz.

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No dia seguinte, ela acorda com uma mini-ressaca, pois não comera mais do que o queijo na noite anterior, e se dá conta de que esquecera do pão, que estava terminando. Levanta devagar e vai preparar o café. Havia um último pedaço do pão que ela mesmo fizera, como de costume. Quando termina o café, tem preguiça de fazer outro pão. Então, depois de vencer a modorra que tem desde quando sai da cama, decide se vestir e ir até o armazém. O dia, claro e frio, a estimulava a caminhar, a mover-se, aquecer o corpo num movimento sem finalidade. Quando ela chega lá, o gato amarelo estava deitado de lado, com as patas esticadas na direção da rua. Ela entra e, ao passar pelo gato, o vê rolando para um lado, olhando para ela, acompanhando-a, virando as patas na direção do balcão. Ela sorri. O senhor grisalho disse: "Bom dia". Ela aponta para o tipo de pão que quer, no balcão envidraçado. Ele pegou o pão e colocou-o num saquinho plástico. Ela agradece e se dirige à saída. O gato, na mesma posição, a observava com o rabo dos olhos, sem mover a cabeça. Então, ela se aproxima dele, pára, olha-o com curiosidade e uma ansiedade paciente. Abaixa-se devagar, sem mexer os braços. O gato rolou de novo para o lado dela e esticou uma pata. Ela move a mão direita até ele, muito lentamente. O gato se esticou mais e colocou a pata sobre a mão dela. Assim ficaram durante alguns segundos. O senhor grisalho observava-os, divertido. Então, ela se levanta, suspira e sai do armazém. Havia um ar frio que estimulava a caminhada. Um barulho começou a crescer, vindo dos lados do armazém. Um carro pequeno e branco, de duas portas, se aproximava. Ele diminuiu a velocidade quando chegou perto dela. Os dois pararam quase ao mesmo tempo. O homem moreno baixou mais o vidro e disse: "Bom dia". Olhou para o pão que ela carregava e perguntou: "Você ainda não tomou café?". Ela sorri e faz com a cabeça que sim. Ele também sorriu e propôs: "Então, vamos passear de carro? Não vou longe", e abriu a porta do outro lado. Ela faz a volta, entra no carro e olha para frente. O homem arrancou e seguiu a estrada, passou pela casa dela e avançou pela restinga, onde se podia ver uma coruja no chão, guardando, quem sabe, algum ninho, e pequenas flores brancas. Não havia nuvens. A estrada se afastava um pouco do mar. Havia poucas casas por ali. "Talvez eu compre um terreno por aqui", ele disse. "Estou há muito tempo vivendo em cidades." Ela olha a região do mar, vê gaivotas ao longe, ouve um bando de bicos-de-lacre voando rápido. "Quer passear até a cidade?", ele perguntou. Ela franze as sobrancelhas, faz que não, olha, diretamente, em linha reta e tem uma angústia tênue estampada no rosto. Ele não insistiu e continuou o passeio até chegar a um morro coberto de mato. Depois, entrou num pequeno caminho à esquerda, em direção ao mar, sem nenhuma casa. No final, havia dunas. Dali, se via uma fatia de mar. "Vamos descer?", ele falou. Ela abre a porta sem olhar para ele. Fica de pé olhando para as ondas, e seu cabelo se movia com o vento. Um gavião passou perto dali. O homem moreno foi caminhando para a praia, olhando os terrenos vazios dos dois lados da ruazinha. Ela o segue. Chegaram à praia. O mar estava bravio, de um verde escuro, acinzentado, na região entre a praia e a rebentação, e mais escuro, quase azul-marinho, na zona mais profunda. "Quero viver perto do mar", ele falou, sem se dirigir, propriamente, a ela. "Olhe. Um navio!" Ela olha. Era um cargueiro de casco escuro, grande, que ia lento lá fora, na direção norte. Um desses que ela vê, às vezes, por visitar a praia constantemente. "Um navio", ele repetiu. Então, ele fixou o olhar no azul-marinho ao longe e se calou. Ela o espia, às vezes. Ele permaneceu impassível por longos minutos, até que o navio desapareceu por trás da ponta norte da praia, que era composta por costões rochosos. Sua fisionomia se enrijeceu, seus olhos tinham algo de melancólico ou amargo, e ele se virou e voltou para a ruazinha deserta. Ela o segue. Entrou no carro sem falar, deu a partida, manobrou e pegou a estrada de terra. Quando estavam perto da casa dela, ela olha para ele, inquieta. Sem desviar os olhos do caminho, ele dobrou à direita e parou em frente à casa. "Obrigado pela companhia", ele disse, estendendo a mão. Ela aperta a mão dele e desce do carro. Antes de abrir a porta da casa, ele já tinha ido embora.

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Nessa noite, ela demora para dormir. Depois que apaga a luz e se deita, mantém ainda os olhos abertos. Tem uma sensação de desconforto, vira-se para o lado da parede e, depois, passados cinco minutos, para o lado do fogão a lenha. Observa o fogo. Junta-se mais aos cobertores e fecha os olhos. Havia ruídos dentro de casa. Um estalo na cozinha, algo roçando a parede de madeira, um minúsculo objeto que, talvez, tivesse caído, todos não identificáveis. Lá fora, algo zunia, o mar, por certo, emitia de longe sua força, algum pássaro noturno caçava. Ela tenta se lembrar de algo agradável, alguma cena doce de um passado, mas sua memória a empurrava para frente, vazia, lançando-a no torvelinho sem fundo do presente. Tudo se dissipava numa espuma, as imagens se desfaziam sem condensar-se em um fato, um evento. Então, ela tenta se concentrar no desenho de um dia futuro sem tropeços, coberto de uma sensação que a saciasse e devolvesse ao corpo um estado feliz. Joga para a primavera o que não existia no inverno, sonha com dias cheios de uma memória que se acumulará e servirá de alimento para noites incompletas, mas não sabe como imaginar, e as nódoas que entrevê de olhos fechados se desvanecem com os minutos gastos em tentar descansar o incômodo do corpo. Por fim, ela adormece. Tem sonhos conturbados, disformes, e no outro dia acorda tarde, trazendo no corpo uma ressaca sem álcool, envolvida num círculo de figuras densas, mas inapreensíveis. Fica na cama mais tempo, sentindo o ambiente numa escala gradativa, sua temperatura, a umidade, os sons produzidos pelo dia vivo, o que teria que fazer ou, simplesmente, deixar passar. Por que iniciar qualquer coisa, por que não estar dentro do tempo, em silêncio, à margem do que se chama vida, ou dentro do núcleo incomensurável do instante? Por que levantar, caminhar, agir, tecer atos com suas conseqüências? Por que não ser como o mar ou como o gato, dispostos ao presente sem memória ou futuro? Tanto a pensar, que ela se cansa. Tem vontade de ficar ali à espera de alguém que lhe sirva o café, que prepare a saciedade do corpo para o minuto seguinte, sem que ela tenha que se mover de dentro da quentura da cama. Como se uma mão lhe estendendo a xícara de café quente fosse uma entrega; o pão suave e crocante, aquecido na chapa, uma carícia. E esse toque mudo fosse suficiente para acomodá-la nos interstícios do dia que se estenderia até o crepúsculo. O instante lhe exigia, tanto quanto o emprego com seus horários fixos, suas regras e seus gestos determinados, a decisão de avançar ou permanecer, agir ou contemplar, sempre, a cada minuto inflado de opções, nas dezesseis horas em que ela está desperta na rede infatigável de possibilidades que o ócio dispõe a ela, que não o escolhe, que não sabe por que está ali no centro da reflexão, uma filosofia do segundo. Então, pula da cama. Cada gesto de toda a série que compõe o café da manhã posterga qualquer pergunta e instala o ato mesmo de se movimentar em sua fome de comida e tempo. Tudo se adiava. Tudo recomeçava no instante em que a necessidade impelia ao arranjo da realidade mais caseira, mais próxima, como se ela fosse um gato a comer e depois lamber as patas, como há séculos os felinos costumavam fazer. Toma o café com a imprudência de quem está alheia à quantidade, mas atenta à fome. O café preto, quente e adoçado, e o pão tostado, com manteiga espalhada para derreter um pouco sobre ele, combinavam como um manjar matutino celebrando - o quê? - a densidade do corpo, a carne que tremia na iminência de um deslocamento sísmico, a palavra que se desenovelava para saltar de repente. Come, termina a primeira refeição, lava a louça, escova os dentes, mas a ansiedade, que, por vezes, tenta engolir, não se esgotara. Mastiga a impaciência desse dia, descontente, ávida por inventar novidades. Existia algo que devia lhe dizer, falar o que ela não conhece, alguma margem para a loucura que é a chamada realidade, longe do mar e dos navios. Havia uma coisa que parecia se contrair no núcleo de um segundo, mas não explodia. O urubu planava lá no alto, lento. Ele não gritava. Consumia suas carcaças, silencioso, como um tempo negro. Ela levanta e passeia pela casa, que fica pequena. Tolera a sucessão em si. Investiga a inutilidade dos objetos. Presta atenção nos possíveis pássaros. Daí, descobre seus cabelos. Eles estavam esquecidos dentro da esfera das horas gastas em viver. Agora, apareciam mais louros e brilhantes. Ela os toca, sentindo sua ondulação dourada e sua desproporção selvagem. Vai ao espelho do banheiro. Eram longos e vivos, como anêmonas. Mete os dedos neles. E percebe seus olhos de uma cor indefinida e triste.

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O dia se desenrolou inquieto como uma coceira. Para enfrentá-lo, ela decide se pentear. Havia, no mínimo esforço, uma promessa. Ela se vê no velho espelho alaranjado, cuja pintura já se desgastava, e tem medo. Seus olhos lhe provocavam, mas não consegue fitá-los por muito tempo e desvia a atenção para o movimento das mãos. Terá sido bonita algum dia. O azul dos olhos, talvez mais vivo, mais marinho em sua profundidade de estrela. Como seria a vida de verdade? Com que cores? O espelho estava quebrado numa ponta, e de repente, depois de anos, ela o percebe e pensa em trocá-lo, fazer desaparecer aquela imperfeição que não era nada, não interferia na utilidade do espelho, mas que ela quer, agora, expulsar, como a compor alguma coisa simétrica e acabada. Retira-o da parede e sai do banheiro disposta a uma decisão irrevogável, contendo tanta força em sua diminuta transcendência, que dava a impressão de, a qualquer momento, poder explodir. Mas agora, para que esse afoitamento se desdobrasse e o dia cobrasse sua existência maciça, ela tem que se despir, tomar um banho, se vestir, se pentear de novo, talvez aplicar nos lábios um batom leve - que há tempos não usa -, e sua partida ao encontro da correção daquele pequeno defeito ocuparia o centro daquelas 24 horas. Ela sai para ir até seu armazém, que era como um oásis que catalisava alguma ação em meio à sucessão que seu corpo sofria todos os dias. No caminho, percebe um erro: ela jamais se apresenta assim aos donos daquele negócio. Quase pára, mas, afinal, dá um suspiro forte e avança. Quando entra na casa à beira da estrada, sente o impacto do vazio. O gato levantou a cabeça e olhou, como a dizer: "Não há ninguém". Ela pisa no assoalho com delicadeza e se aproxima do balcão. Por fim, o senhor grisalho apareceu, ela lhe mostra o espelho quebrado na ponta, ele aquiesceu, sorriu mirando aquele pequeno defeito e, reparando nela de soslaio, com expressão quase irônica, foi buscar um espelho novo, com a mesma moldura alaranjada. "Seu amigo foi à cidade", ele disse, com os olhos no balcão. "Deixou isso para a senhora", falou, estendendo a ela um pequeno envelope azul. Ela o segura uns segundos como se ele fosse um inseto. O gato olhou para ela, curioso. O tempo se comprimia ali, enrodilhado no instante. Ela sente o papel na pele como se usasse luvas. O homem embrulhou o espelho num papel pardo e o entregou a ela. O caminho de volta para casa foi mais rápido. Ela se sente estranha, assim, com um embrulho na mão, o batom e o penteado, o envelope azul que sugeria um cartão, como se estivesse vindo de algum encontro onde fora receber um presente. Entra em casa, e a primeira coisa que faz é ir pendurar o espelho novo. Pega o velho e atira-o no lixo. Ainda alcança um olhar para a lata, negando-se a reconhecer algum desperdício de vidros. Logo, volta para dentro de casa, senta e abre o envelope. Dentro dele, encontra uma pétala de rosa seca. Tinha cor de sangue e um perfume de rosa arcaica, algo que quase a fazia lembrar de algo, mas que se desvanece. Ela tem receio de tocar a pétala, tão frágil parecia. A princípio, se decepciona, imaginando algo escrito, e então a surpresa concentrada, cor de vinho. Havia uma linha tenra que a levava a algum lugar distante, uma lembrança desbotada ou, talvez, apenas uma imagem que lhe ocorria agora, diante do veludo da pétala. Coloca-a no envelope e decide guardá-lo. Quando o fecha, repara que não trazia nenhum nome escrito no verso. Vai até a estante, procura o livro que continha as outras cartas e junta a elas a pequena e inusitada correspondência. Nesse momento, percebe que ela o abriu, agora que era tarde, que os gestos já não eram recuperáveis dentro do tempo espiralado, e suas mãos depositaram, ali, aquela pétala aberta, uma mensagem que ela acolhe como um pássaro. Fecha o livro e tem uma pequena vertigem. Um lampejo varreu sua memória, alguma nódoa opaca e oblíqua na iminência de uma imagem, mas nada se desenhou. Sôfrega, em tremores, ela anda pela casa distraída das coisas e concentrada num acaso, essa fotografia alheira à qual não chegamos de chofre. Esse homem. Quase se irrita, mas desiste, lembrando o vinho e a carona. Ah, a praia imensa... Decide percorrê-la sem trégua, num rompante, até onde sua sina se evaporasse. O mar... Nenhum passado. Ela sai a caminhar.

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A paisagem, às vezes, começava a se formar em torno dela, como se apresentando. Não sempre. Na maior parte do tempo, as areias, os poucos arbustos, as pedras gigantescas dos costões, o mar, o conjunto infinito de conchas, tudo isso não constituía nada, apenas manchas a percorrer, coisas pelas quais ela tem que se deslocar, anônima, numa manhã qualquer. Extrair o sentido de cada estampa calcada no presente era algo inócuo, sem pensamento, como essa espuma que retornava sem cessar para não chegar a nenhum lugar, em sua insistência comedida e sem fim. Andar a esmo pela praia era o mesmo que fitar a extensão marítima, um horizonte neutro e inacessível. Tudo o que vivia ali não se abraçava a ela, simplesmente se deixava estar, avesso a uma relação curiosa, e era como se seus pés tocassem o solo de algum mundo não conhecido. Mas agora, que algo forçava a membrana externa e se agarrava a uma evidência magra de existência e de ação, como uma pétala desenrolando sua própria concavidade em direção à luz, a paisagem ia se concretizando em coisas que tinham nome e, quem sabe, lhe falavam algo, nem que fosse a espessura do silêncio. As ilhas lá longe, um barco cuja cor era impossível distinguir na lonjura, o ataque acelerado de uma ave negra sobre a flor da água em busca de um peixe, as rochas e seu mudo imaginário contra as águas francas e furiosas na ponta da praia, tudo, nesse instante, adquiria a relevância de um toque corporal no escuro. A inanição desse mundo mineral e frio, em contraponto à casa, ao seu fogão, ao pão e aos cobertores, agora abastecia uma curiosidade ansiosa e doce, uma espécie de fome e de sede, ou a sensação de que algo vai ser dito, não importa o que, a qualquer momento. Quando ela caminha, seus pés sentiam da umidade arenosa uma sílaba inarticulada e fria, mas quase um som, como bolhas que no mar murmuravam quando alguma coisa ainda vivia. O vento lhe estendia seu leque esfarrapado e macio, e ela o recebe na pele do rosto e das mãos, e esse mínimo atrito lhe provocava o arrepio da descoberta. A textura da gramínea, o perolado das conchas, o duro irisado dos recifes, tudo soava para ela como o desvelar de um ínfimo sentido. E havia o grito da gaivota, que a surpreendeu num fonema indecifrável. Então, a dor. Ela pára olhando para o chão. Cacos de coisas se espalhavam pela areia. Ela põe a mão na cabeça, tentando auscultar o que a espetava, ali, com o peso de um lastro. De repente, imagens explodiram dentro dela como ondas em enormes parcéis, sem trégua, e ela dá um passo. De novo, a dor ancorou ali, esquecida, por um segundo, da realidade ao redor, num vácuo veloz repleto de cores. Ela olha o mar, mas só vê as manchas indefinidas que a atropelavam, numa angústia, como algas voando à sua volta. Teme uma tontura. Tudo o que a rodeava parecia um promontório vasto e pesado. Mas ela o desafia, recomeça a caminhar, de cara ao vento, e abre bem os olhos para abarcar isso que exigia dela uma entrega, e ela tem vontade de escalar as escarpas, abraçar calhaus e arbustos, deitar-se à beira das espumas abissais e quase planar ao longo da linha de vôo de um albatroz. A dor. Ela quer correr, um modo, quem sabe, de afastá-la. E sente uma imobilidade fútil, como se dezenas de pessoas a observassem. Então, corre. Força as pernas no solo mole, sem fôlego, e avança, buscando incorporar o próprio vento. O cansaço foi rápido, mas ela prossegue caminhando e ganhando o terreno. Pára. Novamente, o aguilhão na cabeça, as figuras sem compor um desenho completo, a sensação da falta. Olha o oceano e não compreende. De repente, começa a correr de volta. A fadiga parecia ter desaparecido, ela adquire vigor, veloz, até o caminho para casa. Com o chão firme, ela se desloca com mais força, sempre correndo, até que chega em frente à porta, abre-a, esquece-a aberta, indo até a estante. Recuperando o fôlego, procura as cartas fechadas. Num segundo, imagina respostas contidas, algo que a aliviasse da curiosidade - de quê? -, esse fluido que a envolvia sem começo nem fim, apenas o fluxo impalpável da dúvida. Agarra os envelopes, ainda de pé. Vira-os e lê os nomes dos remetentes. Fica segundos assim, à beira de um ato que deslocasse o enigma e a instalasse num conforto qualquer, além dos dias nublados de inverno. Mas, nada. Tudo se embaralhava na devassidão da dúvida. A respiração se tornou difícil, suas pernas ainda tremiam, e seu corpo ali, largado no final de um atropelo, sentia um enjôo. Ela resolve se deitar. E dorme.

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Quando desperta, aceita a delícia que o Sol lhe oferecia pelos vidros. Não tem pressa em levantar, não sabe das horas. Apenas que, a partir desse dia, possui um novo espelho. Talvez fosse o momento de comer, de preparar seu parco almoço. Mas ela reluta, imaginando, pela primeira vez, a possibilidade de que alguém lhe servisse a refeição, mas não ali nem no armazém - que não preparava comidas -, a não ser que lá, ao longe, no pequeno centro do povoado, houvesse um restaurante. Ela volta a fechar os olhos. Não tem fome, propriamente. Mas imagina aromas. Percebe a inapreensibilidade da sensação, a fugacidade dos sentidos, e cada ato que se prenunciava afastava o devaneio de uma vontade oculta. Ir a algum lugar, agora, acionava essa dúvida dispersa, crônica, sobre ficar ou partir, dormir ou agir, pensar ou, simplesmente, fitar algum esboço de sonho... Mas ela toda nesse leito tem a cócega da insônia. E se dá a pensar o mundo além da praia e do repouso. Mas não consegue. Tudo se descortinava como uma enorme neblina atrás de outra neblina. Ao mesmo tempo, o desejo de sair de si resvalava num átomo de tempo imóvel, a possibilidade - de quê? - a embotava no intervalo entre dois gestos, dois olhares, até que o futuro se encolheu, a imprecisão dos meses se condensou, a fluidez dos dias se fixou na necessidade inadiável. Senta na cama. Escuta o denso silêncio do final do inverno e perscruta as batidas do seu coração. Ela vive. Mas tudo ao seu redor, os móveis velhos, as lâmpadas apagadas, os trincos, os vidros, as árvores, as pedras quietas, os arbustos debruçados pelo vento, tudo era um significante do nada, da mera duração que doía. Ela se levanta. A porta havia sido esquecida aberta. Suas pernas receberam um vago e imperceptível tremor. Havia um rangido no ar. As nuvens, em movimento aleatório, evoluíam sem direção. Pequenos tufos de vegetação se vergavam. O céu parecia se mover. Quando percebe, ela está a passos largos nos cascalhos dispersos pela estrada, o ar afoito, a fome de uma rara refeição no fim de uma promessa. Ultrapassa o armazém. Os olhos do gato se espantaram. O dono olhou intrigado com aquela sombra deslizando rápida na rua. E ela segue, perseguindo a sina de romper o seu jejum, perplexa com a sanha que se ia, acelerada, rumo a uma surpresa. De onde saía esse rompante, a pressa em soterrar o repouso e o desconforto, assim, impávida, ela não sabe. Apenas ergue a cabeça em direção ao fim da linha, ao cruzamento, ao vértice da espera enovelando o instante em que a comida aplacaria a falta. Depois de andar uns quatrocentos metros, ela se depara com as casas do vilarejo, a pequena igreja, mais armazéns e rostos que nunca vê, talvez num passado recente, e ali na pequena rua principal, com um avarandado e vidraças, branco, voltado em direção ao mar, um restaurante mantinha suas portas abertas, poucas pessoas lá dentro, em mesas de madeira pintadas de branco, com toalhas azuis, os garçons de calça preta e camisa branca, o som vindo de um rádio, e ela estremece quando pára e sente que não há volta possível, porque seu corpo a levou até lá sem perguntas, e sua língua já antecipava o sabor de um prato raro, não por ingredientes exóticos ou caros, mas por seu ineditismo nessa sua vida de comidas sem imaginação nem cuidados, só o saciar de um corpo que quase não agia. Num passo, ela entra. E a primeira pessoa que vê, desconcentrada das manchas pretas e brancas dos garçons, era ele. Um copo de vinho tinto, outro de água e um prato de camarões o distraíam. Quando ele a viu, a impressão que subiu pelo ar do salão era a de um espanto concentrado em ondas que chamavam a atenção de todos. Ele chegou a se levantar sem perceber a aflição das pernas, e ela se dirige até a mesa dele, automaticamente, como um lugar a salvo de qualquer indagação, qualquer convite, uma sombra irrecusável num oásis em meio a um longo e invencível deserto. Não havia o que declarar, explicar. Ela, simplesmente, se encontra ali. Era tudo. Mas o alívio da travessia brilhava nos olhos dela cheios de vergonha. E antes de algum arrependimento traidor, antes mesmo de se saber sentada no local mais improvável de uma vida sem roteiro, ela já acolhe, com essa sede que traz de casa, o sorriso com que ele a recebia, atônito, na pausa do dia para restaurar-se. E senta na frente dele, num ato da mais impensada coragem, olhando pela primeira vez direto nos olhos dele, não para sorrir, mas para pedir, no silêncio assoberbado de sua face, que ele a recebesse sem feri-la, sem exigir dela a solidez de um encontro a céu aberto. E ele consentiu. Então, veio um garçom, e já se podia adiar o minuto constrangido e fazer os pedidos que ele supunha adequados para os dois, com a fome de uma conversa que não aconteceria, com a sede de um encontro imaginário, real. Quando veio outra taça de vinho, ela se joga a ele como uma afogada e repousa no sabor cor de sangue sua pressa em descobrir. Ele sorriu, e ambos beberam calados. Depois, ele disse: "Consegui um terreno. Vou construir minha pequena casa". Ela olha para o lado, para baixo. Ele não percebeu a aceitação oblíqua que se desenhara nos gestos dela. Um tremor surdo e contente. Assim permaneceram, recostados numa mudez eloqüente e fraterna, até que chegaram os pratos com seu perfume picante. Ela se põe a comer com a parcimônia de um contido apetite, ávida pela presença, disposta a esticar cada segundo até o limite impreciso dos minutos, ocupando aquela tarde que lindava com o infinito. Corta os pequenos pedaços de peixe com vagar, mastiga cada sensação enjaulada que escapa e ganha o corpo, e ela toda se rejubila em frente àquele prato colorido. "Há tempos que eu não fico assim", ele falou, olhando para a mesa. "Sem fazer nada, procurando um lugar para mim, comendo, caminhando na praia..." Ela quase sorri diante daquela confissão ligeira de alguém que pertencia a outro mundo, do lado de lá, onde as pessoas faziam coisas e falavam todas entre elas, palavras aos milhares, e agiam, de um modo ou de outro, apontando para uma finalidade qualquer. "Aqui...", ele começara, a mão direita parada sobre o garfo. Mas não continuou a frase e voltou a comer, cabisbaixo. Serviu mais vinho aos dois. Ela bebe com gosto. Então, uma mulher morena, de uns 45 anos, entrou no restaurante e se deteve, ficando uns segundos estática sobre o pequeno tapete marrom da entrada, com olhos fixos na mesa deles. Ele se levantou quase de um salto, meio perplexo, mas sem gravidade, com as mãos sobre a mesa, como se buscasse um apoio. Ela dirige lentamente o olhar para aquela mulher morena. Não parece sentir nada. Apenas pára de comer, espera, observa o homem em sua aflição erguida. A mulher de pé olhou para eles não como quem compreende, mas como alguém que se resignou, apesar da surpresa. Ela deu um passo à frente, enquanto ele baixava os olhos. Num segundo, quando ele, refazendo-se do pequeno susto, voltava a fitar a entrada, ela já tinha ido embora. O garçom, encostado no balcão, observava em silêncio, sem nenhuma expressão particular no rosto. O homem foi se sentando lento, olhando para ela sem embaraço ou culpa. Ela lhe devolve o olhar cúmplice, aprovador, quase um afago, a dissuadi-lo de algum ressentimento. Os dois voltaram a comer. "É minha esposa", ele disse, por fim. Ela não engole o peixe. "Quer dizer, legalmente, pois ainda não saiu o divórcio. Já não vivemos juntos há um ano."

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"Comemos bem", ele disse. "Mas ainda temos a sobremesa." Ela abre um pouco a boca, hesita, mas seu corpo termina por fazê-la sorrir, de tal forma que ela se recosta na cadeira, os braços abaixados, o mar lá fora convidando, chamando-a a um novo prazer em meio a essa inércia vivida como uma existência. O garçom se aproximou trazendo novamente o cardápio. Ele lia com ar satisfeito, não pelas opções, mínimas, da carta, mas pelo gosto de escolher para os dois algo doce. "Sorvete?", ele perguntou. Sim, sorvete de chocolate, algo frio, fora de época, portanto, longe da adequação ao tempo e àqueles dias em que o inverno ia minguando, mesclando-se a uma primavera ainda oculta por trás das mantas de frio e nuvens cinzas, que ainda tateava na costa, avisando aos pássaros que tudo mudaria em breve, de forma paulatina, mas decisiva, e as migrações,os acasalamentos, as construções de ninhos e toda a sorte de afazeres teria lugar de setembro a dezembro. Saborearam o fresco e cremoso chocolate lentamente. Ele pensou num vinho do Porto, mas o restaurante não o tinha. "Bem", ele falou, "agora convém a gente caminhar um pouco, não é?" Na verdade, ela prefere dormir, mas aquiesce e espera que o garçom trouxesse a conta e o homem a levasse para passear. Começaram a andar até a praia. Lá, diante do azul revoltoso e infinito, seguiram pela parte mais firme da areia, que, às vezes, os colocava frente a frente com uma invasão de espuma e água salgada. Ele tirou os sapatos e levou-os na mão esquerda. Ela, à direita dele. Indo na direção sul, como se voltasse para casa, olha os pés decalços do homem e tem frio. Avança devagar, afastando-se da espuma branca, observando as centenas de conchas quebradas atiradas ali pelas marés. Ele sorriu sem motivo. Punha os pés na água e voltava, fugindo da sensação gélida do mar. As ondas resplandeciam, estrondosas. Mais adiante, viram os restos de um pingüim. Ela pára para olhá-lo de perto. Ele percebeu a curiosidade dela e se deteve a uns vinte metros de distância. Ela se agacha, estende a mão direita e a imobiliza no ar. O olhar fixo nos ossos da ave. Recolhe a mão. O vento mexia em seus cabelos. Ele se acercou a ela, que não se move. "Vamos", ele disse. Ela, ali, em sua calada inquietude, com olhos refletindo o mar e sua frieza úmida. "Vem", e tocou com sua mão na dela. Apenas uma pequena pressão, e ela vai se erguendo, mirando o chão, até virar-se para ele como a perguntar algo. Retomaram o passeio. Mais à frente, ele teve a intenção de retornar e se virou, ficando, então, do lado da areia, e nesse instante, tocando a mão dela, como a comandar seu giro para alinhar-se a ele, enquanto ela se aproxima da água e pára, olhando para as mãos dadas e corando. Retira sua mão da dele delicadamente. Ele franziu a testa. Ela se abaixa e começa a tirar desajeitadamente suas botas. Depois, dá um laço com os cadarços dos dois pés e segura-os com a mão direita. Recomeçaram a caminhar. Até que ele, praticamente, se encostou nela, roçando a ponta dos dedos de sua mão direita no dorso da mão esquerda dela. Um pássaro gritou. Ela olha para cima, torce o pescoço, fixa um ponto preto-e-branco planando sobre a imensidão da praia. Volta a olhar para a frente, apenas para a frente e, quando percebe, está no mesmo ritmo que ele, com as mesmas passadas sobre a areia grossa e fria, sentindo em sua mão o calor e a firmeza suave dos dedos dele. Chegaram ao centro do povoado, e ele indicou seu carro estacionado junto ao restaurante. "Eu levo você", ele falou. Ela se dirige à porta do automóvel sem olhar para o homem. Ele abriu o carro, olhou para o mar antes de entrar, pensativo durante alguns segundos, até sentar e a abrir a outra porta para ela. Ele dirigiu devagar, em silêncio. Chegando à casa dela, parou e desceu, acompanhando-a até o pequeno passeio de cascalho que levava à entrada da casa. Como uma despedida, sempre em silêncio, ele lhe deu um beijo no rosto, e ela corre, abre a porta e fecha-a rapidamente, desaparecendo lá dentro. Ele deu dois passos em direção à casa, mas se deteve. Lá, num canto do vidro da janela, os olhos claros dela passaram de relance, furtivos, para se esconder dentro da tarde. Ele voltou, entrou no carro e deu a partida.

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Quando ele voltava pela estrada, viu num jardim de uma das casas baixas, pintadas de branco, com seu pequeno muro e um portão de ferro, duas roseiras. Sem refletir, parou, achegou-se ao portão e bateu palmas. As rosas vibravam sua cor suave na textura opaca do dia. Uma senhora apareceu numa janela aberta. "Sim?" "Boa tarde, senhora. Será que eu poderia pegar uma dessas belas rosas do seu jardim? É para um presente..." A mulher, olhos postos no olhar daquele homem, sorriu com todo o seu grande corpo e disse: "Ah, pode! Essas da frente estão mais bonitas!". O homem entrou, escolheu uma das flores não totalmente abertas, mas de cor exuberante, em sua seda feita pétala, e cortou seu pequeno talo espinhoso. "Obrigado!", falou, e a senhora continuou sorrindo.

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Era uma manhã de chumbo, enevoada e úmida, embora o frio já estivesse diminuindo em relação às semanas de inverno mais intenso. E as coisas, os objetos dentro de casa, os móveis e tudo o que se entregava ao olhar lá fora, nessa praia deserta em fim de inverno, prometia algum presságio, uma saliência produzida na esteira lisa do presente, algum tropeço em horas vívidas, quem sabe. Mas a mulher está como cansada após acordar. Ela tem uma dor de cabeça estranha, uma tontura leve. O dia resvalava para essa sensação atroz do mínimo esforço, do menor movimento que, embora parecesse prometer uma realidade nova, apenas mantinha a tensão do tédio esticado sem limite. E os lampejos. Como um sonho, ela os recebe de chofre, imersos numa memória aos fiapos, em remendos hostis, tal uma tarrafa esfarrapada pelas pedras. Tudo deslizava rumo a uma queda - para onde? -, com a gravidade de uma massa plúmbea e fosca, sem que ela possa recordar de onde, quando, em que imagem se agarrar, em que fatos ou passados embranquecidos pelo tempo vazio e sem começo, na nervura oculta de um presente arrastadiço e fútil. A dor. Tudo se continha na cápsula ensacada do instante, mas reverberava exasperado até a sanha. E ela, então, não consegue senão se mover, abrupta, entre intervalos despojados. Caminha, volta, reflete sobre essa ida e vinda, e fagulhas de sonho se atiravam a ela como mergulhões na mira dos peixes. Veio-lhe uma vontade de rasgar papéis, quebrar potes, sair a esmo, num irritado à-toa. Isso concentrado num estado imóvel, à espera da chispa que detonasse um gesto destinado a algum ataque. Vai até a estante, abre a gaveta, recolhe o caderno e a caneta, e escreve: "Tempo". Fica ali olhando a palavra interminável. Uma náusea leve se apoderou de seu corpo, como uma dose de bebida alcoólica que agora ela lembra de beber, depois de tempos sem abrir a garrafa de cachaça que neste momento procura, retira-a do armário, busca o pequeno copo transparente e solitário e serve-se uma pequena dose. Tempo. Ela engole a aguardente com gosto. E algo queria se soltar, se mostrar, desafiá-la a perscrutar imagens esquecidas, mas ela sente a saborosa ardência na língua sem saber que manchas iam se formando em sua memória, apenas coisas cinzas, picantes, enigmáticas. Era isso. A falta que fazia uma atitude de ser. O esboço do dia seguinte agora, já, inflamado pela carência e pelo incômodo de ver passarem as horas pelo corpo. Ela olha o caderno, para a garrafa, para tudo o que se acomodava em seu nicho fechado, mas que não tinha mais utilidade que o estar indiferente. Ela decide comprar uma caneta nova e outra garrafa de bebida - ah, a novidade do mesmo, o ínfimo avanço rumo a alguma coisa, como a sacudia. Essa premência de ser. Atirar-se ao horizonte de um centímetro. Dar um passo e ver descortinado - o quê? - o apelo de algo oco. Ela se veste e se dirige ao armazém, que era como um ponto onde o fluxo de tudo se estabelecia no meio do mundo, eqüidistante a toda a vasta geografia, ali, no acaso de uma vida, como se fosse em Ivigtut ou Chaitén, fora do tempo e do espaço, mas onde sempre alguma coisa poderia se reestabelecer. Agora, o caminho não era a continuidade das nuvens, do vento e do ar salgado alimentando o hábito de estar à margem de si mesma, num tempo rural, ensimesmado no âmago da chama que a lenha concentra numa noite qualquer. Agora, era a passagem. O obstáculo desfeito de um possível sem promessa, apenas risco. A dor que latejava sob todo o desejo, a preexistência sorrateira de um sorriso ou uma lágrima, talvez, essa esfera que a cercava sem projeto, sem êxtase, somente a chance pura, sem destino ou objetivo, amalgamada à carne. O armazém. Chegando lá, ela vê, primeiro, o pêlo espesso e amarelado do gato. Depois, o dono do armazém, com semblante lacônico, a olhar os cascalhos da estrada. O balcão marrom-escuro, agradável em sua simples sobriedade, sem curiosidade. As prateleiras cheias de produtos que alguém, um dia, poderia comprar. E a rosa. Na mesinha do canto, naquele estabelecimento que foi se tornando, à revelia dos donos, algo fora de lugar, o enclave de um encontro, assim, por mero acaso, enquanto os olhos da dona se expandiam e o interesse do dono investigava os olhares dela e os daquele forasteiro. Rosa-champanhe intacta na nudez das pétalas, que ofuscavam sem a luz do Sol. Ela senta, como se esquecesse que foi às compras. O senhor grisalho a observava com um certo brilho no olhar. Ela estuda a textura cintilante e luxuosa da flor como um véu de antigas princesas. A rosa vibrava. Sua beleza a tornava solitária em meio àquela quantidade de meras coisas úteis esparramadas pelo armazém. Ela estende a mão como se aceitasse um castigo, como se oferecesse seu corpo a isso que ainda não conhece, prenúncio de prazer ou dor, mas com a coragem de alguém que assume os riscos de encarar a beleza. Ela toca uma pétala. As duas estremeceram. A certeza lhe adveio, sonâmbula, num devaneio claro e afagante, a dizer do homem e sua remessa. "Aquele senhor deixou para a senhora", disse a dona do armazém, tão dona quanto o marido e mais apta às confissões em público. O dono resmungou qualquer coisa e voltou a olhar para a estrada. Ela pensa numa palavra, mas está sem seu caderno. A caneta. Então, lembra da finalidade de ter ido até ali, levanta e se dirige ao senhor grisalho. Caneta e cachaça, uma combinação inusual. Quando ela recebe os produtos, pede também um pedaço de papel. Volta a sentar e escreve: "Calor. Tremor". Sente que está com as faces avermelhadas, não ousa olhar para os outros, que seguiam seu ritmo de venda sem movimento. Ela sorri. Havia tanto horizonte disponível, agora, nesses três objetos: flor, caneta, garrafa. Os três continham sua seiva atuante, capaz de lançar o minuto seguinte para frente ou para trás, embaralhando o instante atual, numa espécie de levitação. O gato se aproximou e roçou seu corpo no dela, que olha para ele como numa indagação. Ele sentou e fixou seu olhar esverdeado nela, fitando-a com afinco, mas sem ansiedade. Ela se sente embaraçada, olha a flor, se distrai, rodeia, então volta a mirar o gato, e ele estava lá à espera dos olhos claros dela. Agora, esses dois objetos, a flor e o gato, compunham algo em torno dela como uma incisiva presença exigindo resposta. Porém, ela não se sente cobrada, a não ser a cobrança de, simplesmente, estar ali com o gato e a flor, localizá-los, deixá-los fazer parte desse horizonte que se espraiava, a partir da mesa, e avançava lento como uma neblina. E ela se deixa envolver por essa névoa, recolhe a flor, a garrafa e a caneta, e sai do armazém. Nesse momento, o homem moreno estava chegando de carro com aquela mulher que ele dissera ter sido sua esposa. Estacionou perto da venda, quando a viu apertando o passo ao se afastar dali. Ele abriu a porta do veículo e tencionou chamá-la, mas para isso teria que gritar um nome, então ele desistiu, deu um beijo no rosto da mulher morena e entrou no armazém, enquanto ela ia embora com o carro.

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Quando chega em casa, ela deposita a caneta e a garrafa de cachaça sobre a mesa, pega um copo alto, enche-o de água e coloca a flor dentro, depois a situa também na mesa. Abre a garrafa, busca o copinho, lava-o, enche-o de cachaça e sorve um gole com um prazer insólito, absorvendo o cheiro de cana-de-açúcar e de melado, o calor do álcool e sua massagem áspera na língua. Pega a caneta azul, vai até a estante, e da gaveta puxa seu caderno. Abre-o, até que escolhe uma página em branco. O dia parecia que se enternecia com o arrefecimento do frio e o sobrevôo dos pássaros buscando comida. Havia mais luz, as noites passavam a ser mais curtas, a trajetória leste-oeste do Sol se curvava mais para a esquerda, e tudo recendia a algum recomeço. Ela escreve: "Palavras". Vai fechar o caderno e guardá-lo, mas antes lhe ocorreu outra coisa, e ela, por fim, escreve: "Amanhã". Volta para a mesa, senta e fica observando aquele enfeixe de pétalas-champanhe, com brilho próprio, destoando do mundo ao seu redor, quase sem lugar naquela casa vazia, que continha apenas poucos móveis velhos, objetos praticamente sem uso, coisas sem ser. E a flor, ali, no meio do caminho. De repente, se lembra de um trecho de um poema de Rilke. Vai novamente até a estante e retira de lá um pequeno volume. Folheia-o e encontra a página que visitou, abruptamente, sua memória. Relê:

Como uma menina que amarra flores - pensativamente ensaia uma flor, outra flor, e ainda não sabe como será o conjunto -, assim ela dispõe suas palavras.*

Então, ela se volta para a rosa e quer pensar aquela intensidade, aquela cor, quase o sabor de tê-la entre seus lábios, rubra, provocando em seu corpo algum abalo. Mas seu pensamento não se abria, não se desenvolvia, empacava na palavra não sabida e travava no limiar de alguma frase que se esboçava, mas, sem viço, sumia. Os silêncios. Toda a atmosfera lhe sugeria coisas, a própria imobilidade de tudo a empurrava para algum sentido, uma promessa de acontecimento, um dia novo, algo a sentir no ápice da espera, mas essa profusão não explodia, concentrava-se na bolha do momento preso, e as sílabas que ela já saboreia estralavam como grossas gotas de chuva a desfazerem-se no chão. O presente opresso. Só lhe vinham nessas horas as ganas de lançar ao ar um grito inflamado pela fome, indignado e rude. Ela se irrita, então, pelo fato de não poder dizer a rosa nem pensar tudo aquilo que a flor lhe oferecia sem retorno, sem pressa, ininterruptamente. Seu olhar pousa nas pétalas como o faria uma abelha ou um beija-flor, e esse ato se desvaneceria dali segundos, não era um gesto que a instalasse no presente e desencadeasse uma ação ou uma frase. E ela quer que a flor permaneça nela, com ela. A dor de não dizer. E nesse intervalo irremediável entre ela e a flor, entre seu corpo cravado de afetos e um silêncio encouraçando tudo, era o tempo escoando em círculos, inabordável, tecendo o vão infinito da ausência. A vontade que ela tem de agarrar a rosa e quebrá-la como um vaso - mas uma rosa não se quebra, se despetala, se fragmenta, mas continua a ofender com seus matizes intensos e delirantes, cada pétala como outra flor sedenta, que mesmo seca incita um corpo mudo. E a febre de querer abraçar uma palavra e entregá-la a outrem, mas a sensação de que ela sempre se esfarela entre um alguém e outro, como uma flor se desfaz se houver um vasto percurso, de mão em mão, até jazer numa lixeira. Ela volta à mesa e mira a rosa. Estende a mão direita e, com cuidado, pega a flor pelo caule. Retira-a suavemente do copo, e ali estava a exuberância champanhe e gotejante, com espinhos em riste e doce veludo entreaberto, a espicaçar os sentidos de um corpo sem proferir sequer um som, imersa que era a flor em seu próprio embrião de segredo. A mulher se instala sem saber nessa figura úmida, brilhante e lacrimosa, sentindo um pensamento que não tomava corpo, álgido e difuso, a se espraiar na pele como a brisa do mar pela penugem, que a levava para dentro de um espelho sem fundo nem matéria, onde ela quase se vê, mas sempre escapa de si, como um siri na areia. Em vez de destruir a flor, de esmigalhá-la num furor agora já adiado, ela tem é uma vontade de agarrá-la com tal força, numa fúria total de apreensão e posse, que quase o faz, na compulsão do instante, antecipando aquela cor vivaz manchando os dedos de luxúria suave, mas, ao mesmo tempo, temendo a física ferida dos espinhos. Recoloca a flor no copo e tem ali, lado a lado, a garrafa transparente, quase como vazia, e o copo cuja líquida limpidez se tingia, de súbito, de uma sofreguidão dourada. Tudo isso era o mundo concentrado naquele ponto, sem mais apelos, a demandar sentidos. De repente, ela treme com uma febre. Do umbigo da sensação, lhe vinha algo que vibrava quente, estabanado, abrindo, involuntariamente, os poros de seu corpo, e um calor se adiantava nos músculos ainda inertes, mas quase trêmulos em seu ardor velado, que anunciava alguma coisa que não tinha nome. Era meio-dia. Ela se dirige, vacilante, até o sofá. A tremura nas pernas praticamente a derrubou no estofado velho, mas ainda macio. Ela mira a rosa, a luz solar compondo áreas abertas, algumas manchadas de sombra, e um vago ruído do mar transparecia, longínquo. Ela estira as pernas, roça o corpo inteiro no tecido como se possuísse cócegas minúsculas a debelar sem pressa, quase se espreguiça, mas é uma graça tensa que ela tenta aprender em seu percurso solo. O próprio silêncio de tudo a afogueava. Estende a mão direita até o umbigo, onde a calentura subia por debaixo da roupa. Estende-a mais e encontra aquele cálido volume embalado, como uma pequena e dócil almofada, e sua mão se abre ali, por sobre a calça, alisando a consistência pulsante que se abria, nervosa, à urgência do vindouro. Com a ajuda da mão esquerda, desce o zíper, abre as abas da calça e vai deslizando-a até enxergar, febril e úmido, o enxame de pêlos e porções carnosas sob a calcinha branca. Ela se lembra vagamente da última vez em que se olha nua sem ser na hora inadiável do banho ou da troca de roupa. Assim, em pleno dia comum e mortiço, num sofá gasto e já sem idade, não lhe ocorre recordação nenhuma, mas ela já insinua os dedos entre os pêlos, e quando, de um só gesto, afasta a calcinha, foi como se todo o dia parasse em sua atividade neutra para que ela recebesse em cheio o fúlgido lampejo de um desejo. Ela fecha os olhos, pois o universo a atrapalhava. No escuro íntimo da pálpebra, ela vislumbra a sanha umedecida de seu sexo. E deslizando os dedos em repetida profusão, começa a gemer com uma voz estranha a ela própria, como vindo de outro lugar do corpo que não a garganta, retesando a pele e contraindo as coxas, como se quisesse, ao contrário de lembrar, esquecer de tudo, o pouco tudo de que guardava uma fugaz memória. O sofá rangia ao peso em movimento de seu corpo, a mão suava, seus dedos se molhavam com um aroma que ela quer reter, respirar, provar, saboreá-lo como se isso fosse, enfim, reconhecer-se. E no exato instante em que, embora queira adiar ao infinito esse prazer irrepetível e datado, o gozo vinha subindo dos pés à cabeça, secando a garganta, impulsionando o coração a agir e as pernas no limite da expansão muscular, ela grita. E logo leva os dedos aos lábios e lambe-os, como se seu gosto de sexo alimentasse por mais tempo a ilusão de que a incompletude cessaria ou se postergaria a algum amanhã. Com as pernas esticadas, alongando-se, buscando o relaxamento do dorso, dos braços, de tudo, no espaço inadequado do sofá, ela esquece o escorrer do dia. O ritmo dos minutos aquiescia a uma vagarosa travessia, quase redonda, a espiralar a linha de um tempo imaginado, sem escalas, lasso e contínuo, como se fosse um sonho em sensações diáfanas. Ela se esquece. Sem fechar os olhos, dedica-se a uma entrega não obstinada a coisa alguma, salvo ao tecido claro do dia que se descortinava, fora, sem noção a sugerir, apenas a de um tempo estagnado e tênue, absorto e tácito naquele andamento de algo que não possui finalidade. Qualquer gesto nesse instante esgarçado e branco lhe parecia sem sentido. Qualquer ação, ali, estalaria a pálida vidraça dessa neblina morna que era o dia. Tudo respirava como se fosse agonizando. Mas tudo vivo, porém de uma vivacidade estocada, obscura, estática nos objetos que, por todo lado, não convidavam a nada. Talvez isso fosse a paz: quando o corpo se acomoda na resignação ao movimento nulo. Mas havia a espera. E tantas palavras agarradas a pedras. Ela, por fim, se levanta. Havia algo a fazer - sempre, embora ela não atine o quê. O murmúrio surdo dos minutos. De repente, o açoite delicado da lembrança lhe invadiu a memória. Ela sabe, porque essa memória queria chegar a ela, que esse algo tem o sabor dos gestos passageiros, por isso a avidez por repeti-los. O gosto do cigarro. Ah, uma ação... Recompõe-se do gozo, se revê no espelho que agora a distraía de um anonimato amplo e sem história, e sai para ir ao armazém que, de alguma forma, já não a fixava nesse marco geográfico de sua vida rolante, mas adiantava alguma recompensa remota a ser vivida num além ainda incógnito. Nem sabe mais o que pedir, mas o dono do armazém entendeu que ela quer alguma marca de cigarros e lhe estendeu um maço que julgou adequado àquele silêncio feminino. Por pudor - embora a vontade a arranhasse ali mesmo, na abordagem repetida de um ineditismo que agora, ao tocar o maço de cigarros, ela percebe falso -, não fuma. Caminha rápido de volta para estender-se nessa satisfação completa e solitária da fumaça dispersando-se rumo às dunas, sem testemunhas. Quando acende um cigarro e engole o primeiro tufo enevoado e branco de fumo, se engasga e tosse, como se engolir o instante fosse uma façanha. Mas recupera o fôlego e insiste, já que quer ser a dona dessa densidade que a perpassa, integrando-se a um ambiente forjado por gesto, corpo e um efêmero prazer, a medida de sua memória, que voltava, como ela, a se sentir incômoda e se abria. O ar que vinha do mundo, e lhe trazia uma tenra e quente substância, passava dentro dela sem barreiras, e se lançava de novo a esse espaço que a abraçava e do qual ela depende, sem querer, mas agora como uma espécie de sapiência sutil. Viver, mesmo que não saiba como dizer isso. O cigarro a entonteceu um pouco. Ela deixa-o pela metade para sentar-se. Terá que reaprender alguns prazeres. O dia se aquecia aos poucos, em transição à primavera já próxima. Descansada, a mulher se levanta e olha a claridade lá fora. Abre a porta. As coisas, depois de esfriarem com dias curtos e noites longas, agora pareciam crescer lentamente, se mover, comunicar umas às outras a repetida atividade de existir. No alto, próxima à casa, andorinhas davam vazão ao seu balé aéreo, contornando, como num passeio sem rumo, o telhado enegrecido de tempo e umidade. Ela as escuta e olha para cima. Em vôo rápido, as andorinhas desenhavam, sem saber, intrincadas figuras. O ar, mais aquecido e levemente enevoado para os lados do mar, recendia a flores rasteiras e água salgada. O cheiro de tudo, irreconhecível, mesclando as plantas, a terra, o ar marinho, lhe deu fome. Nesse momento, apareceu ao longe o carro do homem moreno, aproximando-se com vagar. Ela não sente nenhum estranhamento e o espera ali, de pé, como se observasse o vôo sem mistério das gaivotas. O carro parou. O homem desceu, num sorriso meigo, oferecendo um leve contentamento, e disse: "Oi! Comecei a construir minha casa. Imaginei que você pudesse estar com fome. Que tal uns bons camarões?". Ela simplesmente fecha a porta atrás de si, sem pensar em trocar de roupa, absorvida pelo clima que a devolvia a um estado de que, talvez, ela não se lembre completamente, mas que a pousava com suavidade nessa lânguida esfera da esperança. Voltaram ao mesmo restaurante do outro dia - não havia, mesmo, muitas opções naquele povoado -, como a marcar um território comum aos dois. Ele foi dizendo: "Minha ex-esposa veio ver o terreno". Desta vez, ela come com a tranqüilidade de quem, ainda que faminta, se atém ao ritmo do outro. "Ela é arquiteta", ele agregou, como se explicasse. Tomaram um aperitivo e, depois, vinho branco. Ele falava sobre detalhes da construção, coisa que ela escuta com desinteresse, mas com os olhos bem abertos. Às vezes, sorri. Chega a um nível de satisfação de ter comido muito bem, que não tem vontade de se levantar e sair do restaurante, como se pudesse passar o resto da tarde ali, à mercê da sucessão sem fim, com o salão já vazio de garçons. Ele se calou por um tempo, intervalo durante o qual ia pensando no que ia dizer a ela e em como dizê-lo. Por sua vez, em sua quieta discrição, ela se dedica à sobremesa. Até que ele abandonou o receio e, feliz, convidou-a abertamente para comemorarem o início da obra, mas na casa dela, pois ele estava sempre de passagem por aquele lugar. Apressou-se a dizer que ele cozinharia e levaria o vinho. Além de não conhecer mais ninguém nas redondezas - exceto, claro, os donos do armazém -, ela era uma pessoa com quem ele gostaria de compartilhar sua alegria. Ela o escuta sem baixar os olhos. Seu sorriso quase se desenhou, e seu semblante teve uma imperceptível vibração. Agora, a vontade de fumar cresceu. Mas ela não tem os cigarros consigo. O almoço acabara, e o homem disse: "Levo você em casa. Esta tarde, ainda tenho coisas a fazer, além das compras para o jantar. Vou para a sua casa lá pelas sete horas, ok?". Ele pagou a conta, levantaram-se, o garçom cumprimentou os dois, e saíram. Ambos estavam satisfeitos com o almoço, que fora longo, e não disseram uma palavra no percurso. Quando o carro parou, ele desceu para acompanhá-la até a porta da casa. Desta vez, aberta a porta, e ainda perto dele, ela se vira e olha nos olhos dele. "Venho às sete", ele disse. E, lentamente, deu um beijo no rosto dela. O carro partiu. A primeira coisa que ela faz, a porta tendo permanecido aberta, é acender um cigarro, como se o almoço até então não estivesse concluído. E saboreando o fumo, ela se permite imaginar a tarde ganhando corpo apenas para esperar a noite e seus eventos. Assim, o dia já ia se desdobrando em pequenos fatos, limpos de qualquer obrigação ou tensão, mas na iminência de gastar as horas sem tropeços, na rota de pequenos prazeres, e ela já antevê outro cigarro à noite, após o jantar, e senta no sofá com a preguiça de quem já está pronto depois de exercer alguma atividade que o coloque em estado de sossego. Depois de fumar, com o corpo amortecido e lasso, resolve dormir um pouco, na tarde incomum que lhe trouxe vagos fiapos de sonhos. Deita-se e escuta o mundo balbuciando pelos ventos, os insetos, os pássaros, as ondas quebrando ao longe. De novo, era como se o planeta tivesse parado, alheio ao universo e a ela, mas com a promessa de um repouso a ser recompensado, como uma paciência pertinente, sem roubar o ritmo inapreensível do acaso. Ela dorme profundamente durante cerca de três horas. Quando desperta, o mundo continua seu murmúrio entrecortado pelos gritos distantes das gaivotas na praia, e o resto era o silêncio encorpado do fim de tarde, no imenso azul-marinho que ia tomando conta de tudo, na quietude da noite anunciada. Ainda na cama, ela observa as coisas, sem pressa de se levantar, nesse espaço de tempo inerte em que nenhuma ação o acelerava, nenhum gesto o detinha, somente o vácuo que, nesse momento da tarde, era como o descanso mais cobiçado. Já se podia ouvir o piar de uma coruja. Descansada, a mulher sai da cama devagar, imaginando a hora, e só então lhe vem a noção de que havia coisas a fazer, e a primeira era tomar um banho. No banheiro, quase sorri ao deparar-se com o espelho novo, que agora lhe seria útil. Entra sob a ducha e abre o registro. A renovação das células, a limpeza da pele, o vigor emprestado à circulação sangüínea, tudo isso a devolvia a um estado que ela conhece, apesar de ter perdido, ao que parecia, mas agora a atirava a um projeto secreto, sem compreendê-lo, mas abraçando-o, como a água fazia em seu corpo, sem outro interesse que o de lançar-se a si mesma, resgatada sob essa outra pele que aflorava, úmida, na tessitura líquida e perfumada do instante. Então, uma sucessão de dúvidas a cobria, nessa faixa translúcida na qual a tarde minguava, antecedendo a doce negrura da noite, quando sua casa não estaria a mesma. Que roupa vestir, dentro daquele parco conjunto que ela possui para diluí-lo pelos dias sem compromisso? O que preparar, o que arrumar diante de um jantar estreando alguma convivência, se essa casa era só o ar da solidão sem ponto de apoio, somente aberta à passagem do tempo e o seu retorno? Sua memória disparava pequenas setas sem sentido, numa velocidade absurda, que a fazia de novo sentir fisgadas doloridas na cabeça, mas, junto com elas, ela vê imagens de flores, como se associadas, por alguma razão, ao ato de comer. Antes de decidir por alguma roupa para o jantar, veste a que seu corpo tinha usado antes e sai, na luminosidade esmaecida do poente, ainda a tempo de procurar as pequenas flores da vegetação contígua à praia. E havia as de cor amarela, branca, algumas violetas, dispersas por arbustos e outras plantas rasteiras junto às dunas, alimentadas por terrenos úmidos de poças d'água formadas pelas chuvas, onde pássaros de passagem paravam para beber. Ela escolhe algumas, de tons diversos, e volta para casa, enquanto o dia ia fenecendo sob nuvens, e o ar fresco retomava seu lugar, provocando nela um calafrio. Dispõe as flores num copo com água e coloca-o sobre a mesa, ao lado da rosa. Vasculha o armarinho da cozinha para verificar o que havia e encontra dois pratos rasos e um fundo, além de duas pequenas travessas. Copos, vê três, todos iguais, de vidro comum. Também havia talheres, mas as poucas panelas a deixavam com receio. Agora, ela não tem nada a fazer na cozinha, mas precisa vestir algo para a noite, e ainda não sabe o quê. Vai ao roupeiro e investiga o que tem, e era muito pouco. Mas existia um vestido verde que estava ali havia anos, talvez, e ela não entende de onde veio, quando o usou, como se assentaria em seu corpo atual. A temperatura, nessa hora, já caíra um pouco, mas ela decide experimentá-lo. No banheiro, se dá conta de que o espelho, pequeno, não era suficiente para se ver de corpo inteiro. No entanto, ela se sente bem acomodada em seu desenho, gosta do tecido suave e da cor, então fica com ele, até porque não tem muita escolha. Repara que, à altura do peito, embaixo da linha do decote, havia uma lantejoula que brilhava sob a luz da lâmpada. Onde, quando o terá usado? Restam os calçados, que não deviam, a seu ver, ser de inverno. Tampouco tem opções, apenas entre uma sandália gasta e um sapato simples, aberto, e ela se decide por este. Volta ao espelho sem raciocinar e não pode ver os sapatos. Olha para seus pés, observa-os, e volta a examinar-se no espelho. Ao rever a lantejoula em seu brilho ínfimo, lembra que as mulheres usam acessórios. Se ela possui alguns, em que lugar estariam? Não havia muitos espaços a procurar. Ela abre uma das gavetas, e lá, numa caixinha de madeira pintada à mão com minúsculas flores e o fundo amarelo, encontra três pares de brinco, dois avulsos, dois colares de contas e um anel de prata. Fazendo tudo rápido e automaticamente, volta ao banheiro com a caixinha na mão e, diante do espelho, prova os brincos. Escolhe o menor, o mais discreto, e agora era hora de pentear-se. Quando está satisfeita com a nova aparência, pensa de repente num batom. Ela conhece esse hábito de pintar-se? Em que situações? Ela não sabe nem se imagina maquiada com aquele vestido, dentro de casa... Reflete e não obtém resposta. Volta às gavetas, porém não encontra nada. A noite já começara a cobrir tudo. Ela acende a luz da sala/cozinha. Só lhe resta esperar, penetrar nesse intervalo oco no qual não havia nada a fazer, a não ser driblar a impaciência com qualquer gesto fortuito. Sente que ainda faltam tarefas a serem cumpridas para o jantar, mas não consegue estabelecer quais. Então, escuta o carro chegando. Depois de alguns segundos, quando percebe que deveria ter ido abrir a porta antes que ele se postasse diante dela, escuta as batidas com a mão, sacudindo-a dessa pequena inércia a que se entrega enquanto absorve a chegada dele. Vai recebê-lo, abre a porta, e ele disse: "Boa noite" e já foi entrando com sacolas de supermercado nas mãos. Ao depositá-las sobre a mesa, antes mesmo de enxergar a casa por dentro e seus pequenos espaços fundidos num só, ele a viu. E sua surpresa fez com que ela, numa perturbação quase ausente, apenas num segundo, desvie o olhar para o chão. Ele foi retirando as compras das sacolas e, sob o olhar intrigado dela, puxou um saca-rolhas. "Achei que você talvez não tivesse um." Ela sorri. Com os ingredientes e a garrafa de vinho tinto sobre a mesa, ele anunciou: "Filé com batatas". Ela faz um gesto indecifrável, movendo minimamente o ombro direito e o rosto, sem que ele soubesse, ao sentir o olhar e o sorriso maroto dela, se era surpresa ou desdém. "Pensei em algo simples e rápido, mas saboroso", ele explicou, como numa desculpa, ao que ela sorri mais explicitamente, achando graça. Ele foi se assenhorando do espaço, procurando uma travessa, uma panela, organizando uma colher, uma faca e um garfo sobre a pia, e ela, diante daquela, não surpresa, mas situação inusitada, senta-se no sofá, comportando-se, na falta de uma alternativa que lhe viesse à cabeça, como uma visita, enquanto ele fazia as vezes de anfitrião. Quando os aromas originais começaram a expandir-se a partir do fogão, ela aprende, como de súbito e para sempre, que não importa se os alimentos são os mesmos, feitos em duas ocasiões diferentes, eles terão o sabor advindo de cada preparação específica, de cada pessoa que os comprou, os preparou e os cozinhou, de modo que cada perfume é único e depende da idiossincrasia deste ou daquele cozinheiro, e é assim que ela, pela primeira vez, olha para ele com verdadeira curiosidade. Levantando-se, se aproxima do fogão qual uma aprendiz em atividade, o que ele percebeu, passando a informá-la sobre como preparava os filés e as batatas. Afastando-se uns minutos, ele foi abrir a garrafa de vinho. Procurou dois copos e colocou-os sobre a mesa. Segurou a garrafa e o saca-rolha e, enquanto começava o processo de tirar a rolha, seu olhar se deteve, ao acaso, sobre a reprodução de Van Gogh, "A sesta", na parede. Suas mãos diminuíram o movimento em torno do gargalo da garrafa e quase pararam, sedando-o numa observação fixa e quase extasiada da pintura, mas tão rápida, que imediatamente, ainda com os olhos postos sobre o quadro, suas mãos foram retomando o gesto de abrir a garrafa, lentamente, compondo uma estranha ação na qual uma parte dela, o ato físico das mãos, parecia não se coadunar com o ato do olhar, preso pela imagem de Van Gogh. Como num alívio, voltou ao fogão para conferir o ponto de cozimento das batatas. "Estão quase prontas", disse. Acabou de dourar os filés e foi pôr a mesa. Deu falta de uma toalha, mas não falou nada. Mais uns minutos, e ele sentenciou: "Está pronto. Pode sentar". Ela obedece a ele, que começou a servir a comida, depois o vinho tinto, e ergueu o copo para um brinde. Ela bebe o primeiro gole e fecha os olhos, sem saber o que pensar a partir desse sabor e dessa textura cobrindo sua língua como uma especiaria de veludo. Feliz, corta um pedaço de filé e experimenta-o. Dessa vez, sorri abertamente, sem nenhum pudor, com esse pungente sabor tomando-lhe os sentidos em surpresa. "Minha casa ficará pronta em três meses. É um pequeno chalé, mas com janelas em cima para não aquecer o ambiente", ele disse, livrando-a da obrigação de manifestar algum juízo, mesmo que velado, sobre a refeição. Mas, afinal, ele percebeu que ela aprecia e que gosta do que come. "Então, um dia seremos meio vizinhos", ele continuou. "E eu vou ter um lugar para cozinhar e convidar você." Ela esboça uma grata anuência, meio encabulada, e bebe mais um pouco de vinho. Assim, o jantar prosseguia agradável, sem que fosse preciso estender as falas e os gestos, exercitá-los, pois o silêncio que acompanhava aqueles pratos não pesava, era uma morna quietude que abarcava o corpo, os sabores da comida e do vinho, a amena temperatura, que lá fora estimulava à ação, mas dentro de casa convidava ao sossego, e a noite densa e incólume, os poucos grilos em coro, o mar com sua voz baixa e longa, algum perfume anônimo de flores já fechadas, em meio às dunas, exalando, ainda, sua vitalidade diurna armazenada. E dentro desse círculo que amarrava, num minuto não imaginado, as horas dispersas de tanto tempo acumulado quase em vão, ela se aconchega, sem saber o que ser, mas dócil à chegada de um evento paralelo, oblíquo, destoante do silêncio habitual dessa praia e sua sucessividade. Terminado o jantar, ele, que assumia uma espécie de posto de dono da casa, no sutil afã de atendê-la bem, fez menção de lavar a louça, como se lançasse à verdadeira dona da casa desculpas pela sujeira deixada sobre a pia. Ela mexe a cabeça em resposta negativa, sem compreendê-lo, quase vexada por se tornar, ali, em seu refúgio, o alvo de uma atenção alheia e amigável. Como ele, mesmo assim, se levantasse e começasse a retirar os pratos, ela também se levanta, rápido, e, no momento seguinte ao ato de ele deixar a louça sobre a pia, interpondo-se entre esta e o corpo dele, ela levanta as mãos e encosta-as em seu peito, empurrando-o com um gentil esforço, que é sua maneira de fazê-lo entender que não eram necessários tantos cuidados. Com suas mãos sobre o peito dele, ela o olha nos olhos, e ele, que de repente digeriu toda aquela atmosfera de contido afeto, segurou as mãos dela, afastou-as suavemente, enlaçou-a pela cintura e beijou-a nos lábios. Foi um beijo curto. Ele voltou a si, como se nos olhos dela houvesse o reflexo de sua atitude cálida e impulsiva, sem ter tido tempo para perceber do que aquilo se tratava, quando ela o puxa para si a fim de continuar um beijo que fora rápido e incompleto. Ela o agarra e o beija, e nada parecia fazer sentido. Em pequenos intervalos, ela afasta os lábios da boca dele e o examina, com um ar de quem deseja uma resposta. E volta a beijá-lo. Os dois não sabem o que fazer perante a própria falta, ilógica, fora de hora, que tomava conta da situação sem que eles pudessem entendê-la ou explicá-la. Ele aceitou esse beijo que ela lhe oferece, devolvendo seu desejo súbito, sem nada além do silêncio que compartilhava com esse corpo feminino provocando que ele existisse, sim, tão existindo neste instante suspenso como o fora, talvez, tempos atrás. Chegou um momento em que eles sorriram dessa banalidade de estarem assim, de pé, junto à pia com louça para lavar, sem uma música, um enlevo, imersos a sós na noite quieta da praia, onde tudo parecia ter ficado por fazer, tudo para um outro dia. Então, ela o puxa pela mão, perplexa consigo mesma, até o sofá. Ali, ela o insere numa parte de seu espaço, mas não vislumbra como seguir, até que ele começou a acariciá-la, tentando fazer o corpo tatear dentro de si uma exuberância escondida. Tacitamente, ela se entrega a ele com uma confiança que pensava, quem sabe, ter perdido. Ele se levantou um segundo do sofá para apagar a luz, e a noite se tornou um casulo enovelado de denso silêncio. Assim, ele pôde iniciá-la em sua própria carência, desnudá-la, atraí-la para seu mistério inconcluso, latejante, forçá-lo a desvendar o que possuía para ela, que nem sequer alguma palavra teria a força de erguer à luz. E a abraçou com a sofreguidão sedenta de quem sofre, disposto a esquecer-se nela, na voracidade de quem mastiga o destino, tudo como se não houvesse mais um amanhã à espreita. Ela se espanta com essa violência doce e se adapta, veloz, a seus prazeres. Não conseguiam mais manter a seda do silêncio, agora já rasgavam os gemidos tortos, partidos, lançados sem razão naquele espaço quente e oleoso entre os dois corpos, tão rápidos, ferozes e nervosos, que a casa toda parecia percutir, com eles, a partitura lasciva do desejo, até romper a noite em gritos, tremendo sob a respiração acelerada, num arfar de fúria e desconcerto. De repente, ela se vê exausta e completa, atônita com tanta fome. Desconhecendo tudo, sabendo apenas do gozo forjado por seu corpo, agora em júbilo dentro de cada célula avivada, ela procura ar e um possível pensamento. Feliz, pousa na face dele sua mão. E o que seus dedos tocaram foram lágrimas. Retira a mão rapidamente, como se o líquido descoberto fosse um ácido. Estupefata, procurando sem poder os olhos dele no escuro, trazendo-o ainda dentro de si, escuta seus soluços e, devolvendo a mão à sua face, o afaga. O pequeno animal que ele era, úmido e trêmulo, naquele estado envolto numa pele tão cálida e macia quanto a dela, cedeu à sua própria inanição, depondo o corpo fatigado sobre o dela, qual um gato. Chegou um momento em que, esquecidos de novo de si, voltaram a reparar nos sons dos grilos, das corujas e de algum outro pássaro noturno não reconhecido. Passado um tempo sem mesura, ele se levantou, foi até o banheiro, acendeu a luz, olhou-se no espelho mais uns minutos e se vestiu vagaroso, enquanto ela permanece sem ação nenhuma no sofá, agasalhada com sua própria energia alterada pelo encontro, e o vê aproximar-se, sério, olhá-la de novo e dizer: "Desculpe. Eu tenho que ir", dar-lhe um beijo, abrir a porta, partir, o ruído do carro indo embora, diminuindo, até que a noite voltou a cobrir tudo com seu silêncio pontuado de bichos.

܀

A manhã ia se estendendo devagar, luminosa, depois de uma brisa fresca que vagava bem cedo. Na praia, trinta-réis passavam, e os mergulhões já exercitavam sua faminta pontaria varando a linha d'água em busca de peixes. Ela acorda muito cedo, com um incômodo no estômago. Leva um tempo numa letargia serena, envolta no frescor da manhã, até se levantar e, sem fome, espiar o tempo. Os cantos dos pássaros começara tão logo a noite foi cedendo seu lugar às primeiras raias do dia. Quando ela pára lá fora, por toda parte se ouviam pios e trinos, vozes que, de tão fortes, não pareciam vir de animais tão pequenos. Entretanto, perto dela, sem que ela possa situar com exatidão, baixos mas fortes gritos roucos sacudiam a calma do pátio. Eram pequenos reclames intermitentes, agudos, de um timbre fibroso que alfinetava os ouvidos. Ela dá uns passos adiante, apurando a audição, confundida pela presença de corruíras nos fios de luz e bicos-de-lacre em bando como festejando alguma coisa própria e incompreensível aos humanos, em arbustos próximos. Mas os guinchos ínfimos e ferinos seguiam com sua angústia insistente. De repente, uma andorinha, em vôo rasante a ela e ao telhado, com um grito, talvez de advertência ou fúria, deu voltas perto das últimas telhas, em parábolas, até esconder-se num desvão entre o telhado e a parede. Era um ninho. Ali, num canto escuro e protegido de pássaros maiores, um casal de andorinhas criava seus filhotes. Ela vê os dois adultos, sem discernir qual era o macho e qual a fêmea, na mesma rota de ida em busca de comida e volta ao ninho para alimentar os passarinhos. Nesse instante da entrada dos adultos no pequeno refúgio, os gritos silenciavam. Depois, quando os pais retornavam à tarefa de suprimento, recomeçavam os berros. A tal ponto chegava a fome dos filhotes, que ela os vê saírem do seu núcleo e aparecerem, bicos abertos e urgentes, na entrada do ninho, dois pequenos pássaros da altura de um limão. Nessa hora, ela esquece do tempo, a observar as andorinhas, e passa a ter vontade de um bom café da manhã. Mas um dos filhotes avançou em direção ao beiral, com o bico para cima, aberto em sonoro clamor para os ventos, as asinhas esticadas, num tremor incipiente e desajeitado. As andorinhas adultas circulavam sobre a casa, em vôo nervoso, sem pouso, advertindo os que estavam no ninho de sua presença nutriz. O filhote precoce, adiantado em relação ao tempo de seus pais, como aprendiz autônomo e indisciplinado, tentava, num arroubo infeliz, seu primeiro vôo. Antes que os pais começassem a partir do ninho, como uma base de lançamento, para explorar o entorno e voltar para junto dos filhotes, repetidas vezes, até que um deles tomasse a coragem necessária e se dispusesse à primeira partida alçada a céu aberto, sob a orientação dos mais velhos, o pequeno aventureiro lançou-se, sem ter tido lição nenhuma, e precipitou-se de encontro à areia e aos pedriscos. Ela, aflita, olha para aquele pequeno ser desabado, que se debatia no chão com golpes de asa e gritos, imobilizado no mesmo lugar. Sem saber o que fazer, no limiar da angústia, ela se agacha, mirando o filhote sem ação, jogado ali com pequenos ferimentos, enquanto uma das andorinhas descia em socorro inútil, parava próxima do filhote, impotente, dava pequenos passos perto dele e partia, de volta ao exercício de alimentar quem estivesse no ninho. Ela entra em casa e pega uma cadeira, que leva para fora, colocando-a junto à parede, embaixo do local do ninho. Então, num gesto de leve desespero, ela agarra o filhote, levanta-o devagar, com medo de olhar aquela pequena vida frágil e extraviada, sobe na cadeira e deposita o minúsculo corpo no beiral, onde outra vida articulava na garganta a sua falta. Ela desce da cadeira e espera, trêmula, que as andorinhas adultas retornassem. Elas continuavam seu giro exploratório, até que penetraram no ninho, primeiro uma, com comida no bico, depois outra, como fiscalizando a operação, e logo empreenderam novo vôo. O pequeno filhote avariado, no entanto, mal teve tempo de engolir o que ganhara de alimento e já foi tentar novamente, numa sanha de aventura insana, sem freio nem sentido, seu lançamento no ar. Aos berros, agitando as asas, e todo o seu corpinho fatigado e resoluto, parou outra vez à beira do telhado e, talvez avaliando de longe a perfeita performance dos pais, atirou-se e despencou no mesmo lugar de antes. Dentro de pouco tempo, uma das andorinhas adultas voltou a pousar no chão, próximo ao filhote, emitindo pequenos pios, ao que o filhote já não respondia, imóvel, os pequenos olhos perscrutando o ambiente sem esperança, as asas paradas, sem nenhum esboço de uma ação, ferido, resignando-se à solidez do solo e sua aridez definitiva. Ela tem o olhar fixo no filhote, sem entender, até que vê a andorinha adulta voar e retomar a sua faina junto à outra, o que levaria todo o dia, durante o período em que o filhote que permanecera no ninho não cessaria de exigir sua nutrição sem pausa. Quanto ao que ficara no chão, exausto e irresgatável, ninguém mais se ocuparia dele. Ela não pode mais, e explodiu nela, mínima, uma lágrima. Recolhe a cadeira e volta para dentro de casa, agora já sem fome e com um incômodo novo no estômago. Não faz café. Resolve sair, distrair-se dessas farpas na barriga e na cabeça, que lhe doía, conhecer essa primavera em ascensão, em sua meticulosa mudança, com todos os detalhes que se pudessem perceber, das flores brancas, de menos de um centímetro, até os grandes ventos, que em outubro e novembro desatariam suas forças maiores. Ela se dirige à praia, onde o mar fazia estourar no granulado da orla sua espuma mortiça. Caminha para um lado qualquer, com o olhar entre o mar e seus pés, as marcas que produziam na areia fofa e úmida, sob a sombra de uma gaivota ocasional. À frente de seus passos, siris se escondiam. Vai andando e tentando não pensar em nada, quando, de súbito, vê uma sombra se aproximar. Era ele. Ela pára. Ele chegou perto dela com um misto de ansiedade e vergonha. Ela presta atenção nas ondas. "Meu nome é Antônio", falou, olhando nos olhos dela, como se essas sílabas justificassem algo, permitissem mais do que a existência anônima de alguém. Nesse segundo, ela lembra das cartas e tem ganas de, imediatamente, revisá-las, as fechadas e as abertas, para tentar reavivar uma curiosidade que, à força do silêncio, sucumbira. "O seu...", ele continuou, e ela busca refúgio na imagem de pequenas plantas espalhadas pela faixa de dunas, aos milhares, contendo, em intervalos irregulares, aleatórios, flores de diversas cores, e todo esse conjunto era a vegetação daquela praia, e cada folha ou pétala se inscrevia, sem identidade, na tela que se apresentava às pupilas negras dos gaviões e das corujas. "...É Mônica." A fisgada, dura como a de um anzol de aço em movimento, pegou-a pela parte superior da cabeça e foi descendo, rude e apressada, fazendo-a se contorcer com uma careta, e pôs as mãos nos cabelos tentando agarrar a dor e dominá-la. "Mônica", ele repetiu, e ela vai se abaixando e se ajoelha, os olhos virados para o chão, os cabelos longos e despenteados cobrindo seu rosto modificado pelo peso da dor e do espanto. Ela tomba sentada sobre a areia e geme. Ele se abaixou para ajudá-la. "Você está bem?". Ela se vira para ele, e em seus olhos azulados havia um laivo de rancor indefinido e áspero, do qual ela se desfaz, atirando-o sobre ele como uma carcaça de pingüim abandonada. "Desculpe", ele falou. "Ontem..." Ela pára de gemer, tira as mãos da cabeça e, de olhos fechados, respira fundo. "Eu... Eu preciso te falar, Mônica. Perdão, mas eu preciso." Então, ele começou.

܀

"Há muito tempo, não nos vemos. Eu estive fora do País, depois voltei, mas não morava por aqui. Vivia numa cidade maior. Foi lá que conheci a Marta, minha ex-esposa. Foram alguns anos juntos, mas já acabou. Durante todo esse tempo, anos, eu sentia um tipo de remorso, de dor, não sei, que nunca pude afastar. Comecei a procurar alguma informação sobre você, ter idéia do seu paradeiro. Consegui, por fim, seu endereço e escrevi algumas cartas a você, mas nunca tive resposta. Pelo que eu soube, você jamais responderia uma correspondência nem telefonaria. Estávamos perdidos um do outro, completamente. Então, eu decidi vir até aqui vasculhar, a partir das poucas informações que eu tinha, sua vida, ter pistas, rastros seus. Acabei localizando você nesta praia. Quero mudar minha vida, por isso também vim morar aqui." Ela tira as mãos da cabeça e olha o mar. Fiapos de imagens a assaltavam, rápidas, sem dar tempo de identificá-los. Qualquer coisa em sua memória gritava, como um gavião na praia. "O tempo em que estávamos juntos, você e eu, ainda estava cravado aqui, meu corpo ainda doía com o que tinha acontecido, com o que, de repente, surgiu como uma coisa indomada, sei lá. Não tenho mais esperança de nada, tudo para mim continua um pântano. Tanto faz, aliás. Mas o que me feriu sempre, o que vem atacando meu corpo há anos, quero enfrentá-lo, de uma vez, sem covardias. Nada mais. É isso, apenas, enfrentar-me, meu corpo quer me enfrentar. E tudo o que eu vier a fazer, quer dizer, a ser, teria que acontecer, necessariamente, se eu pudesse encontrar você, ver você e, principalmente, falar. Demorou, mas consegui. Você me perdoe por eu impor, de certa maneira, essa necessidade que é só minha. Mas é que eu preciso de você. Falar para você. Do contrário, eu seguiria preso a essa pedra terrível. E eu não posso mais." Ela olha para ele sem surpresa. Vê na sua face morena uma fraqueza, sente em si mesma essa fraqueza de um outro corpo no seu, na sua força ignorada, estocada, mas capaz de abrigar o medo, a falta de coragem de um outro. "Quando nós vivemos juntos, eu e você, havia um gato. Ele era seu, na verdade, esse gato amarelado de pêlo grosso, que era arisco com a maioria das pessoas, inclusive comigo, mas se aninhava junto a você com a confiança que só os animais parecem ter. Talvez, além de mim, ele fosse o que você possuía de mais caro. E entre você e o gato, existia um tipo de névoa invisível, um campo em que vocês dois dividiam alguma coisa que eu nunca conheci, não compreendia, mas ligava você a ele de uma forma profunda e sem dificuldades, sem diferenças. Mas você tinha o cuidado e, sobretudo, a segurança de não friccionar com violência esses dois campos, o nosso - você e eu - e o seu com o gato, do qual eu estava, naturalmente, excluído, sem nenhuma intenção prévia, sem planos tramados, nada disso. Eu, simplesmente, sem nenhuma razão explícita, não fazia parte dessa esfera felina em que você se inseria, às vezes, como se estivesse num outro mundo. Então, as coisas começaram a trincar entre nós. O que nós dizíamos um ao outro fazia cada vez menos sentido. O que fazíamos dentro de casa seguia direções opostas, a sua e a minha. Estar juntos numa mesma casa todos os dias foi passando a ser, gradativamente, algo estranho e incômodo. Poucas palavras serviam para ir construindo um ambiente irritadiço e sério. Sentíamos, talvez, que deveríamos evitar nossos encontros dentro de casa. Tudo foi se tornando frio e com um jeito de falso. E mesmo nosso sexo, que era tão bom, resvalou para algo quase insípido. Foi então que você me traiu. No início, não acreditei. Que você fizesse algo sem me consultar ou, pelo menos, sem me avisar depois, era algo com o qual eu não tinha sido acostumado. Mas nessa distância que fomos criando, é lógico que a confiança e a afeição entre nós já tinham desmoronado, e eu ainda não percebera nada, por pura inércia, por medo, quem sabe, de ver claramente tudo o que estava acontecendo. Você me traiu com um amigo nosso. Hoje, penso que ele te acolheu quase como se acolhe um mendigo, alguém perdido na estrada, num ato de consolo. Mas, na época, não foi isso que eu senti. Tentei, quando soube o que você tinha feito, não levar a sério, tomar como um deslize, um engano, mas não pude. Eu sentia dores no meu estômago. Acordava às cinco horas da manhã e, totalmente desperto e lúcido, ativo, ia fazer o café como se houvesse uma viagem urgente pela frente, e você dormindo, o gato me olhando com um misto de desdém e desconfiança. Nesses dias, você estava cada vez mais apegada a ele, ao gato, quero dizer, ele ia para o seu colo, dormia aos pés da cama, quando você cochilava, às vezes, depois do almoço, o que me irritava profundamente, um ódio que eu guardava, em silêncio, sem que você soubesse que algo que era alvo do seu amor me provocava a ira. Ele deixava pêlos pela casa, sobretudo no verão, e me incomodava o hábito dele de estender-se no sofá, na poltrona que eu escolhera para sentar e ler, na cama que eu dividia com você, ele, que eu fantasiava, sem saber, como o epicentro de todo o conflito que se avolumava sob os nossos pés e que, cedo ou tarde, explodiria sem trégua. Um dia, chegando em casa estressado por problemas que eu havia tido no trabalho, discuti com você e escutei uma expressão sua de despeito, de vingança, algo que me chocou imediatamente, vindo justo de você, que eu jamais tinha ouvido dizer algo assim, mas que naqueles dias pesados, sem nada a mais do que tínhamos sido antes, era o final de uma decadência rápida e mesquinha. Nós gritamos. Nem lembrávamos mais - ou não sabíamos - como eram as nossas vozes quando estridentes, descontroladas, furiosas. Naquele momento, entrei no quarto para fugir da situação, me esconder de alguma forma, não sei, e o gato estava deitado no meu lugar da cama. Sem pensar nem dar tempo a que ele percebesse o que estava por acontecer, dei-lhe um soco que o colocou para fora da cama, desnorteado, miando contra mim, perplexo por aquela agressão gratuita, saindo, ainda com certa dificuldade, do seu estágio de sono profundo, quando, fora de mim, gritando com ele, dei um pontapé violento nele, que o fez chocar-se contra a parede, sem tempo de se refazer do espanto, e chutei-o mais uma vez, deixando-o tonto, emitindo uma voz que vinha do fundo da garganta, indignada e rouca, quando outra vez lhe dei um pontapé, mais forte, com minhas mãos fechadas, meus músculos tensos, gritando contra ele, contra o mundo, até que o animal começou a sangrar, tentou caminhar, cambaleante, olhando para os meus olhos como o condenado olha no último instante o seu carrasco sem entender, então dei outro pontapé na cabeça que o fez espirrar sangue pelas narinas, fraquejar as pernas dianteiras, até que vacilou, sem ter conseguido sair do quarto, num uivo fino e desgarrado, em desespero surdo, e eu, completamente sem controle, dei mais um chute estúpido que fez um barulho em sua cabeça, o sangue pingando pela boca, e ele se arrastou devagar para fora do quarto em busca da sensatez, do mundo equilibrado, da paz entre ele e os seres humanos, olhou para você com olhos de embriaguez e letargia, como alguém que recém tivesse ficado cego, e caiu no degrau que dava para o pátio. Estava morto." Ela já não o vê, como se essa narração viesse de algum lugar oculto da praia, sem sujeito, apenas a história se desenrolando, autônoma, até que lhe vieram duas lágrimas, e ela solta um som de dor e de perplexidade, sem saber o que olhar, o que fazer com as mãos, com o corpo. Seus lábios tremiam, ela sente uma espécie de arrepio, e uma náusea tomou conta de seu organismo. "Depois, fui embora, não havia mais nada a fazer ou a dizer. Não procurei você, não telefonei. Sumi. Tempos depois, já no exterior, soube que você estivera num hospital. Quando voltei ao Brasil, recomecei um remorso que pensei que estivesse apagado. Foi quando escrevi a você a primeira carta. Nem vou lhe pedir perdão, simplesmente porque não há perdão. Mas eu precisava falar. Agora, espero ficar um pouco melhor." Ela se levanta sem poder se controlar, se atira contra ele, golpeando-o com socos na cabeça e no corpo, lançando quase-sílabas que não se entendiam, grunhidos de raiva, e ele se defendia como era possível. Exausta, abaixando os braços doloridos, sem fôlego que agüentasse a situação, ela começa a andar de volta para casa, meio trôpega na areia fofa, as faces úmidas pelas lágrimas, e acelera o passo, vai até a área da praia com a areia mais firme, próxima à água, e corre. Ele sentou na areia e permaneceu lá, a fitar o oceano. Tinha vontade, agora, de ficar calado por dias, semanas. E, sobretudo, não pensar. Ela chega em casa sem respiração, entra e vai direto à gaveta da estante pegar as cartas. Olha o nome do remetente, com as cartas tremendo em suas mãos, o nome dela como destinatária, manuseia os envelopes e os devolve à gaveta. Nervosa, vai até a garrafa de cachaça e serve, num copo pequeno, uma dose, que toma de uma vez e solta um grito abafado. Seus olhos estavam de um azul gelado e úmidos, e ardiam. Enche o copo pela segunda vez, pega-o e vai até a janela próxima à mesa e à estante, olhando em direção à praia, e bebe mais um gole, que aqueceu sua garganta, manteve seus olhos molhados e foi desanuviando a náusea que a dominava. Busca os cigarros e acende um. A primeira baforada lhe trouxe um anúncio de pequeno conforto. Ela senta no sofá com o cigarro na boca, o pequeno copo na mão, e fuma. Procura se distrair vendo a fumaça se expandir e ganhar a casa, mas não consegue. Toma o resto da cachaça no copo. Agora, a tremura das mãos se associava com uma vagueza do corpo que a deixava fraca, desmotivada, entregue à languidez de uma memória repleta e esmagadora. Ela se levanta devagar e se serve de mais cachaça, enquanto fuma. Tem o ímpeto de agir, de conformar alguma atividade radical, mas o quê? Então, retorna ao sono inicial de seus músculos, bebe mais um pouco, começa, lentamente, a relaxar o corpo. Mas, em contrapartida, uma angústia vinha subindo de algum fundo sem nome, ganhando sua garganta e seus olhos, e ela começa a verter lágrimas entre soluços sem saber como parar. Uma exaustão a atirava para baixo, a lançava a uma entrega despossuída de tudo, indefesa e vencida. Ela agarra a garrafa, o copo e os cigarros, deixa-os sobre o baú e se deixa cair na cama. Quanto mais relaxa o corpo, mais sente o laço da angústia apertando-a. Serve mais cachaça e toma tudo de um gole só. Sua cabeça começou a entontecer, pesada e quente, deixando-a bêbada, sem conseguir se deter num pensamento ou em alguma lembrança que a tranqüilizasse, apenas pranto e uma melancolia fria. Acende mais um cigarro e puxa a fumaça, engasgando-se um pouco. Pega a garrafa sobre o baú, num gesto precário, serve mais uma dose e põe a garrafa no chão, indecisa e mole. Fecha os olhos e bebe outra vez. Deixa o braço direito ir se entregando à sua própria lassitude, até que o copo caiu no chão. Ainda fuma mais com a mão esquerda, os olhos pesados, a boca entreaberta, a dor na cabeça, até que vai desfalecendo, inerte, rumo ao sono. Quando o homem moreno vinha caminhando da praia em direção à estrada de terra, viu a fumaça saindo da casa dela e correu para lá. Abriu a porta num rompante e, rápido, tossindo com a fumaça e sentindo o calor das chamas vindo da cama, agarrou o tapete e jogou-o por cima dela, batendo com as mãos nas áreas em que acreditava não atingir o corpo dela, puxou o tapete, enrolando-a, a fim de encostá-la junto à cama, quando escutou um barulho de vidro batendo no chão. Olhou de relance e viu a garrafa vazia. Agarrou os pés dela, que gemia de dor, meio sonâmbula, empurrou-a para cima do tapete, e foi então que viu as queimaduras na mão direita, em parte do braço, no rombo aberto na blusa que ela usava, e nessa parte do corpo. Procurou um pano limpo na cozinha, molhou-o bastante e limpou suavemente as queimaduras, quase sem tocá-las, sentindo uma contração no estômago que o impedia de continuar. Foi até o armário do banheiro e achou um envelope de aspirinas. Deu a ela dois comprimidos com água e forçou-a a engoli-los. "Fique quieta e agüente", ele disse. "Vou buscar meu carro e levar você ao hospital. Está me ouvindo?" Ela olha para ele perplexa e transformada. "Agüente e espere! Venho rápido!", ele falou, buscou um lençol limpo, estendeu-o muito lentamente sobre ela e saiu. Correu até encontrar o automóvel, que deixara mais à frente na estrada, perto do armazém. Voltou à casa dela, carregou-a para o banco de trás com cuidado e partiu rumo ao hospital.

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Dias depois, ele foi buscá-la. "Não consegui arrancar uma palavra dela", disse o médico. "Aqui está a receita do que você deve comprar na farmácia. Cuide para que ela faça os procedimentos necessários." E acrescentou: "Você acha que é seguro ela ficar sozinha?". O homem moreno não respondeu. Acompanhou-a do quarto do hospital até o carro, passou na farmácia e adquiriu os remédios, depois levou-a até em casa. Quando entraram, ele sentiu o cheiro de cachaça vindo do chão e viu o lençol queimado, a garrafa derrubada, o maço de cigarros sobre o baú. "Sente no sofá", ele disse, acabrunhado. "Eu não pensei em voltar aqui quando você não estava...", ele falou, com vergonha. "Já vou arrumar tudo isso. Os remédios, vou deixá-los em cima da mesa. Na receita, você pode ver o horário de cada um. Você mesma pode fazer os curativos. Em todo caso, vou vir todos os dias." Ele arrumou tudo em silêncio. Depois, se deu conta de algo e falou: "Você não vai poder cozinhar com a mão assim, e mesmo as outras queimaduras vão doer, se você se mexer muito. Nesses primeiros dias, vou cuidar disso, trarei comida ou farei alguma coisa aqui mesmo." Ele se aproximou dela, que está inerte no sofá, e com um ar envergonhado disse: "Desculpe. É a segunda vez que... Bem, deixe eu cuidar de você nesses dias, não há alternativa. Mais tarde, se você quiser... Eu posso ir embora." Levantou-se. "Vou trazer o jantar mais tarde." E saiu. Sentada no sofá, ela olha os móveis e os objetos como se fosse pela primeira vez, ela sendo uma estranha naquele lugar, e a casa, parecida com tantas outras, mas não exatamente pertencendo a ela. Vinda de uma viagem da qual não lembra o destino, traz, no entanto, algo que lhe era alheio, mas que, agora, fazia parte do seu corpo. Imagens e vozes vinham chegando a ela de um tempo irreconhecível, quase enterrado, obscuro, forçando-a a recebê-las sem a opção de se abster. E, de alguma maneira, essa massa de coisas era ela, parte dela que emergia, desobediente, diante da superfície das horas, que passaram a consistir, de repente, num fluxo cravado de sensações, alterando a placidez do dia-a-dia. Ela não sabe o que fazer com isso, essa investida de significados indecifráveis, manchas em sua memória, que começava, de repente, a mover-se sem projeto, instigando-a também a um movimento neutro e branco, desconhecido para ela. Sedada pela espera e pelos dias amorfos no hospital, ela fecha os olhos disposta a cochilar. De repente, desperta sem ter a noção do tempo que passou. Ainda era dia, mas não deve ter dormido tanto. Não sabe que horas eram, mas, pelo grau de claridade lá fora, devia estar se aproximando o fim de tarde. Ela tem vontade de sair de dentro de quatro paredes. Levanta devagar, um pouco tonta, e caminha a passos pesados até a porta. Abre-a e, parada ali, perscruta o ruído da rua. Por fim, dá dois passos e já está do lado de fora. Nesse momento, escuta o canto de uma andorinha que voava perto da casa. Numa das voltas, ela entrou sob as telhas. Era uma das andorinhas adultas. Logo, apareceu a outra, também produzindo um som que era a forma de comunicação entre elas, e entrou no ninho. Depois de alguns segundos, uma delas saiu voando, imediatamente seguida pela outra. Mas depois uma andorinha menor chegou à beirada do telhado, ergueu as pequenas asas como se as estivesse secando, e partiu rumo ao ar. Era o filhote. Os pais se afastaram, e ele os seguiu, os três desenhando figuras contra o azul do céu, até que os pais voltaram à boca do ninho, mas não entraram, obrigando o filhote a chegar perto do telhado e adquirir a confiança necessária para penetrar naquela minúscula abertura sob as telhas. O filhote vinha até o beiral e se distanciava. Fazia essa ida e volta diversas vezes, até que um dos pais entrou no ninho, depois o outro o imitou, e o filhote não teve alternativa, sob a pressão da necessidade, a não ser tentar o pouso lá dentro. Veio rápido, num vôo certeiro, e num segundo já havia recolhido as asas e colocado as mínimas patas no interior do telhado, desaparecendo lá dentro junto aos pais, os três num alvoroço sonoro que devia significar que algo entre eles fora realizado. Então, ela sente uma lágrima sobre a face, sem ter pensado em nada, sem apegar-se a nenhum acontecimento, somente o fato de quedar estática, ali, mirando os pássaros. Só então, no torpor surpreso da lágrima, é que se lembra do outro filhote, que não chegou a voar, uma lembrança pálida, evasiva, que surgiu apenas depois da lágrima, como se o corpo produzisse efeitos sem ordem, sem causa ou lógica, trazendo de dentro de si uma fatia intacta do passado. Ela senta na soleira para descansar dessa sensação que não suporta explorar por muito tempo. Aos poucos, o dia ia se despedindo. O alaranjado da tarde se tingia de vermelho e, mais tarde, de um lilás rajado do branco de algumas nuvens. Grupos de gaivotas passavam em intervalos de minutos. Ela não sabe para onde elas iam, metódicas, todas na mesma direção, como que voltando para casa. A temperatura baixara, e o ar salgado do mar trazia sua fresca umidade à terra. Ela olha o telhado e vê que as andorinhas ainda não tinham cessado sua atividade. Lá na área do oceano, no fundo do horizonte, uma franja de azul-marinho pintava, paulatinamente, o céu e o alto-mar, confundindo-os. Ela se lembra dos remédios e resolve entrar e verificar os horários, os comprimidos... Dentro de casa, já a escuridão ia se tecendo e tomando conta de tudo, e ela acende a luz, lê a receita e manuseia as caixinhas para ver qual medicamento deve tomar antes de dormir. Nesse momento, ouve o barulho do carro do homem moreno chegando. Em alguns segundos, ele entrou com umas sacolas plásticas de supermercado. Foi até a mesa colocá-las ali e perguntou a ela, que ainda está de pé, ao lado: "Você está bem?". Ela faz que sim com a cabeça e mexe, sem objetivo, nas caixas de remédio e suas bulas. "Trouxe umas coisas para fazer sanduíches", ele disse. "É mais rápido, e depois posso deixar você descansar. Dói?", ele perguntou, vendo-a olhar sua própria mão e parte do abdômen, que estavam com curativos. Ela faz que sim e pega um dos comprimidos. "Não tem cerveja", ele falou. "Nos próximos dias, não é bom você beber. Daqui a uma semana, talvez." Ele pegou um copo, encheu-o de água e colocou-o na mesa. Ela senta, toma o comprimido e permanece absorta. Ele começou a tirar os ingredientes das sacolas e preparar os sanduíches. Fez quatro, cortou-os ao meio e, usando pratos, serviu-os. Ela pega um deles e vai comendo devagar. Durante a refeição, o silêncio era quase completo. Apenas se ouvia, fraca, a mastigação dos dois, que não se olhavam. Na rua, houve um grito de quero-quero ainda ativo no início da noite. Ela come cada bocado lentamente, sem interessar-se pelo sanduíche. A casa, que tinha voltado a ser um lugar familiar, de novo se tornara estranha. O tempo congelou num intervalo elástico, infinito, desprovido de um ponto final ao qual se agarrar e forjar a próxima hora. Ela não levanta os olhos, continua fitando a mesa, como se à sua frente esse outro corpo não reagisse, não provocasse, esvaziado de sentido. Mais um pedaço do sanduíche a ser digerido, e ela sente o peso de tudo, de súbito, concentrado num pequeno ato de engolir, de dotar de sabor esse presente insípido e sem viço. Outro grito de pássaro na noite imensa, e ela lembra que tudo pode ser irremediável como uma náusea incurável, sem apelo, no rumo de um pequeno desastre incontornável, quando se abraça, por fim, um horizonte nulo, indiferente e seco. Ele se levantou para fechar uma janela. "Algo está voando por aí", ele disse. "Talvez seja um morcego." Ela deixa cair o olhar sobre suas mãos, imagina a vida oculta lá fora, em meio à noite, prescindindo totalmente dela, que em nada pode alterá-la, e seus olhos ficaram úmidos, enquanto ela dá uma pausa na refeição. Ele veio por trás dela e parou. Ela fica com o sanduíche na mão sem mordê-lo, tragando, primeiro, essa perplexidade que a ligava ao mundo e que, agora, a reconduzia à sua inexorabilidade, a da memória. Ele pôs a mão direita sobre o ombro dela. "Me desculpe", ele disse a ela, que nesse instante só pensa em pássaros. Ele caminhou ao redor da mesa. "Acho que está na hora de eu ir." Ela permanece de cabeça baixa. "Ah, a louça..." Ela sinaliza seu desacordo. Ele, então, andou até a porta, enquanto ela se ergue. Indeciso, segurando a maçaneta, ele se voltou e indagou: "Posso ver seus curativos?". Ela se dirige até o sofá, senta com cuidado e tira aos poucos a gaze que envolvia a mão direita. Ele se aproximou para ver e se agachou. Ela vai levantando a lusa devagar, e ali havia uma área maior coberta de branco. Ela retira a gaze suavemente, e ele, como se analisasse a ferida pelas suas margens, tocou a pele dela intacta, branca, fora da região afetada. Ela tem uma quase imperceptível retração dos músculos, e ele ficou com os dedos no ar, levantou-se e disse: "Está bem. Acho que você pode fazer café, não? No almoço, vou trazer alguma coisa. Até amanhã". Finalmente, ele saiu, ao mesmo tempo em que ela baixa a blusa. Nesse momento, a dor voltou, envolvendo-a, tomando conta do seu corpo que, agora, parecia ter a consciência da causalidade, essa carência de poder parar o fluxo das coisas, e que a memória atiçada vinha a impulsionar, malévola, na iminência de um estado daqui para frente sem retorno. Era uma carga crescente o que teria de sentir, quando seu corpo recuperasse, como já vinha fazendo, toda a urgência de ser. Então, ela tem de abandonar o sofá a fim de tomar mais um comprimido. Guarda o que restou dos sanduíches na geladeira, põe os pratos dentro da pia, e o cansaço veio abraçando-a sem trégua, e com um peso na cabeça ela arrasta os pés até a cama e se deixa cair, vagarosa, sem vontade para mais nada. Mas a luz tinha ficado acesa, então ela tem que se levantar e, como se carregasse rochas, vai até o interruptor e inunda a casa com a escuridão. Volta à cama esticando a mão esquerda para baixo, evitando bater com as pernas em alguma coisa, e por fim, exausta, tira os calçados e se estende no colchão. Agora, os únicos ruídos eram os dos grilos.

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Quando abre os olhos de manhã, tem dentro de si imagens móveis, manchas que pareciam querer se aglutinar formando algo reconhecível. Fecha os olhos e espera que o sono a envolvesse novamente. Mal distingue os sons que vinham do dia, do céu e do mar, e o que entrevê, como se fosse sob as pálpebras, era uma mistura de visões que, às vezes, se assemelhavam a sons ou falas. Aos poucos, lhe vinham as lembranças de um sonho em fragmentos, e sua memória ia compondo personagens e enredo. Ela mantém os olhos fechados para não sofrer a interferência do ambiente. Então, começa a recordar. Eram três mulheres magras, de cabelos compridos, escuros e soltos, quase idênticas, como irmãs, que usavam roupas que não era possível descrever exatamente, com poucos tecidos, talvez vestidos, mas um tanto esfarrapados, pobres ou apenas uma espécie de túnica jogada sobre o corpo. As roupas eram claras, manchadas de bege ou marrom. As três mulheres se viam belas, assim, sem maquiagem e apesar da roupa precária, e olhavam fixamente para ela. Uma delas trazia nas mãos um novelo pequeno, com fios de lã marrom. Ele não estava completo, já teria sido quase todo usado, provavelmente. Essa mulher - que estava no meio das outras - também carregava nas mãos agulhas enormes, mais ou menos de 10 cm, e uma delas estava fincada em seu corpo, na altura do peito, perto do seu ombro esquerdo. As três mulheres, paradas, a olhavam com certa súplica calada. Lentamente, a mulher que estava no meio deu um passo à frente, ergueu a mão direita até o peito e começou a retirar a enorme agulha. Quando o metal saiu de sua carne, no local apareceu uma pequena nódoa, mas não sangrava. Juntando nas mãos essa agulha com as outras, presas ao novelo de lã, a mulher estendeu os braços e, em oferenda, disse a ela: "Tome. Você tem que enfiar essas agulhas em seu corpo". As três mulheres permaneciam olhando diretamente para ela. "Mas faça isso rápido! Se não enfiá-las logo, as pontas das agulhas enferrujam! Elas enferrujam!" Então, ela abre os olhos. O choque do dia em plena existência e suas coisas reais a perturbaram. Na pia, os pratos da noite anterior descansavam sujos. Do mar, vinha um forte odor de algas jogadas na praia. Do telhado, o diálogo impenetrável das andorinhas. Ela senta na cama. Está um pouco tonta, seus olhos têm dificuldade para se manter abertos, ela pisca e se incomoda com tanta claridade no ar. Levanta-se e vai, meio cambaleante, até a estante e abre a gaveta com a mão direita, que então doeu, e ela se lembra que está ferida. Vários envelopes, lá dentro, a interrogavam sobre sua própria curiosidade. Ela fecha a gaveta e olha lá fora. Era como se alguma estação estivesse começando nesse exato instante, numa mudança marcada de clima, com plantas novas e pássaros visitantes, quando, na verdade, já era a primavera em andamento. Então, sua memória se abriu, e ela vai sendo assaltada, vertiginosamente, por um calidoscópio visual e sonoro que a faz voltar à cama, apoiar-se com a mão esquerda, resistir a sentar, mas o fluxo era ensandecido e firme, atirando-a contra o mundo, contra um presente que tinha sido esvaziado de sentido e de presença, quando a sucessão do Sol e da Lua não era mais do que o marcador de um retorno universal do nada em sua indiferença cíclica, até que, de repente, ela sabe, sem saber como, de tanto e de tudo, sem poder avaliar ou balizar as descobertas, que jorravam de algum fundo inacessível, violento e escuro que, por fim, a jogaram de volta na cama, prostrada, como se tivesse ficado insone por várias noites, e agora era o corpo se descomportando, abrindo os poros de um baú de fatos e palavras, tantas sílabas, que ela quer anotar algumas, antes que a vasta corrente acelerada passe, e ela não possa fixar algum sentido em si mesma, mas não consegue se mover, de tanto espanto. Porém, em meio a esse cinema a toda velocidade em sua cabeça, junta forças e se ergue, volta à estante, agarra o caderno e a caneta, e escreve: "Dor". E nesse instante, lembra da palavra "ai", que a pega de caneta em punho, mas ela não a escreve, deposita a caneta na gaveta, com essa sílaba girando em sua língua, e lhe veio, então, o estranho pensamento de que "ai" é uma interjeição, ao mesmo tempo, para a dor e o prazer. A fome. Ela começa a preparar o café da manhã e tira um sanduíche da geladeira. A água quase ferveu, ela apaga o fogo e passa o café. Quando o vapor subiu, o aroma forte, de repente, fez a ela a ligação de tantos pequenos eventos desencontrados, como a caminhada na praia, o gato amarelado do armazém, a carcaça abandonada de um pingüim, o carro do homem moreno chegando, os livros que ela terá lido algum dia, um copo de vinho tinto pela metade, as andorinhas em círculos... E nessa linha descontínua, tudo se assemelhava em torno - de quê? - desse núcleo ausente, pretérito ou vigente, ainda, quem sabe, à espera de uma sílaba que detonasse a sua inércia. Então, ela sente um grito. O som rasgou o dia, mas dentro dela, sem assustar nenhum bicho nem atingir os vidros. Foi um grito sufocado atrás da pele, imprevisto, traçado num segundo inapreensível, tênue e impreciso. Ela leva a mão esquerda à boca, involuntariamente, como a reprimir aquilo que já existira, mas que, paradoxalmente, ficara atrás da expressão, escondido na garganta. Senta à mesa e, ainda trêmula de um inusitado despertar, como todo o sanduíche e bebe duas xícaras de café preto. Enovelada, já, num campo no qual as sensações, as afecções, se insinuavam por detrás das palavras, forçando-as a explodirem sem descanso como bolhas infinitas, ela tem ganas de voltar ao mar e ao seu murmúrio eterno, lá onde o silêncio profundo se disfarçava do som das ondas para marcar, mais fortemente ainda, sua incomunicabilidade. Ela toma um dos remédios e sai em direção à praia. Veio-lhe uma vontade de correr, mas não pode, por causa das queimaduras no corpo. Vai observando os detalhes do caminho, sentindo os cheiros da manhã de setembro, ouvindo os sons da sobrevivência das aves, e quando chega perto da faixa de areia, tira os calçados, levando-os na mão esquerda, e passa a andar com os pés descalços na areia, a essa hora já aquecida pelo Sol. O esforço lhe causa um incômodo no abdômen, então ela procura a parte mais dura da areia, rente ao mar, e mergulha os pés nas frias ondas que morriam na praia em sua borbulhante brancura. Os rochedos no canto esquerdo da praia brilhavam, em suas chapas escarpadas, com seus flancos molhados pelo estrondo das ondas. No céu, mergulhões ativos acertavam sua visão para, penetrando qual uma bala na massa do oceano, agarrar pequenos e desavisados peixes. No chão, olhos de siris se imiscuíam na textura granulada da areia para observar os seus perigos. Tudo agia numa doce subserviência, e ela abarca esse conjunto visível como se mascasse cada sílaba de uma legenda. E os sons em quantidade que provinham de todo lado, dispersos pelo vento, preenchendo de tal modo alguma lacuna entre os instantes, tornavam qualquer indício de mudez um ato fora de lugar, insólito, diante da voragem com que tudo se expressava para ela. Subitamente, num espaço desenhado pelo halo do dia, em 360 graus de luz, o mundo reverberava como uma música rara e estranha, em concerto aleatório e puro, sem a consonância de uma partitura planejada ou racional, embora todas as coisas significassem, além de sua concreção física e de seus limites visíveis a olho nu, em seu contorno de luz e de sombra, num desafio a toda linguagem. E tudo zunia e badalava seu timbre exasperado de vida, que ela retém em si, quando escuta, também, sua própria respiração, o coração pulsando, os mínimos ruídos do seu corpo em movimento. Ela anda muito, e seus pés foram ganhando peso e ardência, assim como as áreas queimadas de sua pele, em superfície quente e áspera, por tanto tempo, e de vez em quando ela volta a molhá-los nas sobras de ondas frias, com alívio. O Sol já tinha avançado sobre a praia, cobrindo-a com cega luminosidade, que a obrigava a procurar abrigo em alguma sombra. No lado norte, território de dunas e vegetação de restinga, não havia árvores próximas. Ela caminha mais, até o costão rochoso no final da praia, e começa a investigar, até que encontra, em suas reentrâncias úmidas e lisas, um recanto sombreado. Instala-se ali, perto do mar e do barulho líquido dos choques contra as pedras, onde só se viam baratinhas d'água, siris ali na areia, e um que outro peixe que vazava a parede verde e transparente das primeiras ondas. Acima das pedras, uma gaivota passou gritando. Lá fora, em alto-mar, um navio se deslocava lentamente. Nessa paisagem toda acesa e vibrando sua densidade na manhã aberta, ele era a única coisa que parecia silenciosa, discreta. Tudo ali se movia em rotação frenética, só o navio, em sua pesada envergadura, se assemelhava a uma linha que cruzava, incólume, por trás das coisas e de sua atualidade, como se fosse a medição incognoscível do tempo. Cansada, ela fecha os olhos. Mas a luz indômita, que penetrava até nas próprias áreas escuras, clareando sua negra teimosia em serem sombras, afetava suas pálpebras translúcidas. Encosta-se ali nas pedras com o corpo quente, zonas doloridas sob os curativos, e se dá conta, tardiamente, de que esteve tempo demais sob o calor do Sol, e agora, acuada pelo desconforto, permanece estática e tem a impressão, detida nessa ilha de frescor, de que tudo parou de repente e que, se fosse possível, seu corpo também cessaria suas funções e abraçaria, amigável, as rochas. Mas isso era apenas parte do centro de todo o movimento: a inércia. E ansiosa por descobrir o que seu corpo se negava a entregar, desafeito à expressão mais simples, escondido que estava sob uma pele de tempo e esquecimento, ela sente, nesse instante, que a dor ia soletrando nela sua carência solidária, que algo mais do que a dor, remexendo em seus órgãos e músculos, em seus nervos atiçados pela falsa espera, em sua garganta seca de sílabas e sonhos, ia gravando em sua carne o cerne de um desejo. Era como se ela quisesse, ensandecida pela urgência, vomitar bolhas que tinham a premência de estourar pelos ares, como uma pele queimada pede água, como uma vida ressequida solicita chuva. Ela abre os olhos descontente consigo. Outra gaivota emitiu seu alarido aéreo, e o oceano rugia sua doce fúria junto às rochas. Ela sai suavemente do recanto sombreado e busca a beira do mar. O Sol, a pino, já virava o meio-dia na trajetória de setembro. Ela avança até as águas. Siris se escondiam em suas tocas. Ao longe, o homem moreno vinha em passo rápido e seguro, inquieto pela ausência dela em casa. Da zona onde a espuma se formava, era possível enxergar mais peixes nadando na horizontalidade esverdeada e cristalina da onda em ascensão. Sentindo a fria massagem da marola, ela dá mais dois passos. Ele apressou o passo até chegar mais perto. O navio ainda se via, negro e bruto, no encontro do céu com o mar, qual um objeto de decoração, parecendo imóvel. Ela começa a tirar a roupa, e o frio da água se chocou contra a quentura do seu corpo, provocando-lhe arrepios. Ele, que também vinha vestido, foi tirando a camiseta e, ainda de calças, num pudor acanhado, entrou na água numa linha diagonal para alcançá-la. Uma primeira onda, bastante fraca, alcançou as coxas dela, o que a fez dar um pequeno pulo. "Mônica!", ele chamou, alto, de cerca de dez metros de distância. Ela molha a mão direita e começa a sentir uma ardência. Sem hesitar, dá mais dois passos, e outras ondas rebentaram em sua cintura, respingando água em sua barriga. Quando ela decide encarar o mar salgado e sua ardência latente, banhando-se até o peito, sua pele começou a doer. Entre o frio e o sal da água, ela vai sentindo como agulhas na carne ou um fogo gelado que a consumiria sem clemência. "Mônica!" Sem dar ouvidos a ele, ela entra mais fundo naquela água fresca e abrasadora. Então, em meio àquela força ácida que a envolvia sem volta, se ouviu: "Ai!". Ela lançou o grito de cada poro enlouquecido pela farpa ensolarada de sal, sem entender, sem prever nada, porque não foi ela quem gritou, mas, antes dela, seu corpo. "Ai!", numa careta atroz, que depois se desfez numa vermelhidão das faces, numa coceira espetada a qual ela não podia acudir, as áreas queimadas já sem as gazes, caídas na água. Ele, por fim, chegou junto dela e agarrou-a pelos braços para puxá-la dali, quando ela gritou: "Aaaiii!!", mais uma vez a ele, com o rosto transtornado em desespero. "O que você está dizendo?!", ele perguntou, incrédulo, ao que ela não parava de gritar essa palavra na qual cabia inteira em seu tempo ressecado e revivido, e a qual ele escutava, perplexo, saindo de dentro dela articulada e clara em sua sanha de dor, e ele, ainda estupefato, segurou-a pelas faces e gritou: "Você disse ai!, Mônica? Você disse ai!?", ele repetiu, fora de si. "Sim!", ela falou, os cabelos ao vento, molhada de água e de salitre, com os olhos vertendo gotas de tanto Sol, olvido e sal, sorrindo em meio à queimadura que a água do mar atualizava em sua pele, arfando em dor e em surpresa, gritando "Sim!" para o oceano, para os pássaros, os peixes e os siris, entregando-se inteira a esse mergulho em si mesma que, por mais ferino e ácido que fosse, nenhuma dor, nenhum silêncio poderiam mais deter.

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São Martinho (SC), janeiro de 2003 - Alfredo Wagner (SC), fevereiro de 2007.


[1] * RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. A canção de amor e de morte do porta-estandarte Cristóvão Rilke. 2. ed. São Paulo: Globo, 2001, p. 86. Tradução de Paulo Ronái e Cecília Meireles.