O lugar do escritor: ensaio sobre Emil Cioran
Renato Tapado
Nota introdutória
As obras citadas neste livro são relacionadas a seguir, com a abreviatura dos títulos entre parênteses. As referências bibliográficas completas se encontram no final.
Renato Tapado
Livros de Emil Cioran citados: Breviário de decomposição (BD), Silogismos da amargura (SA), História e utopia (HU), En las cimas de la desesperación (CD), El ocaso del pensamiento (OP), Conversaciones (C), Ejercicios de admiración (EA), Bréviaire des vaincus (BV), La tentation d'exister (TE), De l'inconvenient d'être né (IEN) e Aveux et anathèmes (AA). Outros livros:Gabriel Liiceanu: E. M. Cioran: los continentes del insomnio (EMC) e Fernando Savater: Ensayo sobre Cioran (ESC).
Desconfiar dos pensadores cujo espírito só funciona a partir de uma citação.
Emil Cioran, Aveux et anathèmes, p. 111.
O fantasma de Cioran
Possivelmente, é o incômodo provocado pelos textos do romeno Emil Cioran (1911-1995) que o torna um escritor praticamente desconhecido no Brasil, com poucos livros traduzidos, apesar de ser publicado na França pela prestigiosa editora Gallimard já desde 1947[1] e, atualmente, ser conhecido por toda a Europa e em diversos países não europeus. Com efeito, se para que um autor exista são necessárias a aprovação e a circulação de seu nome e suas obras dentro do sistema literário composto, principalmente, pelas universidades, pelas editoras e pela imprensa, é concebível que Cioran sofra uma certa rejeição em alguns meios, como escritor de aforismos como esses:
"Objeção contra a ciência: este mundo não vale a pena ser conhecido." (SA, p. 25)
"Nunca se criticará demasiado o século XIX por haver favorecido essa corja de glosadores, essas máquinas de ler, essa malformação do espírito que encarna o Professor - símbolo do declínio de uma civilização, do aviltamento do gosto, da supremacia do trabalho sobre o capricho." (SA, p. 17)
"Tudo o que é forma, sistema, categoria, plano ou esquema procede de um déficit dos conteúdos, de uma carência de energia interior, de uma esterilidade da vida espiritual." (CD, p. 72)
"A universidade é o espírito de luto." (EA, p.132)
Entretanto, os livros de Cioran foram sendo cada vez mais lidos e, atualmente, atingem grandes tiragens. Paulatinamente, um crescente número de leitores foi descobrindo a obra desse romeno que se auto-exilou em Paris em 1937 (passando, depois, a escrever em francês), o que pode evidenciar, talvez, uma mudança na leitura na medida em que se aproximava o final do século XX. Como afirmou o próprio Cioran sobre o livro Silogismos da amargura:
"Estes Silogismos, publicados em 1952, passaram durante muito tempo despercebidos. Desde que apareceram em edição de bolso, seduziram os jovens. Só uma geração desiludida poderia se entusiasmar por uma visão tão negativa da história. Só da história? Da existência em geral." (SA, p. 9)
Se hoje está na moda, na esteira da mal chamada "pós-modernidade", a idéia do fim das utopias e das grandes narrativas de raiz iluminista, Cioran já atacava esses ideais humanistas em favor de uma crítica radical não só ao projeto "moderno", mas à própria civilização. Já em O ocaso do pensamento, escrito em romeno e publicado em 1940, ele afirma:
"Enquanto os homens não prescindirem do enganador embelezamento do futuro, a história continuará sendo uma fustigação difícil de entender." (OP, p. 220)
"O terror é uma memória do futuro." (OP, p. 230)
"Tudo quanto o homem cria se volta contra ele. E não só tudo o que cria, mas tudo o que faz. Na história, um passo adiante é um passo atrás." (OP, p. 257)
Há muitos modos de ler Cioran, e diversas linhas, evidentemente, podem ser desenroladas a partir de seus textos. No entanto, me interessa aqui, fundamentalmente, vislumbrar nos livros de Emil Cioran o lugar do escritor, que é o tema deste ensaio.
De onde vem o escritor
O escritor não tem origem. A mitologia de um conjunto de causas explicativas da escritura se esfacela nos textos de Cioran. "Dom", "talento", "inspiração", "influência" são termos que nada dizem sobre o gesto radical que é agarrar a caneta e enfrentar-se com o papel em branco. Ao contrário dessa mitologia ocidental que busca a origem em tudo, a causa primeira das ações do artista, Cioran resvala para um vazio de origem, lugar sempre inapreensível, oco, sobre o qual tudo se pode dizer, na tentativa de cercar o escritor de uma definição adequada, mas falsa, já que esse lugar é um não-lugar, uma espécie de atopia que, justamente, marca a escritura. A literatura não é inata nem genética. Não se nasce escritor, é claro, mas tampouco há um dom incrustado no corpo de quem, em certo momento de sua vida, se decide a escrever, premido por uma necessidade sem causa. A atribuição de um dom ao escritor vem do sistema literário que o envolve, inexoravelmente. No entanto, aferrar-se a esse dom ou ao talento, para Cioran, é construir um "estilo" que não tem nada a ver com a autenticidade radical da escritura. Os escritores que "escrevem bem" não chegam ao âmago da relação que Cioran busca com a palavra e com o mundo. Eles abraçam a expectativa que o campo literário lhes cobra, e, na maioria das vezes, essa "qualidade" do texto mascara uma insuficiência de vida. "Só possuem uma existência verdadeira aqueles a quem a natureza não sobrecarregou com nenhum dom", escreve Cioran (SA, p. 17). O escritor mais interessante é aquele para quem a vida constitui um problema e a matéria mais densa e difícil de sua literatura, o que não coincide com a exigência de um "bem escrever", seja qual for a definição dessa qualidade. Esse escritor está tão mergulhado na incessante escavação do real e da condição humana, que seu "estilo" ou "talento" são secundários. Ao contrário, aquele que escreve "belos textos", muitas vezes, não passa de alguém que circula ao redor dessa matéria indômita, mas não consegue penetrá-la. E é essa experiência de vida, esse olhar que atravessa a trama humana e extrai dali algo que a maioria das pessoas procura afastar de si, que faz de alguém um escritor. Por isso, pode haver mais gente interessante que os artistas, gente que não "exprime" nada, não "cria" nada, e seu único "talento" é viver e, para sorte de Cioran, conversar. "Qualquer pessoa, uma porteira, pode ter uma experiência maior que um filósofo" (C, p. 46). O espanto diante dessa vida que assusta pode se dar com qualquer um, e não raro Cioran encontrou em diversas pessoas, com as mais diversas profissões, menos artistas, uma riqueza de experiência que constituía, por si só, algo mais valioso do que milhares de livros.
"Lemos livros, claro, eu, em todo caso, leio muitos, talvez demais, mas tudo isso carece do menor sentido. Se a vida tem algum sentido para mim, é, ao contrário, quando estou na cama e deixo errar meus pensamentos sem objeto." (C, p. 197)
Da mesma maneira, a "formação" de um escritor não explica sua escritura, não se forja como "origem" do ato de escrever. Talvez, sim, o encontro de suas obsessões com alguns textos que provoquem nele essa abertura perplexa ao mundo. "Pode-se devorar bibliotecas inteiras, que não se encontrará mais do que três ou quatro autores que vale a pena ler e reler" (OP, p. 47). Essa desvalorização do literário faz devolver ao embate com a vida essa energia que, às vezes, se acredita existir na arte. Desmistificando os artistas em geral, a categoria "arte" ou a "literatura", Cioran vê no pensamento e na articulação de algum gesto - qualquer gesto - a fonte de uma inesgotável reflexão sobre o mundo e, ao mesmo tempo, uma possibilidade mesmo de viver. "As pessoas mais interessantes são as que não escreveram nada" (C, p. 106). Despossuídas da obrigatoriedade de uma "expressão artística", situadas fora de um sistema no qual elas teriam que se apresentar, se comportar dentro de expectativas, antes de mais nada do público, essas pessoas ensinam mais a Cioran que uma infinidade de artistas. "Quem escreve é alguém que se esvazia, ao cabo de uma vida, acaba no nada, e por isso são tão pouco interessantes os escritores" (C, p. 235). Mas pode ser interessante o que eles escrevem, desde que aferrados a uma urgência do corpo, a uma necessidade inexplicável e incontrolável que os faz se desviarem do "sistema literário": é o caso do próprio Cioran. Afastado tanto da Filosofia - que foi sua formação, e dentro da qual chegou a trabalhar - quanto da literatura - já que seus textos não cabem em nenhuma classificação de gênero literário, a não ser o "aforismo", que linda com a Filosofia -, Cioran não quer ser "escritor", muito menos "filósofo". O que lança ao papel são pensamentos em voz alta ou, talvez, gritos. Um grito é algo que não pode ser falsificado. Não há como "embelezá-lo", "trabalhar" seu significante, "polir" sua expressão. Não interessa a Cioran, portanto, que essa escritura seja "estética", mas "verdadeira".
"O 'talento' é o meio mais seguro de falsear tudo, de deformar as coisas e de equivocar-se quanto a si mesmo. [...] Por isso, seria difícil imaginar universo mais falso que o universo literário, ou homem mais desprovido de realidade que o homem de letras." (SA, p. 17)
Essa "verdade" da escritura, para Cioran, é carregada de uma força do corpo que escapa às definições de qualquer sistema, filosófico, artístico ou literário. Não se trata de algo "novo", mas de algo "intenso".
"Em todos os meus livros, trato da intensidade. Não pretendo nenhuma originalidade sobre a concepção da existência. Há algo mais trivial do que a morte?" (EMC, p. 54)
E é essa intensidade, que provém da fricção do corpo do escritor com o tempo que o envolve, que faz de uma certa escritura algo que abala. Então, não se trata de um "dom" literário, mas de um "tom":
"Diz-se: 'Tal autor não tem talento, somente um tom'. Mas o tom é justamente o que não se saberia inventar, é algo com o qual se nasce. É uma graça herdada, o privilégio que alguns têm de fazer sentir sua pulsação orgânica, o tom é mais que o talento, é sua essência." (IEN, p. 38)
Esse tom, próximo da música, certamente, sobre o qual não se tem controle, é quem baliza o gesto de escrever. De onde ele vem? Desse próprio gesto de escrever. Ele não é anterior à ação da mão com a caneta, não está predeterminado, vai se desenvolvendo à medida que o escritor escreve. E se vem carregado de um passado, tampouco este é determinado ou identificado. O que dá consistência ao "tom" de um autor são suas formas de roçar o mundo, alimentadas por um passado incrustado em seu corpo. "As 'fontes' de um escritor são as suas vergonhas; quem não as descubra em si mesmo ou as eluda está condenado ao plágio ou à crítica" (SA, p. 15).
A verdade da escritura
Esse "tom" do escritor - que se entrelaça com sua experiência de vida -, já que não se trata de um "bem escrever", se revela nessa intensidade de que fala Cioran, uma força da escritura nutrida por uma radical incompatibilidade com o mundo. É dessa inadequação ao cosmo que o escritor retira um impulso ao gesto da escrita. "Há coisa mais vil do que dizer sim ao mundo?" (BD, p. 67) É dessa fissura entre o corpo e as coisas que a matéria textual se alimenta, e a "literatura", no sentido de estilos, gêneros ou temas que vendam mais livros, pode consistir num modo de mascarar essa fissura. Da mesma forma, a busca pela "originalidade" ou pela "invenção", ingenuidade das "vanguardas". "Penetrando no inferno literário, você conhecerá os artifícios e o veneno" (TE, p. 105). Uma escritura, portanto, que busca sua própria raiz (é radical) para melhor expor sua impossibilidade de se situar em algum ponto confortável do mundo prescinde da "literatura", mas também das formas acadêmicas de expressão, como os textos filosóficos. "A filosofia é a arte de dissimular os tormentos e os suplícios próprios" (CD, p. 52). Se o escritor quer se investigar a ponto de enxergar em seus gestos a própria materialidade ferina da sociedade humana, não pode fugir de si. Nesse sentido, a escritura não tem a ver com a "beleza", com a "literalidade", mas sim com um choque. "Não acredito na literatura, só creio nos livros que expressam o estado de ânimo de quem escreve, a necessidade profunda de libertar-se de algo" (C, p. 104). Escrita pegada ao corpo (não há outra possível), empenhada em não mascarar essa corporalidade, mas acusar nela sua força de negação. Assim, há mais verdade da literatura que na Filosofia. "Muito melhor que na escola dos filósofos, é na dos poetas que se aprende a coragem da inteligência e a audácia de ser nós mesmos" (BD, p. 105). Audácia que, na maioria das vezes, os escritores não têm, preocupados que estão com o "sistema literário", tanto em seu aspecto "estético" como em seus jogos de poder.
"Tendo conhecido ao longo de minha vida alguns filósofos e bastantes escritores, observei que só lhes interessam as pessoas na medida em que vêem nelas admiradores, discípulos ou simplesmente aduladores." (EA, p. 133)
O mesmo se poderia dizer de professores universitários. Essa verdade, então, é da escritura, mas não necessariamente do escritor. O corpo é, de certo modo, outra escritura, tecida por infinitos textos. Quando Cioran fala da autenticidade do escritor, não reivindica uma coerência ou uma opinião incontestável do autor, algo que apresentaria seu "talento". Trata-se aqui de uma exposição a esse próprio cruzamento que os diversos textos do mundo perfazem nele. "É estúpido imaginar que a verdade depende da escolha, quando, na realidade, toda tomada de posição equivale a um desprezo da verdade" (EA, p. 17). Ao escrever, o escritor não "opina", ele lança uma provocação sem provas nem conclusões. O próprio Cioran aponta para a contradição como princípio enriquecedor da escritura, acusando os discursos científicos e acadêmicos de forjarem um "sistema" que não admite brechas, no qual a contradição é condenável. "A pior forma de despotismo é o sistema - em filosofia e em tudo" (IEN, p. 140). Por exemplo, por mais que lance ataques ao mundo, Cioran se apega a ele como se seu corpo tivesse uma necessidade inadiável de viver. O tema do suicídio, que perpassa toda a obra de Cioran, desloca-se em função da própria escritura. "Escrever sobre o suicídio é vencer o suicídio" (C, p. 40). Quanto mais Cioran acusa a falta de sentido do mundo, sua irrealidade e sua inconsistência, mais seu corpo precisa se atirar à produção de textos que, extraindo de si mesmo a realidade dessa incompatibilidade, acusam essa fricção entre escritor e mundo que é o cerne da atividade literária. "A imprecação é uma adesão à vida sob a aparência de destruição; um falso niilismo" (OP, p. 91). Pois o niilismo seria, talvez, uma filosofia, uma proposição, uma maneira de convencer. Mas Cioran desliza para longe dessas determinações. Ele não propõe nada, apenas expõe a fratura do sentido de tudo. Diferente é o caso daqueles que escrevem para professar, ensinar algo. "Sua mania de tagarelar, de doutrinar, sua sabedoria de porteiro, devia fazer o protótipo, o modelo do literato" (TE, p. 107). Para fugir de si mesmo e do enfrentamento dessa matéria indômita que é o vazio, há escritores que dão voltas em torno de si e de sua relação com as coisas, sem, no entanto, abordá-las com rigor, a não ser realizando uma abordagem de "idéias", de noções que, no sistema literário e acadêmico, se consideram "importantes". "A partir do momento em que um escritor se disfarça de filósofo, pode-se estar certo de que é para camuflar mais de uma carência. A idéia, um biombo que não esconde nada" (AA, p. 101). No caso de Cioran, nem mesmo a própria escritura carrega importância.
"Houve um tempo em que escrever me parecia uma coisa importante. De todas as minhas superstições, essa me parece a mais comprometedora e a mais incompreensível." (IEN, p. 234)
Fantasiando-se de pensador, o escritor busca dirimir sua incompletude para afirmar-se como alguém que constrói um sistema coerente. Mas: "A desonestidade de um pensador se reconhece pela quantidade de idéias precisas que enuncia" (SA, p. 24). Por outro lado, há os que suprem a falta de uma radicalidade na relação com o mundo e com a própria escritura multiplicando a própria escrita:
"O medo da esterilidade leva o escritor a produzir acima de suas possibilidades e a acrescentar às mentiras vividas muitas outras que toma emprestadas ou forja. Sob toda 'Obra completa' jaz um impostor." (SA, p. 16)
Além disso, a "obra" é a conclusão, para muitos escritores, de seu "trabalho" com a linguagem, de tal modo que ele coroa esse trabalho com uma eficácia estética que o eleva à categoria de "grande escritor". No entanto, a verdade dessa obra, para Cioran, muitas vezes se encontra em outros lugares. "A verdade sobre um autor deve se buscar em sua correspondência, não em sua obra. A obra é, com freqüência, uma máscara" (EA, p. 205). Do lado dos filósofos, há a tentação de, a fim de darem sentido à própria obra, emprestarem um sentido ao mundo. Para Cioran, a construção do sentido não passa de um positivismo, de um "progressismo". Detectar um sentido na ação dos homens, perceber uma coerência em seu uso do tempo no planeta, mais uma vez, aparta o escritor de seu corpo para tramar uma ficção. "Há mais honestidade e rigor nas ciências ocultas do que nas filosofias que atribuem um 'sentido' à história" (SA, p. 81). E fazedores de textos de todas as latitudes, abstendo-se de afundar as mãos na impossibilidade nua e crua de um sentido, usam essa ficção para criar proposições, ações, programas e lançamento de "paradigmas". O extremo dessa ficção é a ação dos que trabalham de um ponto de vista político.
"O que fala em nome dos outros é um impostor. Políticos, reformadores e todos os que reivindicam um pretexto coletivo são trapaceiros. Só a mentira do artista não é total, pois só inventa a si mesmo." (BD, p. 25)
A verdade, então, da escritura, não prova nada, apenas acusa, sem cessar, a impossibilidade da construção de uma verdade propositiva ou acabada. "A Verdade? Encontra-se em Shakespeare; um filósofo não poderia apropriar-se dela sem explodir com seu sistema" (SA, p. 88).
Uma escritura do corpo
Para Cioran, nada mais nefasto ao escritor do que se submeter a um sistema racional, sem contradições, em sua escritura. "A razão: ferrugem de nossa vitalidade" (TE, p. 43). Pensar sobre o que escrever, planejar uma "obra", seguir uma "tendência" literária ou abraçar idéias ou teorias é minar a autenticidade, a verdade de uma escritura.
"Tudo o que escrevi é o fruto de circunstâncias, de acasos, de conversas, de ruminações noturnas, de crises de abatimento mais ou menos cotidianas, de obsessões intoleráveis." (ESC, p. 17)
O gesto de escrever expressa não uma idéia, mas uma situação do corpo em relação ao mundo. Um texto não é o resultado de uma determinada concepção articulada em linguagem, mas é a própria ação do corpo ao mesmo tempo em que um pensamento sem controle se elabora, sem apegar-se a um "conhecimento" prévio.
"É esterilizante seguir uma doutrina, uma crença, um sistema - para um escritor, sobretudo; a menos que ele não viva, como costuma acontecer, em contradição com as idéias que ele se reivindica. Esta contradição, ou esta traição, o estimula e o mantém na insegurança, no embaraço e na vergonha, condições propícias à produção." (IEN, p. 193)
Não que Cioran advogue por um "conteúdo interior", fonte de uma "verdade" qualquer. Na realidade, os conteúdos atravessam o corpo, se fixam nele por uma sorte de fricção entre o organismo e o mundo que faz com que certas idéias, certos sentimentos, certos textos "peguem" no escritor.
"Meus livros, minha obra... O lado grotesco desses possessivos. Tudo se deteriorou desde que a literatura cessou de ser anônima. A decadência remonta ao primeiro autor." (AA, p. 104)
A literatura não é uma transferência de idéias, mas de afecções. "Criar é legar seus sofrimentos, é querer que os outros mergulhem neles e os assumam, impregnem-se deles e os revivam" (HU, p. 92). Por isso, Cioran não reivindica para a escritura uma coerência nem a justeza de um juízo, mas sim a potência de um gesto, a intensidade de que já falei. "Só se torna realmente lírico quem passa por um profundo transtorno orgânico" (CD, p.16). Avesso a deixar-se enquadrar em algum sistema ideológico, Cioran não evita, entretanto, escrever sobre ideologia ou sobre política. Como tudo, essa seria uma autocensura inaceitável. Da mesma forma como não elabora um projeto de texto, tampouco reprime algum assunto. O que importa para ele é que o texto seja a expressão de uma indignação orgânica.
"Gosto do pensamento que conserva um sabor de sangue e de carne, e à abstração vazia prefiro muito mais uma reflexão que proceda de um arrebatamento sensual ou de um desmoronamento nervoso." (CD, p. 44)
Novamente, Cioran se imiscui na contradição, como é de seu gosto. Atacar o mundo não implica negá-lo completamente ou se retirar dele. Trata-se de uma "[...] paixão: eu não sou pessimista, sou violento" (C, p. 20). Ao mesmo tempo, esse ataque ao mundo vem daquela indignação que é orgânica, mas na forma de um pensamento. No entanto, pensar é, também, atacar o próprio corpo. "Uma idéia extingue um prazer e cria um gozo. [...] Só se pensa quando a vida se detém" (OP, p. 157). A utopia da felicidade seria, assim, não pensar, somente deixar o corpo fluir num tempo inapreensível. Daí a atração que o budismo sempre exerceu em diversos artistas. Mas Cioran ironiza esse fascínio, pois vê no homem ocidental a impossibilidade de compatibilizar ascese e paixão, repouso e violência. Então, o que se expressa na escritura não é, de modo algum, algo apaziguador daquela fricção do corpo com o mundo. "Um pensamento seca mares, mas não pode enxugar uma lágrima" (OP, p. 161). Atravessando toda a obra de Cioran, está outra contradição, entre a atividade e a ociosidade. "Acho que meus pensamentos se reduzem a isto: viver sem objeto" (C, p. 29). Inapto para a ação, recusando-se a exercer um ofício, Cioran passa o tempo ruminando sobre o nada e escrevendo para não se exasperar a ponto de explodir. A "atividade", em todo caso, é pensar e escrever. "Sofrer é a maneira de estar ativo sem fazer nada" (OP, p. 93). Como preencher os dias, como não se lançar ao suicídio? Este é o tema permanente da escritura de Cioran, salvar-se do tédio cotidiano até o dia seguinte. "Entediar-se é mascar tempo" (SA, p. 34). Qualquer atitude que tenha alguma conseqüência prática parece de antemão inútil. Às vezes, parece que a própria decisão se deve apenas a uma postura corporal: "Tomo uma resolução de pé; deito-me e a anulo" (SA, p. 34). Sobrevivendo a uma visão lúcida das coisas, deparando-se com o nada cotidianamente, não há mais ação que instaure algum objeto, somente o ócio. "A preguiça é um ceticismo da carne" (OP, p. 163). Isso envolve o próprio estilo, já que seria incoerente a construção de grandes textos, como um romance ou um tratado filosófico, com um corpo que se recusa às grandes ações. Daí a necessidade de Cioran escrever aforismos, textos curtos. "[Escrevo fragmentos] porque sou preguiçoso. Para escrever algo tramado eu teria que ser um homem ativo. Eu nasci no fragmento" (C, p. 61). Além disso, essa escritura respeita o corpo, não parte de uma necessidade "intelectual", mas orgânica: "A maneira de um escritor é condicionada fisiologicamente: ele possui um ritmo próprio, insistente e irredutível" (TE, p. 128). Se o que resta, na ociosidade, é escrever e ler, também essas "atividades" são circunscritas ao corpo. O gesto que grafa o desconforto no papel é conseqüência de uma inquietação. "Todo pensamento deriva de uma sensação contrariada" (IEN, p. 94). Os temas a serem escritos provêm de estados de ânimo, mais do que a escolhas conscienciosas.
"As 'estações' do espírito estão condicionadas por um ritmo orgânico; não depende de 'mim' ser ingênuo ou cínico: minhas verdades são os sofismas de meu entusiasmo ou de minha tristeza." (BD, p. 102)
E a leitura, mais do que uma análise do que seriam os sentidos de um texto, é, na verdade, a identificação quase orgânica com algo do qual não se tem a definição nem o controle, mas que afeta o corpo com uma intensidade que faz de um determinado autor alguém próximo:
"Só conheço uma visão da poesia que seja inteiramente satisfatória: é aquela de Emily Dickinson, quando ela diz que, na presença de um verdadeiro poema, ela é presa de um tal frio, que tem a impressão que nenhum fogo a poderia aquecer." (IEN, p. 61).
O lugar do escritor
Distanciando-se de qualquer "função", seja pedagógica, seja estética ou mesmo filosófica, em que ponto o escritor se situa? Se ele é avesso tanto à universidade quanto às outras instâncias culturais institucionalizadas, e se tampouco se acomoda às agrupações literárias ou ao sistema que reúne editoras e imprensa, que lugar ele ocupa? Cioran é refratário a qualquer noção de pertencimento. "Me considero um marginal, fora da literatura" (C, p. 40). Essa marginalidade é composta de duas renúncias: à "forma" literária e ao sistema literário. Do ponto de vista da forma, Cioran recusa, ao mesmo tempo, a idéia do "gênio", do "grande escritor", do autor de "vasta obra". Seus livros são, em geral, pequenos. Seus textos são curtos; a maioria deles, aforismos.
"Não sou senão um privat denker - um pensador privado -, tento falar do que vivi, de minhas experiências pessoais, e renunciei a fazer uma obra." (C, p. 80)
Sua recusa em estabelecer essa "obra" é coerente com sua idéia de não construir um "sistema", nem filosófico (um "tratado") nem estético. "Não existe maior prazer que acreditar ter sido filósofo e não ser mais" (OP, p. 29). O estilo de Cioran, então, passeia entre a literatura, a Filosofia e o ensaio, sem se deter num gênero determinado. Seus livros jamais poderiam ser inscritos em um concurso literário tradicional - romance, conto ou poesia -, nem mesmo num de ensaios. Não obstante, seus escritos foram objeto de diversos prêmios - todos, com exceção do primeiro, recusados por Cioran. Tampouco algum livro seu serviria como uma "tese" ou um trabalho acadêmico. "Uma das melhores coisas que eu fiz na minha vida foi romper totalmente com a universidade" (C, p. 34). Dentro dela, o escritor pode se acomodar a uma forma de escritura que não ousa ir além do que o sistema literário espera - ou exige - dele. Se o meio universitário trabalha a partir de proposições, teorias e projetos, Cioran mina qualquer perspectiva de futuro e de sentido. Não há como abraçar a radicalidade do pensamento nas instituições. "A universidade é o espírito de luto" (EA, p. 132). Quanto aos filósofos, constroem suas teorias e seus tratados, obcecados pela busca da lógica e do sistema, para erigirem uma "obra" cuja finalidade é, antes de mais nada, fazer sentido. E isso se dá à expensas da autenticidade do pensador, que evita mergulhar em si mesmo. "Como eu disse certa vez a um filósofo francês titular de uma cátedra: 'Pagam ao senhor para ser impessoal'" (C, p. 199). Em todo caso, se há alguma "verdade" na escritura, ela se trama na escritura dos artistas, e não na dos teóricos. "O que é um artista? Um homem que sabe tudo sem sabê-lo. E um filósofo? Um homem que não sabe nada, mas que se dá conta" (OP, p. 193). Quanto ao sistema literário, Cioran não se adapta a ele, pois não lhe interessam os críticos e os professores, as associações ou as escolas. "Não se arraigar, não pertencer a nenhuma comunidade: este foi meu lema e continua sendo" (EA, p. 155). O escritor trabalha sobre suas experiências. Tudo o que estiver fora disso são elementos estranhos à escritura, que cercam o escritor para seduzi-lo com as noções de fama, sucesso, dinheiro ou poder.
"É isto, na verdade, o ato de escrever, um ato de imensa solidão. O escritor só tem sentido nessas condições. O que fizer posteriormente é prostituição." (C, p. 41)
O pensamento gerado a partir de uma profissão, de um trabalho com um salário e horas fixas, horrorizava Cioran. "Por desgraça, desde a última guerra, os escritores se rebaixaram até começarem a dar aulas!" (C, p. 115). Fora da literatura, dos grupos de "literatos", há mais profundidade de reflexão que dentro dela. "Não tenho profissão nem obrigações, posso falar em meu nome, sou independente e não tenho uma doutrina para ensinar" (C, p. 199). "Só o homem que se mantém à margem, que não atua como os demais, conserva a faculdade de compreender algo de verdade" (C, p. 201). O lugar do escritor, então é dentro da solidão. "A solidão é um afrodisíaco do espírito" (OP, p. 240). Nela, a escritura se desenvolve sem débitos para com as armadilhas que buscam atrair o escritor aos meios institucionais. Juntar-se aos outros, formar grupos, para Cioran, é o começo de toda experiência destinada ao fracasso. "A catástrofe, para o homem, se deve a que não pode ficar sozinho. Não há uma pessoa que possa estar só consigo mesma" (C, p. 85). A solidão de Cioran é mais ampla, estendendo-se às noções de identidade, que se desenham no nacionalismo, por exemplo. "Quero carecer de pátria, de identidade" (C, p. 102). Isso não quer dizer que o escritor se isole totalmente do mundo, ao contrário. Uma das contradições de Cioran - como outras, que ele faz questão de apontar - é, justamente, a tensão entre seu apego à vida e seus ataques a ela. "Embora eu tenha uma concepção sombria da vida, sempre tive uma grande paixão pela existência" (C, p. 27). Essa paixão sempre impeliu Cioran ao encontro com o outro.
"Se me pergunto do que eu gosto mais na vida, são, sem dúvida, esses encontros excepcionais nos quais dizemos tudo: com pessoas a quem conto tudo e que me contam tudo." (C, p. 32)
Esse contato, essa utopia da transparência, alimenta a solidão da escritura. Não se trata, para Cioran, de abraçar o mundo acriticamente para combater um sentimento de solidão que, a rigor, seria falso. Trata-se de diferir da maioria, do sistema, da regra, da doxa. "A solidão não te ensina a estar só, mas a ser único" (OP, p. 11). Mas essa solidão do artista não o torna alguém "especial" ou "superior". A situação do escritor é a de quem não consegue viver sem se expressar, sem acusar ao mundo sua própria inadaptação a ele. "O literato? Um indiscreto que desvaloriza suas misérias, as divulga, as repete [...]" (TE, p. 105). "Vazio por sua fecundidade, fantasma que usou sua sombra, o homem de letras diminui com cada palavra que ele escreve" (TE, p. 106). Para Cioran, todos os livros que leu e todos os que escreveu não se equiparam à sua própria experiência fora do mundo das letras. Sua consciência das coisas, sem que ele soubesse, a princípio, fora já marcada pelos camponeses romenos em sua adolescência.
"Até os vinte anos, do que eu mais gostava era ir de Sibiu às montanhas e falar com os pastores, com os camponeses completamente iletrados. Passava o tempo conversando e bebendo com eles." (C, p. 18)
Essas pessoas afirmavam que nada tinha sentido, muito menos sair do campo para "ser alguém" na cidade, instruir-se, estabelecer uma profissão. "O povo romeno é o mais fatalista do mundo" (C, p. 18). Depois de toda uma vida de leituras, Cioran chegou à conclusão de que aqueles camponeses tinham razão.
"Essa ideologia de vítima é também minha concepção atual, minha filosofia da história. Realmente, toda minha formação intelectual não me serviu de nada." (C, p. 18)
Não se conformar com o mundo, mas tampouco com seu próprio mundo individual, com sua inadequação às coisas: eis a sina do escritor, que escreve e publica para chegar a ter uma espécie de "alívio". "[Meus livros], não se trata de literatura, mas de terapêutica fragmentária: são vergonhas" (C, p. 104). "Escrever é se desfazer de nossos remorsos e de nossos rancores, é vomitar nossos segredos" (EA, p. 214). No entanto, a contradição é que, da esfera dessa solidão, Cioran criou e publicou durante quase toda a vida. Ao mesmo tempo em que não via sentido na publicação, na fama e no pertencimento ao mundo literário, jamais se desligou dele, pois Cioran, como escritor, só pôde existir porque o meio literário o acolheu e o publicou. Porém, essa trajetória não foi exatamente um projeto de Cioran. Sempre o incomodou o fato de virar um "escritor", ser classificado dentro dessa categoria identitária, quando ele escapou de ser visto como um "filósofo". "Publicar um livro comporta o mesmo gênero de tédio que um casamento ou um enterro" (AA, p. 101). Do mesmo modo, Cioran não via no fato de ser autor de diversos livros algo que o colocasse em pé de igualdade com as pessoas que ele considerava verdadeiramente interessantes, sobretudo as que não escreviam. Publicar, para ele, vem de uma necessidade questionável, como, aliás, tudo o mais.
"Escrever livros tem alguma relação com o pecado original. Pois o que é um livro senão uma perda de inocência, um ato de agressão, uma repetição de nossa queda? Publicar suas taras para divertir ou exasperar! Uma barbárie em relação à nossa intimidade, uma profanação, uma mácula." (TE, 107)
E Cioran se transformou num "autor", inclusive passando a ser conhecido, sobretudo na Europa, o que também o perturbava. Escrevendo sobre Jorge Luis Borges, ele afirma: "A desgraça de ser conhecido se abateu sobre ele. Merecia algo melhor" (EA, p. 154). E ainda: "A consagração é o pior dos castigos" (C, p. 219). Mas a necessidade o impeliu sempre à escritura, e foi essa força imperiosa que fez dele um escritor:
"Escrever, por pouco que seja, me ajudou a passar os anos, pois as obsessões expressas ficam debilitadas e superadas em parte. Tenho certeza de que, se eu não tivesse sujado papel, teria me matado há tempos." (C, p. 17)
Mas, além de criar uma sensação de alívio, de dotar a expressão da escritura de uma faculdade de devolvê-lo ao mundo, de estabelecer algum contato com outras pessoas, anônimas, espalhadas por tantos países, numa espécie de diálogo mudo, a publicação, para Cioran, tem suas conseqüências. "Acho que um livro deve ser realmente uma ferida, deve transtornar a vida do leitor de um modo ou de outro" (C, p. 18). Avesso à ação e à tomada de posição em relação a qualquer assunto, além de não acreditar no "contato" com o ser humano ("Viver verdadeiramente é recusar os outros; para aceitá-los, é preciso saber renunciar, violentar-se, agir contra sua própria natureza, enfraquecer-se [...]" (HU, p. 14), Cioran, entretanto, vê uma certa "finalidade" na publicação: "Um livro que deixa seu leitor igual a antes de lê-lo é um livro falido" (C, p. 19). Esse abalo no leitor, a força que um livro pode imprimir no corpo de quem o recebe, é o que Cioran espera de uma criação, de uma arte, de uma escritura. É o que, verdadeiramente, vale o fato de se perpetuar um livro. "O que faz durar uma obra, o que a impede de envelhecer é a sua ferocidade" (SA, p. 16). Por isso, a renúncia em Cioran não é sinônimo de se desligar do mundo. Pelo contrário, Cioran está tão metido nele, arraigado à vida de uma maneira obcecada, que sempre ironizou o budismo como saída para aqueles que têm consciência do sem-sentido de tudo e do fracasso da experiência humana. A rigor, para quem não acredita em nada, escrever não teria nenhum sentido.
"Teoricamente, eu não deveria escrever uma só palavra nem publicar nada, se eu fosse absolutamente fiel a mim mesmo, mas não pude sê-lo, na medida em que, apesar de tudo, me encarreguei de mim mesmo, quis me acomodar um pouco à existência." (C, p. 40)
E esse lugar na existência não é o do asceta, o de quem vê uma "salvação" do espírito atormentado pela recusa do mundo. Ao contrário, Cioran se apega ao mundo, mas violentamente, sem trégua, expondo constantemente e sem pudor sua inadequação a ele. Por isso, escreve. "Escrever é o ato menos ascético que há" (IEN, p. 107). Então, escrever é um gesto ambivalente. Por um lado, é algo essencialmente solitário. "A vida e a obra do escritor são aventuras que ele deve empreender sozinho" (EMC, p. 74). Por outro lado, além de uma trégua na incompatibilidade com o mundo, a escritura se lança, sem controle, a algum leitor anônimo, mesmo que esse leitor possa se multiplicar aos milhares pelo mercado editorial. Nesse ponto, o gesto solitário se enlaça em outro, o de quem, em sua pequena solidão doméstica, lê o livro. "Tenho certeza de que meus livros serviram sobretudo para ajudar algumas pessoas" (C, p. 40). O encontro do texto com um leitor, no entanto, não é para Cioran um veículo, um instrumento pedagógico. "Não gosto de convencer" (C, p. 35). "[Ao escrever], não gosto de insistir, não gosto de demonstrar. Não vale a pena. Os que demonstram são os professores" (C, p. 35). Trata-se, sim, de um abalo corporal que Cioran quer compartilhar com alguém. Através do sistema literário - no qual, necessariamente, o escritor se insere se quiser publicar, se quiser ser um "autor" -, aquela escritura solitária, fruto do desacordo com o mundo, quase uma autoterapia, encontra um outro corpo que pode acolher esse abalo, senti-lo em sua própria existência. Por cima de qualquer conteúdo explícito, além da tese, do sistema filosófico, da "opinião", e mesmo da "beleza" ou da própria literatura, o que acontece aí é um diálogo a distância, no tempo e no espaço. Para Cioran, esse "diálogo", inclusive, ocorre mais verdadeiramente fora da literatura.
"O verdadeiro contato entre os seres só se estabelece pela presença muda, pela aparente não-comunicação, pela troca misteriosa e sem palavra que se parece à prece interior." (IEN, p. 14)
A lucidez diante de tudo tem como conseqüência separar o escritor dos outros. "A clarividência é o único vício que torna livre - livre num deserto" (IEN, p. 19). E o conteúdo da escritura, para quem vislumbra não só o fracasso da experiência do homo sapiens, mas sua incomunicabilidade, a impossibilidade de uma compreensão e um diálogo verdadeiros, é, muitas vezes, algo que apenas roça um sentido legível. Mais do que um "texto literário", o que escreve Cioran é uma espécie de segredo. "Não se deve se restringir a uma obra, deve-se somente dizer alguma coisa que possa se murmurar no ouvido de um bêbado ou um moribundo" (IEN, p. 11). Antes, entretanto, de um possível encontro entre escritor e leitor, o que vale, o que sustenta seu gesto e determina sua existência, é tão-somente o ato de escrever. "A única experiência profunda é a que se faz em solidão" (C, p. 168). Acuado pelas ideologias que em todos os lugares, incessantemente, constroem sentidos para consumo geral, a escritura se depara sempre com um muro. "Todo escritor é, de certo modo, um exilado" (C, p. 210). Situação sem solução ou desdobramento, o lugar do escritor é a atualização constante de sua estranheza em relação ao mundo. Nada do que aconteça - prêmios, publicações, fama, dinheiro - tem o poder de transformar esse fato. Mesmo que o escritor se torne, como o próprio Cioran, alguém "conhecido", o que dá uma falsa idéia de que já não há solidão, sua escritura sempre se fará, irremediavelmente, dentro desse núcleo que ninguém consegue abordar, sob pena de também perder sua confiança em tudo. "O ser verdadeiramente solitário não é o que foi abandonado pelos homens, mas o que sofre no meio deles [...]" (BD, p. 48). E essa solidão linda com o impossível:
"A substância de uma obra é o Impossível - o que não pudemos alcançar, o que não pôde nos ser dado: é a soma de todas as coisas que nos foram recusadas." (IEN, 114)
Referências bibliográficas
CIORAN, Emil M. Silogismos da amargura. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
________. História e utopia. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
________ Breviário de decomposição. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
________. Ejercicios de admiración y otros textos: ensayos y retratos. 2. ed. Barcelona: Tusquets, 1995 (Col. Marginales, 117).
________. El ocaso del pensamiento. Barcelona: Tusquets, 1995 (Col. Marginales, 140).
________. En las cimas de la desesperación. 3. ed. Barcelona: Tusquets, 1996 (Col. Marginales, 111).
________. Conversaciones. 2. ed. Barcelona: Tusquets, 1997 (Col. Marginales, 146).
________. Adiós a la Filosofía y otros textos (prólogo y selección de Fernando Savater). Madrid: Alianza, 1999 (Col. Filosofía).
________. Bréviaire des vaincus. Paris: Gallimard, 1993 (Col. Arcades).
________. De l'inconvenient d'être né. Paris: Gallimard, 1999 (Col. Folio Essais).
________. La tentation d'exister. Paris: Gallimard, 2001 (Col. Tel).
________. Aveux et anathèmes. Paris: Gallimard, 2002 (Col. Arcades).
LIICEANU, Gabriel.E. M. Cioran: los continentes del insomnio. Entrevista con E. M. Cioran. Valencia: Edicions Alfons El Magnànim/Suplemento de la Revista Debats nº 54, 1995.
SAVATER, Fernando. Ensayo sobre Cioran. 2. ed. Madrid: Espasa, 2002 (Col. Austral).
[1] O livro, intitulado Breviário de decomposição (Précis de décomposition), foi considerado o melhor manuscrito escrito em francês por um estrangeiro no Prêmio Rivarol. Entretanto, não obteve o prêmio, por ser considerado demasiado "pessimista". A editora Gallimard, que já havia recebido o manuscrito, finalmente decidiu publicá-lo. Ver o livro de Gabriel Liicenau: E. M. Cioran, citado nas referências.