Olhos de ágata

Renato Tapado



También la palabra tiene una mirada.

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Una mirada que sirva para borrar la circunferencia y conservar el centro. Un don que sirva para borrar la mano y conservar la entrega.

Roberto Juarroz, Poesía Vertical.





28 de setembro de 1996.

Quando chove. Há um tempo obscuro que não esqueço, a água na calçada e no asfalto, espelhos, folhas, os cinamomos nus, o frio das tardes na memória. O metal dos automóveis cintila porque a água, porque as luzes.

Eu lembro de uma cidade: compras, vagar pelas esquinas, livros e um café. É uma idéia solitária, parca, sem matéria ou palavra, uma brisa que me traz algo que não sei se perdi - porque não tive - ou construí, ou simplesmente lembro: a janela úmida, o intervalo.

Esse pedaço de tempo que eu ganhava sem saber para quê, o que fazer com ele, e a chuva me atraía para essa parcela de algo, rumo à rua. E um bar, uma livraria, cais sem ninguém, e o tempo dando voltas. As coisas adquirem peso, transcendência. O aroma do café e sua cor, a espessura da asa da pequena xícara e a textura do café na boca, forte e como espesso, como as nuvens. A xícara branca e, com o tempo, os semitons até o preto do líquido, sua fumaça como nuvens, a temperatura como meu corpo por dentro, o brilho da porcelana como o metal dos carros, lá fora a chuva e tudo em estado de espera. Aquela flor num vaso solitário, a gola do casaco dessa mulher, aconchegante, seus olhos intensos como a chuva, o café. O perfume da água em queda, o ruído dos pneus molhados no asfalto, o tato dos meus dedos nas páginas ásperas, não de todo brancas, o açúcar, a toalha clara.

Não quero levantar dali, não quero esquecer: algo depende desse instante, algo será provocado quando o tempo, onde o tempo. É como se a tarde inflasse e eu não quisesse noite, como se no sul, no sul do mundo onde a tarde se estende no verão e não há noite, a noite entre parênteses, e de novo a manhã que invade o mar.

Não quero a noite nem o sol, só esse instante estático, em círculos, quieto.

Abro um jornal e leio o branco, a cor das letras, o papel áspero, a tinta que marca meus dedos, as imagens, algo que me lembra uma cidade. Mas o café vai esfriando e a sensação de que o tempo, os intervalos, outro café e mais chuva.

As possibilidades de alongar a tarde com um charuto, outra página, outro casaco de mulher de olhos verdes, agora morena, uma ruiva que intriga, misteriosa.

O dia está montado e não sei o que fazer para sustentá-lo, para agarrar o tempo e guardá-lo até amanhã, até quem sabe. O outro café está morno, não choverá para sempre, um livro em seu fim, a negra já pagou a conta e se levanta devagar.

Minha memória é fugaz, é completa: tudo o que eu tenho está nessa mesa, nesses papéis que o vento ameaça e a chuva agita, dentro da tarde que se esgota, preenche, recupera o tempo em que as folhas secas, as calçadas úmidas, o ar frio e o dia cinzento, os sapatos na poça, a porta da livraria, o garçom. Tudo se encontra aí, nesse amontoado de papéis, nessa fuga, nesse mundo lento.

29 de setembro de 1996.

Quando chove. Um cheiro de cartas frescas, de papel leve e claro, virgem, cada folha como regaço e ameaça.

Há algo que me une à cor negra dessa tinta, ao tom da nuvem, ao ruído orgânico da água e do riscar o papel, mas não sei o que é.

Há algo que se aproxima, como se a janela aberta convidasse e o meu olhar buscasse, do ruído viesse algum sentido à minha pele, aos meus dedos que, ao roçar a mesa ou o papel me instigassem a um ato qualquer. E essa tinta como se possuísse o dom do alongamento, do adiamento, da tarde austral onde não há crepúsculo ou há um crepúsculo enorme, abarcador e não se sai completamente dele.

É como se alguém existisse: uma voz que se dilui na água e no barulho da chuva mesclada aos automóveis, aos transeuntes.

Os passos também ressoam na calçada, úmidos em direção a alguma parte, mas não sei quais, nem onde, quando. Estar ou não estar aqui é uma definição imprópria, e essa voz que escuto ou me confunde, os passos na rua ou a chuva sozinha.

O papel espera, a tinta e a minha mão em repouso, o mundo parado dependendo do tempo, dessas nuvens carregadas que não param, o cinza que não desbota, esse café que não destoa. E qualquer voz é como um pássaro que risca o cinza do dia, ele é fugaz e eterno, aquele pássaro e este, os pássaros que seguem, voltam e passeiam em seu ofício circular de pássaros.

Do pássaro cai uma pena, e com ela eu imagino a letra, a sílaba posta sobre a página como essa taça branca sobre o pires, sobre a toalha, a mesa, o piso escuro. A pluma cujo ofício é ser a aparência do pássaro e meu olhar desnudo, uma matéria oblíqua e tênue como essa luz mortiça entrando com a umidade da tarde, os ruídos mínimos de passos, gotas, vôos.

Eu imagino a pluma posta sobre a tinta escura e o seu percurso: é como se alguém estivesse aí à espera, à beira do crepúsculo insistente e que não parte, algo eterno e fugaz como a aurora boreal do outro lado do mundo, o pólo oposto, e essa raiz que liga a árvore à terra, a pena ao corpo, a tinta à sede do papel que me envolve como a bruma acesa da manha chuvosa, alguém atrás da chuva, à espreita na janela, como cartas à espera de uma pluma, um envelope, aviões e endereços.

Então sou eu quem parte à beira do abismo que é essa mesa e sua imóvel displicência: sou eu o pássaro que parte, aflito, rumo ao pólo, ao outro, ao gelo ou ao deserto repleto de possíveis círculos.

São nesses vícios que penso quando chove, e noutros mais secretos, onde já não tenho pena.

Quando o tempo. E eu queria imaginar você como uma chama, uma presença aberta e tácita sobre essa mesa.

Hoje não chove, mas a memória das águas me traz um aroma de terra e plantas como pode me trazer você e sua incógnita estampada na face.

Eu sou aquele que recebe a dúvida na cara. Nem sempre eu tenho a sorte de dizer algo, de vislumbrar aquilo que, sem você, seria apenas um exercício sem chuvas, sem sóis, a proximidade do nada. Então me perco em detalhes porque não posso, não devo chegar lá - lá onde? - onde a dúvida retrocede, recua como o mar em certas luas.

Você chega como todas as marés, presa ao dorso do tigre, cambaleante na canoa, anônima. Todas as cores são possíveis num retrato imperfeito, ambíguo, destinado a falsear o falso. Falta uma história nas telas, uma história branca e eterna, sem chuvas e sem traços negros. Mas essa história é falsa.

Veja: os índios fazem padrões abstratos em seus cestos. A natureza está inteira ali, como nos olhos do gato, nas listas da serpente, nos rastros dos pássaros: essa é sua ordem, abstrata demais para perderem tempo com desenhos de gatos, serpentes, pássaros. Os índios sem telas, sem penas, sem cartas. O tempo todo.

Meu tempo é um fragmento de tempo, a gota da chuva, o pôr-do-sol que já foi, o ponto no final da frase. Sua tela é o mundo num limite. E eu desconheço seu rosto, suas mãos, sua fala.

Você é minha memória ardendo, as minhas palavras prestes a saltar. Mas há o muro, a tela, e os papéis dispersos sobre a mesa, e imagino você e seus pincéis, seu cavalete, seus tubos de tinta esmagados pela espera, pelas noites.

Eu temo a sua pergunta, pois é um espelho no fim do corredor, insólito tapete. Então me lanço ao mar como quem parte, sedento. Participo dessa esfera onde tudo é neutro, detrás da onda, do branco, do fio que, na trama da tela, insinua um mundo.

Eu sou apenas aquele que devolve a dúvida, como o arco do índio disposto a não ceder diante do invisível. Há um fogo detrás da chama, e outro, e a chama por detrás da chama.

Você de dentro da pergunta me dilata a página, o dia. É como se sua fala fosse sempre, como a lua é, o peixe no final da flecha é, é a noite.

Os mosquitos se perdem é diante da espiral.

Você exala o tempo fustigado pelo dom, um dom de nada, apenas um veneno: a sua serpente. E como a estrela afugenta o brilho da cidade e suas trevas, como a escama do peixe ilumina o rio e a vela sobre o toco de madeira traz a noite para dentro da espera, assim eu escuto a sua voz criando a frase que esclarece e aturde, como o vento que sempre escapa. Sua voz me desconcerta por não ser uma metáfora. Sua fala aberta para o tempo encurralado, atacando nas esquinas as palavras fáceis.

Por isso meu discurso hesita diante de qualquer diálogo. Minha memória não sabe o que dizer, apenas falha, lança pedaços de imagens pelo chão. Parece que tudo está ao redor da mesa, disposto como num jantar, mas nada encontro. Então sua voz pode ter o sabor de algo incompreensível, mas que guardo como uma lembrança viva.

Há algo nessa fala que eu conheço. Há uma folha escrita onde eu vejo como as horas se entregam por algum tempo, e então eu posso decifrar os seus olhos, seu olhar marinho. Não temo esse mistério e seus ardis. Me perco é nesse instante úmido, quando a palavra ainda não é palavra mas já o seu sabor se instala no dorso da língua e sua faísca. E minha memória acende.

À beira do deserto, eu falo: todas as areias podem ser hostis, e eu busco e o segredo do grão. Eu masco a espera. E sinto seus lábios duvidosos, prestes à entrega de uma fala outra, descabida, íntima. Quando o fogo.

30 de setembro de 1996.

Não possuo o sabor da madeira. Ela me serve sua imagem fixa e reconfortante, seu halo de pétalas e manchas. Dela se desprende uma visão de túneis, de navios. É tanta a madeira que se afoga, selva. Eu a vejo como líquido, macia em sua aparência rígida. Não posso agarrá-la, é sempre a seiva de algo resvalando, fixa.

Os mistérios da madeira. Mas essa leveza aguçada me está vedada: ela não se entrega à minha língua: a aspereza da madeira avança, tanque, sobre meus papéis.

Uma lasca não é suficiente para conhecê-la com o corpo. A madeira não é. Fantasias de móveis, máscaras utilitárias, os sonhos dos troncos mutilados em arte, a falsa maleabilidade.

A madeira é tempo em seu estatuto de árvore. Seu tronco engana pois, crescendo, fica. A tábua deixa tudo a zero, em risco, pronta para o corte. Eu acrescento tudo a ela, mas aposto no nada, na riqueza insípida do vegetal. Daí que uma moldura nada diga, é imóvel em sua concreção do vivo, em seu limite do impossível.

(Você crê que estou falando da pintura, mas estou longe, pois a árvore está longe, sua madeira voa, seu corpo inerte é vivo como a cor debruçada no tecido e que disfarça a paz, o horror.)

Somos assassinos. Uma moldura é tão pouco, nada na vida da madeira, tão angulosa em sua ostentação de um vício e de uma cor que finge ser cor que até nos interessa olhá-la, a um passo desse tempo concretado, congelado em formas.

É esse impasse que cria a pintura, dentro dessa outra moldura virtual que nos adapta ao possível das horas alternadas, dos calendários. É essa a tapeçaria que diverte o mistério, que sonha com categorias sujas, dúbias. É o olhar depositado na matéria junto ao olhar do gato. É o cachimbo apagado provocando a fagulha cínica do desconcerto. Tudo isso repisado de cores ou cor nenhuma, o gesto oculto por detrás dos panos, a mão invisível que optou pelo obscuro, pelo brilho que ofusca.

A pintura é de madeira, é madeira como árvore, moldura, cachimbo, pincel. É casca sobre casca, camadas de nada sobre fio sobre fio, e tudo acaba aí: contornar a tapeçaria é a ilusão de quem busca algo por detrás da cor, da fonte de brilho, do espelho, algo dentro do tronco: a seiva não se sabe.

Por isso eu não possuo o sabor da madeira. Como uma lasca dela e me engasgo. Eu sou apenas aquele que acaricia a nódoa, a insipidez da mancha.

Algo se destrói na própria essência vegetal, naquilo que dissolve a minha busca pelo centro, pelo dentro, a armadilha do cachimbo e seu oco. Sigo sem nada como após o gesto da fogueira. Perco a chama para sempre, o sabor da madeira é cinza, queima a língua, vira pó.

O destino da madeira é deixar de ser, como o pássaro não pára em seu caminho de volta, de voltas. O que me aquece é essa chama oblíqua que desfaz o meu olhar no brilho dourado que sai da madeira, do núcleo incandescente. Perco para sempre o sabor dessa trama. Quando o fogo.

Os seus olhos me lembram os metais, o metal e sua textura zero, seu espelho de espelhos que não refletem, atraem. O metal em sua consistência de luz sem nada onde me agarrar, a placa da gravura intacta.

Seus olhos também vêem a pintura: o metal e a madeira, o líquido e o pano, as cores que se encontram. De metal e de líquido, de brilhos e de falsos espelhos, do amarelado que atrai como o lago, o rio em seu curso de serpente. Quando seus olhos encontram o leito seco da tela, querem iluminá-lo.

Primeiro você se ilumina, o metal exposto ao sol vibrante liberando fluxos de luz, feixes sem matéria, e já o gesto ataca a pincelada rumo às águas, ao salto, à escuridão que vai deixando de ser. Como você agarra esse pincel, é propriedade do tigre.

Seus dentes também lembram metais polidos na brancura da fome, que vão tingir-se de vermelho, com o sabor do vermelho sobre a tela. Como o metal fere a madeira, você extrai do tronco o vermelho com o olhar afiado para o gesto, essa pincelada sobre o dia. É quando seus olhos vislumbram algo por detrás do espelho opaco da tela, o pêlo do tigre entrevisto na fenda do pano, caminhos que se bifurcam. Então seu olhar se acende.

Tudo leva a crer. Mas você desconfia, seus olhos desconfiam da mão, do pêlo do pincel. O curto-circuito é como o machado sobre a lenha, pondo em risco a integridade do gesto. A tela, lá, acenando do nada como um peixe, na quietude sísmica do instante: os lagos. E sua pergunta é uma lâmina que tenho que esquivar, saltar para o lado, para o centro da resposta que se devolve já molhada pelo mergulho. A lâmina do olhar. A lâmina do lago.

E quando sua mão arranca a pincelada do corpo rumo à tela é como a rã saltando na quietude da água. Aí tudo se perde. Quando a noite, onde a noite. No limiar do prelo, quando nada ainda está dito. E a tela, enfim, só existe para essa resposta forjada na lâmina, no prelo: para satisfazer o gesto do pincel, penas e pêlos: para.

E eu, imóvel em meu resquício de espelho descansado, envolto na névoa da dúvida, no aroma do café e do charuto, no sabor de um vinho disposto pelo tempo e suas estações, eu conforme o gosto, o sal das coisas impressas, só posso abrir os olhos para o que me invade como a estrela invade o céu em sua insolência de estrela. Só posso ver o que não me está vedado pelas sílabas arcaicas do mês, do dia, dos que passam por essa janela, úmidos, dispostos a tudo pelo nada. Só posso vislumbrar, através dessa vidraça, dessas horas, aquilo que foi salvo pelo fogo, o que permanece dentro do tempo contra o tempo, o que provoca, além das coisas, o vôo da pergunta rumo ao gesto, e é quando suas mãos atiram em mim tudo que está numa pintura, e eu, perplexo, ao encarar a cor, me encaro. Quando chove.

Agora são desertos. Onde a vastidão incita ao vôo, tudo parece expandir-se, perder-se.

No vasto mundo do deserto a solidão aparece como marca, símbolo. Mas é só aparência. No deserto nos acompanhamos e nunca estamos tão repletos quanto nessa falsa imensidão que é pouca, é o corpo rodeado de nada que o devolve a si, ao mesmo, ao outro delineado no olhar que perscruta e nada acha lá fora.

O deserto é aconchegante por isso: tanta terra e é a mesma terra. Dentro de um espaço limitado pelo olhar, tudo é igual: todos os grãos o grão. Então tudo me ocorre (nada me ocorre), e o percurso é lento, paracurso, círculos como esse redemoinho de poeira que vejo ao longe avançando rumo a um lugar qualquer.

Aqui não há madeira, metais ou águas. Aqui a paciência é pó e os olhos sofrem com a claridade na espera. Assim eu sinto o seu olhar, a sua fala que exige a umidade fértil da pintura e sua solução em óleo. Assim me sinto cômodo em sua curiosidade vasta, inóspita. Dentro da sua fala, qualquer caminho me leva (aonde?), me repõe no círculo dos passos, às secas. A escassez de sílabas, de cores.

Você me pergunta sobre essa falta, esses desertos. Mas se os desertos são repletos, ricos! Parece que é certo, pois tantos pintores acabaram incorporando a terra à tela. Antes de a tela ir ao pó, a poeira foi à tela. O pintor se apropria da areia como quem respira. E sua pergunta me devolve à lembrança dos grandes espaços secos, plenos de rotas, acolhedor em seu silêncio e solidez.

Seus olhos são enormes como as areias. Seus olhos brilhantes, de pedra rara, não como as pedras do deserto. Então você martela a tela, garimpeira. A tela é um poço branco dentro da brancura escaldante. A falsa imensidão do deserto, a falsa pequenez da tela.

O que assusta é essa essência mineral, o centro do quartzo, o dentro da tinta, o que está por trás do verde, do amarelo dos seus olhos. Então me lanço à aventura, à travessia. Esse deserto, esses olhos, esse sertão. Tudo cabe no pêlo de marta, no traço irregular do preto sobre o branco num ponto. E daí se abre o mundo como um olhar pela fechadura, como um corpo de mulher estendido na relva e seu mistério entre dois pontos:

5 de outubro de 1996.

Lembro que o deserto não comporta o teatro. Não há material disponível para cenários, não há ninguém para atuar. O que se pode no deserto é compilar instantes.

Ele tem seus limites, como a película de um filme. Ali, toda a farsa é farsa, longe da concreção da pedra que o deserto exige. Nesse espaço não há o que contar, apenas as pétalas da pequena flor amarela, os espinhos de um arbusto, o salto da lebre, a fome do puma.

Entre areias todo espetáculo é impróprio. E elas dançam anônimas nessas paragens, andam com o vento, nômades, redesenhando o mesmo, o outro lado dessa cor desbotada, viva, que é o deserto.

A areia é inapreensível. Ela não tem memória - porque não possui eventos -e, ao mesmo tempo, tem a memória infinita - séculos e séculos arenosos: o deserto sem teatro, sessas, só posso abrir os olhos para o que me invade como a estrela invade o céu em sua insolência de estrela. Só posso ver o que não me está vedado pelas sílabas arcaicas do mês, do dia, dos que passam por essa janela, úmidos, dispostos a tudo pelo nada. Só posso vislumbrar, através dessa vidraça, dessas horas, aquilo que foi salvo pelo fogo, o que permanece dentro do tempo contra oosofia: ou um poeta que diz adeucoisas, o vôo da pergunta rumo ao gesto, e é quando suas mãos atiram em mim tudo que está numa pncel, e a própria tela está tensa em sua espera, presa no limite da madeira, aberta à violência externa, pálida na sua insípida presença.

É aí que nasce a pintura, e já morreu: é um lapso, e o tempo que você quer retomar cada vez que olha para frente e já perdeu, e busca noutra tela outra pintura, a mesma.

Como seus olhos procurando, gata, alguma coisa além da tela, maga, algo que eu não alcanço com o olhar. E sua pergunta me devolve à lembrança dos grandes espaços sem limite, nessa trama em que não sabemos o final, fingimos não saber.

Você fala e eu esqueço o seu discurso. Saboreio seus olhos cor de trigo e arroz e seus lábios vermelhos. Eles me dizem o que você não diz, eu aprendo com eles como o gesto seu de levaldante. A falsa imensidão do desm uma substância, com palavras. O seu corpo me fala como você não pode falar, e você se esconde por detrás da palavra como uma atriz.

Lançada no deserto, na brancura, onde a pureza da palavra não admite nenhuma figuração esses olhos, esse sertão. Tudo cabe no pêlo de marta, no traço ocê pergunte pela pintura com o o num ponto. E daí se abre o munseus pêlos. Os desertos da tela.

Nas areias a palavra é inútil. E imagino você como uma gata negra esperando o crepúsculo, on1996.

Lembro que o deserto nãm. É quando a lua domina a paisagem, a gata espera o outro lado ão há ninguém para atuar. O que se pode no deserto é compilar instantes.

Ele tem seus limites manhã, no mês que vem, no fim do século.

E você finge que cai, mas cai sempre de pé, com essa malícia felina que ensaia a morte e depois vai devorar o peixe.

Você come com desejo, com volúpia.

(Lembro do seu sonho: você nua deitada na areia de uma praia como se tudo tivesse parado e ausente, ao mesmo tempo em que o mar e o sol buscavam a mesma vibração que o seu corpo. Você nua na areia e o cavalo. A febre do cavalo. Suas coxas sobre o cavalo e seu movimento com a textura do pêssego. Você deitada e rolam em sua pele centenas de morangos. Você à espera e os morangos rolando pelos seios, pelas pernas, pelo sexo. Então o cavalo. Ele olha para você como você olha para o verde do mar e seus olhos são espelhos. A temperatura dele. O cavalo se aproxima e olha para você de perto, dá um passo e se aproxima. São tantos morangos e o cavalo busca as frutas com a língua, como um touro. Você aberta como a praia e o cavalo comendo os morangos em seu corpo, em seus pêlos).

"Tudo abandono, menos o mar", mesmo diante do deserto.

Essa proximidade das águas verdes e do grito da gaivota, o vôo do pincel, a linha sem fronteiras.

De todas as praias depreendo uma. Que se torna cinza quando fecha o tempo, e se abre para dentro, os pássaros param e eu fico em silêncio como o barco na areia. E já não vejo o horizonte: tudo é bruma fria, as nuvens carregadas e os tons pastéis do dia anunciando sem sol uma tarde cinzenta de tempo, úmida.

É quando o mar se amplia e a chuva me devolve à terra, ao húmus, à solidão do vento e seu ruído.

Caminho como se meus pés na areia fria me levassem a algum lugar, à noite. E essa palavra cursiva que me leva rápido a outra hora, a outro tempo.

À beira do oceano não tenho mais para onde ir, volto pelas minhas pegadas, e o percurso é outro.

11 de outubro de 1996.

(Sonho com sua língua que sabe. Sonho com ela, com seus lábios todos à espera, na iminência, no risco. E ela me levanta, me invade como um sexo, me abala. Há uma casa onde não há janelas, mas telas e paisagens. Você me ataca nos escombros da casa. Vejo uma porta em chamas. Seu pêlo é suave como os lábios, entro em você, a porta em chamas. Tudo tão quente e lá fora está o mar, as janelas são pinturas, você cavalga aqui dentro, aqui em cima. Sonho com sua boca aberta pronta para o líquido. E eu te engulo. Você tem gosto de sal e cor. Eu como você por tudo, como convém. Há apenas uma pequena mesa na casa. Você é inteira. Agora as janelas são azuis como o céu lá fora, o mar aqui dentro. Você úmida e oleosa como a tinta. Você azul e em algum lugar o fogo ilumina seu corpo, suas coxas sobre os meus ombros como quem tem fome).

Volto do seu sonho, do seu corpo, como alguém que perdeu as pegadas na maré, na noite interminável. Como quando entro na livraria e o dia vai avançando, em qualquer hora haverá uma porta fechada, o escuro lá fora, o relógio. Como quando sei que o vinho vai acabar, o copo uma ampulheta, e você ficou lá dentro da memória. Como quando o charuto aceso está chegando aos seus dois terços, o telefonema tem que acabar, é hora de ir embora, e eu volto só, eu acenando para o nada.

Saio do sonho como quem não acredita, o peso da memória me arrastando, e tento aos poucos o café, o pão, a xícara branca com o sol das nove horas e o mundo ambíguo em volta, sem lábios.

É como começar a andar e os olhares que busco se desviam, o que é claro e intermitente na rua me perturba e foge, a cor das coxas e dos olhos.

É quando o fim de tarde se aproxima e perco tempo, me perco nesse labirinto de vozes mudas, olhos mudos, bocas que quero pintar mas não existem.

Descanso num café, numa página, numa taça. E escapo das ruas quando a noite é inútil. Quando o bar, onde o bar.

À margem do fascínio, na espera, no alimento do tempo, me arrisco a deixar de ser. No balcão, à beira da fronteira, conhaque e alguma coisa incerta no exercício das horas. O tédio da experiência nula.

O gosto pela ausência, a farsa do corpo que exaspera. A musa passa e eu não existo, meu corpo que se estende rumo a tudo. E temo que o desejo seja vício.

Imagino a fome desses passos, seu movimento alado. Eu tenho aquilo que falo, o que aniquila. Eu posso esse vislumbre em meio aos peitos. Eu tremo com essa língua oculta, a boca carne, rubra, lúbrica. Quando o corpo.

Digo isso porque sinto seu sonho. Você já se masturbou com os pincéis maiores, cabo e pêlos, diante do improvável. São dias de calor intenso, como a tinta. São dias de tensão. São roupas jogadas no chão e líquidos gelados, pés descalços. Sinto o cheiro da pele, sinto a temperatura nos pêlos do outro corpo, tenho medo.

Tenho medo de lançar-me, como quando à beira da sacada do edifício: a tentação do salto. Minha fobia é atirar-me nela nua em meio às telas.

Sei das suas coxas para cima, ofegantes, brincando no seu centro com os pincéis. Sei do seu cheiro na tela, do sabor que você imagina nela, como se lambesse as tintas. O gosto do vinho e do delírio. E seus peitos prontos para a gula. Sei de tudo isso e não posso, permaneço aqui à espera da espera. Quando a fome.

Quando você abre os lábios, emudeço. E minha saliva lubrifica essa vertigem. Perco as palavras nessas fendas. No avesso do avesso do avesso do avesso.

Gosto da textura pálida das telas. E essa poltrona onde você, com suas pernas, desarma a gravidade: eu sou a sede. E engulo o que você exala ilícita. Nos dentros do dentro, quando arde a tela, quando a tinta se mistura.

Eu sou aquele que degusta o insano.

O insone, o que devora. E treme minha mão com a pena, com a pluma depois de tudo. Na falta que faz falta à ordem.

Me encanta a garatuja da caligrafia. O hieróglifo, cíclico. Na desordem das folhas. Eu prezo pelas letras na urdidura do impossível. Eu sou aquele que morde o que não é presa, sem pressa. Na rota do inachável, com gosto. Na mira do oculto, na plataforma do que empaca. A poesia é um pacote.

Eu sou o cego que, atarantado, vasculha pela sílaba perdida, a voz cerâmica. O tigre de bengala no crepúsculo. As cartas sobre a mesa. As tramas do correio, a correria das letras embalsamadas no papel, a bruxa bússola desorientada no pólo, dúvidas polidas.

E os mapas que namoro: as latitudes me perseguem, redes, como insetos. E tudo se desgasta no engate de um termo, de um término. Esta cadeira não é aquela, esse quarto não é aquele, não ponho a mão no pincel atrás da porta, como um lobo. Estou grogue de história, vagando Gauguin pelas ilhas.

Você me pergunta pela escrita, e há um corte no sentido, no termo, eterno, agora; toda frase é um arcabouço. Eu sou aquele que perdeu as chaves.

Adeus, Comala: tudo é deserto e pleno como o ar no vaso, o filme que não vi, a eternidade, agora: a tartaruga do instante.

Você pergunta pela morte e ela passeia. Você me indaga e eu, esqueleto, balanço, sustentando o incrível. Às portas da miséria: na ponta do precipício em círculos. Na digestão do bruto, arquiantigo, aracnídeo. Um ritmo áfrica.

Você me olha com um olhar de lêmures. Na noite acesa. Eu sou aquele que atravessa a piscina vazia. E você com os fósforos na mão: eu trago as velas. Eu ponho fogo na casa, na praia. Tudo azul. Eu enlouqueço e volto a mim, volto a você envolta no mistério. Toda pintura fere.

Passeio entre os mortos com elegância. O cemitério é mudo e estou afásico, completo: eu grito o meu silêncio na casa vazia e escuto a chuva e o trovão. À seca, no parapeito, de cor, resvalo. E tomo banho de chuva na pedra, deslizando na lisura.

Procuro a linha úmida, descalça. E como pêssegos no sereno como a bruxa que espera a hora exata. Na noite excêntrica. Depois volto ao deserto em busca do cadáver, porque já não há pais: eu trago a pá.

Sigo por areias dementes até a linha do horizonte, fugaz como a genealogia: você persegue os seus fantasmas, a tela branca e os pincéis usados.

Nada é novo, você sabe, e seu rival é o instante que persevera. Você é a pedra que quer ser tigre, na passagem. O desdobrável. Na rótula do dia sem respostas.

Enfim, a despedida: não há ninguém, você viaja, a bagagem aberta. Rumo ao branco, ao alvo.

13 de outubro de 1996.

Quando a tela. Tem dias que eu olho para ela como um gato, na hipnose de uma tarde. Se ela me fisga, posso estar horas ali, escrevendo e bebendo alguma coisa ou conversando com alguém, como quem foge. Isso é o que a pintura me faz. Uma perda.

Diante dela enumero discursos, mas são círculos onde não desvendo, só lanço lençóis. A pintura como uma câmara clara. E "teço comentários" - que expressão feliz! E "falo sobre": mas queria falar sob, na linha freática do cavalete, antes da secagem da tinta.

Eu não queria falar da pintura, mas pintar dela, dançar dela. Mas a floresta de letras me confunde, e acabo perdido antes de chegar lá, antes da palavra. E a pintura está falando de mim o tempo inteiro, e isso me irrita.

Tenho febre. Meu pulso não pára. Me excito com a presença do enigma. Me incito. Eu sou você no momento da ausência, quando a tela se vinga de tanto tempo, tanta tinta. Você, a bela intrigante.

Você fecha seu círculo com o pano, como se estivesse pintada, seu corpo azul como o mar no sonho.

Você expõe no museu, é a sua casa. Na órbita do não-dito, no desvão do seu corpo. Você possui a alma inquieta que fala. E a pincelada esbofeteia: eu sou aquele que dá a outra face e não perdôo. E corro o risco de ficar sem nada, o mundo em sua nudez.

Você é essas estrelas longínquas. Você são: no âmago do fosso, na pergunta celeste. É quando digo adeus à pintura. Na esquina da sílaba.

14 de outubro de 1996.

Adeus ao adeus: eu sempre parto, fico. À espera da saída que não chega. A sua espera: você transita pelo incerto e pensa em "terminar" a tela. E são dez telas, são cem telas no limiar do gesto. E o músculo incapaz de prever o desenlace, no ritmo das estações sem trilhos, sem paradas. E cada cor é um desafio sobre uma corda.

Para terminar, para não terminar, você pinta, despinta e seus olhos acendem. Tudo é trégua: o café, o cigarro, o vinho, o livro, ele, a noite, uma carta.

Você adia o impossível para um tempo quando, onde, que não se sacia. Então há o perigo da armadilha. A morte da pintura quando ela parece mais viva, mais presente. É quando você se dá por vencida, quando a tela recebe o impacto do gosto, das certezas, quando a qualidade dela assombra.

Você cai - todos caem - nessa fibra vaidosa, na rede aconchegante do aplauso. E teme pelo branco, pelo que não era, não foi, outras pinturas. Teme pelo círculo fechando, esse circuito lícito e cruel, quando do gesto se apodera. É hora de rasgar a tela como lençóis velhos, papéis escritos, com o gesto esquecido do fracasso às portas de outro enigma, sempre adiável.

Com panos também se faz uma máscara, e você recusa. Você olha para todo o material disposto sobre a mesa, o piso, o cavalete, e odeia. O pêlo da gata está eriçado: é a hora do embate.

Você dispara com os olhos, já morta. E me pergunta se é capaz, se uma pintura pode ser, estar. Você expõe sua fome, como Sísifo. E, da montanha, não recolhe o ódio, mas o enigma de Cézanne.

O mais difícil é chegar ao que já fomos, somos, ao que éramos. Ao centro, ao ex que ainda é, uma jogada arqueológica.

Difícil é escavar essa vontade dispersa, engastada há tempos com os pincéis, com as tintas já velhas e endurecidas, os papéis amarelados. Voltar a ser para deixar de ser, na espiral do sendo, sendas.

Essa é a trajetória do perigo, do perder-se: remontar ao outro de mim, o que era (estava sob), o que retorna como sempre.

É hora de depor os pincéis, abaixar os braços. No instante em que você se vê na tela, depois de anos, labirintos. Quando seus olhos vislumbram o verde que você trazia na alma, aquele de um tempo obscuro que você não esquece, a água na calçada e no asfalto, espelhos, folhas, os cinamomos nus, o frio das tardes na memória. Quando chove.

Então você recupera os seus escombros, jogando no pó das gavetas e das telas. Você renasce dentro da esfera da idade. E treme diante da palavra tempo. Como se agora fosse tudo mais difícil, na perspectiva oblíqua dos acasos, no permear das dúvidas. Você com suas perdas acumuladas: um sambaqui de si.

Agora você olha para tudo com olhos de tigre, no acosso dos sentidos, na iminência do salto. Você investiga os objetos como fósseis, rastros de palavras, pinceladas, gritos. Desconfia de todas as pinturas, todos os quadros, todas as cores, todas as figuras, como se tudo fosse uma grande biblioteca de chumbo, como se as letras fossem pedras do deserto, e você caminhando por elas em busca de algo liso e polido pelo vento. E esse polimento e essa erosão são a pintura, mas você não apreende o vento, que tanto intriga o puma e o condor.

Suas mãos sempre tão ativas e vazias. Mas o oco do vaso é a sua propriedade, a sua riqueza, a sua razão de ser para quem as paredes do vaso são cerâmica sem ser, apenas utensílios, auxiliares do nada, como o vidro e o que envolve o vazio, a água que ainda não está, o vinho que virá. Agora você percebe?

Você ilumina a moldura que é a parede do vaso, as margens da película, os limites das telas: aí está você diante do oco, do nada, e aí está todo nascimento do deserto: cristal, cerâmica, pigmento.

Você toda nasce desse movimento sísmico, cujo epicentro se perdeu. E resta apenas a memória do corpo. É com ele que você detona a montanha e redescobre os ossos. E faz nascer de novo a fome do puma. Você faz pintura como quem gera.

Mas é você mesma que se refaz e se dispõe ao frêmito do corpo. Você dá medo ao cavalo. Ele treme quando encosta em sua pele e rebate a fome com um coice. Você tem sede e mama no cavalo, com todos os poros abertos, com as mãos cheias. Ele não cabe em você, mas é como se estivesse lá, no sonho de um galope lúbrico, na força dos lábios e dos dentros.

Você mama e o seu cavalo é um desconcerto. Você derruba o cavalo com a língua. E tudo o que se perdeu nos fósseis e nas pedras, tudo o que se foi e que sofreu pressão e erosão reaparece nessa febre, nesse corpo pulsando como num relincho. E só acontece aí porque não há espelhos, porque você cabe com o animal dentro do vaso, longe de tudo, na imensidão do instante.

Eu digo que a pintura queima. E a tela se exaspera é na fricção com o corpo. E todas as cores interpelam, como gatos.

21 de outubro de 1996.

A palavra "porquê" da pintura, o nome da pintura, você tem que pintá-la. E quando a tela estiver pronta, não haverá resposta, mas a pergunta acesa. Por isso tanto faz se os seus temas são assim, se a abstração, se a cor. Você mistura os nomes, confunde.

De que fala a sua pintura? "Eu não entendi" - alguém fala diante de uma tela sua. Que sinceridade! Há tantos que falarão tanto sobre, dirão de algum lugar de onde se vê a pintura, acharão a resposta: e você estará sempre surpresa com os discursos, como se fosse uma espectadora a mais diante do inefável.

É que o nome da pintura não é, ele se insinua, erótico, nas margens desse curso entre ela e as pessoas, as personas que tanto falam - como falam! - ou não dizem nada, mudas.

A palavra "pintura" se esfumaça, escapa, e todos os discursos buscam essa chave, aquela, a que não há.

Eu sei que você se deprime. As pessoas querem falar sobre, estar sobre, e você, sob: submersa no desejo que falta, na cor do negro, no alvo. E daí você lança o grito: do outro lado do deserto tem alguém que olha a sua pintura como um gato, como um puma. Alguém que a vê como o cavalo vê a imensidão do pasto e seu mistério. Como o desejo pronto para o ataque. Alguém que a vê de dentro, à margem da palavra.

Você também se espanta com a coragem, com o risco. Você se arriscou, a sorte foi lançada. E eis que do fundo da aridez surge uma alma, uns olhos de outras cores. Outras palavras.

Então a sua surpresa circula e se transforma em perda: pois esse alguém não é, não está, ele já foi. Alguém que por instantes vitrificou a espera, o diálogo, na febre de um olhar aguçado. Alguém que mordeu a tela como uma presa, na fome da matéria. Mas esse alguém não está, é único e se foi, você o perdeu de vista.

O puma sacia sua fome é na solidão da estrela. Depois é o olhar perdido no deserto, na vastidão da aurora. E você só vê a tela sozinha, a tela vazia. De novo a depressão, a entrada, a descida. A pintura tem um nome fugaz, mas você já esqueceu. Quando o fogo.

1º de novembro de 1996.

Você esqueceu do seu corpo: você pinta vestida, quando a tela se entrega toda nua. Não sei como chegar à pureza da tela, se é o que você quer saber. Aos brancos.

Esqueça os seus pincéis. Não há técnica que devolva a você as artimanhas do músculo. Há mais saber entre suas coxas que em seus dedos. Esteja nua como o pano, estirada entre a moldura do atelier. Você terá medo. Experimente pintar com a mão, com os peitos. Use tintas laváveis, não importa. Importa é sentir que a cor se esvai quando você se lava, é uma perda e, ao mesmo tempo, você não pode continuar suja. Mas estará marcada para sempre. Não, nada esotérico: eu falo da pele, do músculo. Querida carne.

Você pinta com as coxas, com a respiração que falha, com suores íntimos. Falta estar nua, como o chão e as paredes. Falta levar a tela para fora diante do mar e das areias. Você indecente na praia vazia. Depois da perda, quando aquele alguém terá partido e o seu diálogo desfeito, só resta seu corpo esfregando-se nas cores, nos pincéis. É quando você abandona as perguntas e eu vislumbro sua pele eriçada e úmida debaixo dos pêlos. Mas minha língua nunca chega lá.

Eu sou apenas aquele que sonha com o pudor das sílabas. E sonho com você abandonando a pintura, nua como a pele do puma deitada pelo vento na conquista da presa. E embriagada pela noite e suas estrelas, perdida no ritmo das águas e da fome, dançando aberta com os panos brancos leves ao redor do corpo e pés descalços, molhada por dentro e tensa por fora. É quase arriscado se entregar à festa, agora que você indagou, e sua pintura pergunta quando você volta, por quê. Ela pergunta pelo ciclo.

Agora você luz seu vestido amarelo-esverdeado da cor de seus olhos, suas pernas quase inteiras e douradas, seus pés semi-ocultos sob o sapato, seus brincos que brilham como espumas do mar à noite, cabelo solto selvagem, com o vinho branco na boca ao mesmo tempo frio e com uma calidez de corpo quente na língua, à espera de outros sabores.

Você nessa noite é toda crime, antecipando a festa de sua pele, de sua boca noite adentro, coisas que você sabe. E há os espelhos, seu olhar buscando-se numa sedução de águas.

Você é única nesse instante, disposta a tudo pela vertigem, pelo outro lado do dia de trabalho, ao cruzar um limite. Parece que estou ouvindo sua voz com tanta intensidade, com som de água jorrando e corpo em transe, como quem se prepara para algo perverso.

Eu queria provar esse ato oculto, essa madrugada proibida. Mas você escapa da pintura, das perguntas: amnésias. Essa é a hora da liberdade, quando não há dúvidas, e as palavras dançam no lugar certo, sem tropeços. E seus pés já descalços pela areia úmida e fresca da praia procuram o contato com o delírio, com a noite dentro da noite.

Então vem alguém e põe a mão em você com um calafrio, acendendo o corpo, deslizando uma vontade pelo vestido que começa a ser amassado. Você olha para as estrelas e se pergunta por quê, por que tantas. Mas já é tarde para pensar, porque o vinho diluiu-se no corpo e na memória já feita de desejo.

Agora você não pára. E treme com a força de um músculo preciso na iminência do fogo.

É nesse momento que você diz adeus à pintura, na falta de ar, no alongamento, na flexão, no calor, no gosto de algo diferente na boca, nos lábios molhados por seja lá o que for, na tempestade que vem vindo com o vento, na água fria que já vem chegando contra a temperatura dos ombros, dos peitos, e você tem que correr rumo à pequena luz que pende da marquise da casa entre insetos, onde você se instala para começar de vez com o que seu corpo está pedindo, no agarrar daquilo que lhe oferecem, vibrando, no instante do ataque. Quando a noite.

Meu desejo não é escrever, mas falar. Falar aquilo que me está vedado, por onde vou percorrer alguma coisa dentro do sabor dos lábios, como o café que teimo em adiar diante da tarde. Falar com, na completude do instante onde tudo se apaga, se confunde como sombras no cruzamento das sílabas. Não quero escrever, mas perguntar, pensar alto dentro do enigma. Quero saber como quem conhece, na fome. Mas toda palavra se retrai diante do abismo - e se lança à gula, à míngua.

Circulo ao redor da palavra falada com tanto tempo, tanta fala que quero liberá-la, jogá-la, e receber de volta a jogada do espanto. Mas não consigo, então escrevo. Formulo papéis para que o vento espalhe no deserto. Invento diálogos.

Mas você é real, e minha voz se perde no percurso. Eu falo e fico só no limiar do minuto. Você pergunta como a sua pintura, e eu não trago respostas mas assombros. Você me escapa como o dia, as horas, perdidos que estamos na tarefa inócua de preencher segundos, deliberar sentenças, proferir vácuos. Quero descartar minha mudez para chegar a sós, com você, ao corpo do deserto: sem máscaras, falaremos de quê?

Nessa nudez da língua talvez eu toque em você como o fósforo no pavio, na noite interminável. Dessa fala você extrairá o lume que alimenta seus olhos, de um verde amarelado oceano. Mas nada disso ocorre porque somos cursos que não param.

Não há uma pintura entre você e eu, não há um poema: na solidão do gesto que agarra o pincel, que desenha sílabas, na imensidão do tempo encapsulado no agora que preenche uma linha, uma tela, aí sim a fagulha da fala, o lago do diálogo - mas, com quem?

Seus lábios me narram - ou pretendem - essa voz parada diante do embate, essa palavra presa à tela, ao grito, mas eu não escuto. O que conversa é o meu pulso, meus dedos tropeçando e deslizando na textura da polpa branca, espalhando signos perdidos, desconhecidos. Quando a página.

Depois se apoderam de objetos, de líquidos, de partes do corpo, de nada. O silêncio é minha mão crispada.

3 de novembro de 1996.

Você sonha com o improvável. Como quem tece sua aparência solitária na distância, numa vida oblíqua repleta de longos instantes. Imagina aquela casa simples que se avista da estrada, com suas janelas abertas para o campo, imagina o campo aberto de uma foto num país longínquo à beira da água, no limiar do imenso. O silêncio que espera depois da cerca, depois do horizonte, assusta.

Mas é agradável pensar na distração do tempo, no dia-a-dia sem presente, num hoje indefinível. A surpresa de se estar à-toa, na órbita das horas. Aí, como seduz a lâmpada acesa no interior do casebre, alguém numa janela, no pórtico para tudo, debruçado sobre um muro. Lá onde nada acontece, nada passa, onde qualquer movimento fica, e tanto faz se é domingo, primavera, noite.

Você pensa é nessa vida concreta do felino, e esse é o impasse: pensa. Você sonha em tocar no pêlo do puma e, quando os olhos claros dele se encontrarem com os seus, será como uma lâmina que, ao voltar-se, lança o brilho da fogueira na noite girando. E se depara com o inexorável: com o olhar que lançará ao crepúsculo imaginando o amanhã, a tarde de amanhã, a chuva, a noite em outras terras possíveis, alguém que chegará, o dia de uma partida, alguma carta.

Você repara na impossibilidade da solidão. É é quando se sente mais só, nessa armadilha da alma que já sofreu tanta cultura, tanto tempo, viciada no presente, saturada de atos, de palavras a dizer, de coisas a pensar.

Quando foge do tempo se encontra consigo mesma, um barril de tempo! É uma bateria que descarrega no golpe, aos poucos, interminavelmente, na violência do gesto, no momento em que sua mão aperta algo para o lançamento da tinta, na angústia do que ainda não tem forma nem cor.

E essa tela branca, estirada como o presente, é a janela, o campo, o céu avermelhado, o gato, o som do pássaro no vôo, as horas que não se acumulam, só se alternam, cíclicas, como a lua que se desenha agora que você decide voltar à pintura, voltar pra casa, e onde o sono pode mais do que todo pensamento, depois da taça de vinho.

No outro dia você acordou angustiada como se toda a empresa fosse inútil.

Tantas pessoas lhe dizem: "Que interessante a sua pintura", que você tem raiva.

No início do embate, há anos, quando a tela era enigmática e ameaçadora e, tateando entre tintas, você ainda buscava essa beleza indomável, essa força na imagem forjada, a surpresa nos olhares que chegavam. Quando você acreditava.

Agora o seu universo parece opaco, convocando ao branco, ao negro, à fuga da razão. É certo temer pelo unânime, pela cor de uma beleza correta, quando se exige é uma descarga furiosa que surpreenda e desconcerte como o salto do leopardo.

Você pinta com o coração, mas não decora, fustiga. E essa pintura acabada - cansada - é a que queria ocultar.

Ouvi que escrever é martelar sobre uma parede. Para você, pintar é emparedar a pintura. Assim, o que eu procuro em você deve ser o olhar, o olhar a tela que escondeu, derrubar essa opacidade que você me impõe com as suas telas, com os seus olhos amarelados.

Eu sinto essa presença que você oculta, que nunca está: você empareda a pintura mas ela grita, como o fantasma de um gato. E você se embriaga nessa febre, no delírio do pêlo de marta, na dança do tigre.

4 de novembro de 1996.

Seu dilema é ser oculta e, ao mesmo tempo, expor, expor-se, sabendo que o que vão encontrar no salão, no museu, não é você, porque você está dentro da parede, sob a tinta, antes do ataque do pincel. Você e seu pêlo antes do pêlo de marta, e o verde amarelado dos seus olhos antes desse verde-água na tela.

Eu sonho com você estirada no instante, sem memória, cega, disposta apenas ao transe, numa noite rara. Sonho você dentro da noite única, como se o dorso do seu corpo fosse o lombo do puma inconsciente percorrendo o pampa de nada, de nácar. Você saindo do túnel para entrar num campo de girassóis, num amarelo japonês cheio de lumes. E eu enxergando, num espanto, o seu olhar que é um, que é vasto, irrepetível na hora da vertigem, no traçar confuso dos segundos sobre o tatame, o terno sobre o duro.

Mas desperto, e então escrevo, como você, tão longe do deserto - apenas o imagina, desperta e pinta.

Sonho que pinta com a língua, que tinge o dia de vermelho lambendo o tempo, enfiando a língua nos rasgos da tela, vãos que dão para o outro lado. Sonho que pinta com os peitos, vertendo a tinta líquida pelos bicos e esfregando nos panos, no outro corpo, como uma pintura dupla onde você desiste dos pincéis e agarra outras figuras, ferramentas, e beija até engolir a tinta, o vinho tinto, a gula: você é muito.

E eu, com fome, a devorar espaços, sem que o gosto da língua me sacie. Espero, espero, e não degusto a sua respiração, seu paladar. E volto às sílabas, ao branco, como você se entrega à trama têxtil com ganas, e nos encontramos no simbólico.

Essa é a falta que me marca, que delata a ausência, algo que vejo mas não creio. E tudo parece uma máscara na noite, escondendo o desejo de tocar alguém, chegar ao outro lado da noite, ao impossível.

5 de novembro de 1996.

Assim trocamos cartas de papel feito à mão, palavras moldadas, caligrafias sutis. Munimos o papel com aquilo que nos faz falta. Você pergunta o que fazer com tudo aquilo que sobra quando a tela termina: é tanto, e vai-se pelos dias presenteando espantos, mas a conta-gotas, e nunca acaba, enquanto seu corpo se ataca de perder-se no meio do caminho, mas volta depois da madrugada quando a tela dorme.

Sua pergunta é pintada, quando a sua fala se esconde no corpo: minha resposta é devolver a pergunta em forma de cartas, meu corpo na sombra: eu sempre penso na fala de alguém que não esqueço, que não pude conhecer, e não posso abandoná-la: "cartas" que recebo e que partilham da falta e sua denúncia. Mas são discursos silenciosos, cujo corpo já se perdeu, diluiu-se no tempo.

Seus lábios, entretanto, vivem, sua garganta grita como tantas - e eu não posso conhecê-las a não ser tatuando a ausência no papel: nos vemos na galeria, no correio, no museu, no envelope, na tela encoberta por um pano, na página do diário fechado, assim como a pintura sufoca na moldura e você engasga com o seu silêncio.

Você indaga pelo grito fechado, mas exibe pudor. E eu tenho apenas folhas de papel ainda não lacradas. É a hora do fogo.

6 de novembro de 1996.

(Sonho que você chega no final da tarde ao atelier e, antes de passar a chave na porta, antes de a fechadura abrir-se para o improvável, olha o crepúsculo, essa massa avermelhada que demite os brancos e se espalha sobre as casas. Você pára: brinca com a chave na porta, como se estivesse abrindo/fechando, e o avermelhado toma conta das coisas quando a porta do atelier se abre, olha o branco dos lençóis sobre as telas e materiais e depois pensa em fumar. A noite se intromete devagar, você acende um fósforo e acende os lençóis: você libera a pintura das molduras.

Quando tudo está em chamas, você sai fumando lentamente e busca no céu estrelado uma centelha vermelha, um resto de fogo que já se perdeu).

Sei que olha para as coisas de um modo agreste, dentro da terra. Como vê o fogo na cor, a madeira no pano: você engana espelhos.

E desse seu olhar não posso falar, a não ser de forma oblíqua, fora da razão, no limite de um discurso anfíbio. E isso me intriga, pois não vejo você - já que ser é uma maneira de ver: do seu olhar guardo a impressão de uma barreira de vidro. E para olhar para você - como para sua pintura - tenho que me desdobrar, mas não me alcanço. Por isso ensaio o devaneio, uma poética do acaso: vislumbrar entre sombras a cor do seu olhar, como entrevejo a febre que sua tinta exala.

Para ver, tenho que ficar nu, e não é fácil. E escrevo para ver, para enxergar o poço que cavo na página, a parede que martelo. Você é meu cinema.

No escuro, assisto a essa passagem do tempo em seus pincéis, a luz que escolhe o planocom todos os poros abertos, com as mãos cheias. Ele não cabe em aga e me movo entre poltronas va, no sonho de um galope lúbrico, na força dos lábios e dos dentrxidade que você libera cada vez que vê - a passagem do visível. O lado de dentro, esse objeto obscuro, denso numa nuvem de dúvidas, saltando na temperatura da tarde, escapando pela fome, longe do meu campo de visão: uma direção felina.

(Mais fácil é tocar fogo nos papéis, que se evolam mais rapidamente que a tela. Ali, naquele segundo intenso, toda a força se concentra e se dissipa na qualidade da chama, algo único para se ver. É ali, na fogueira da noite, que o puma se aproxima para ver o insondável, o enigma de um perigo possível. O puma é amigo da labareda. E eu, disposto no decurso das horas, fico perplexo no momento do fogo, na enormidade do efêmero).

Tudo abandono, menos o mar e seu verde imponderável. E quando você olha para ele, parece que seus olhos se tingem dessa cor profunda como um espelho. Você oceano. (Pesco todos os dias nas tardes. Águas escuras por enquanto).

7 de novembro de 1996.

Minha solidão é a da cegueira. É a de quem sempre devora e está sempre faminto. Por isso, o seu olhar intrigante, indagador, me salva de uma inanição, mas não completa. E fico circundando com páginas como a uma presa, no júbilo do círculo: todo alimento é um pretexto. Mas sei que, para sobreviver, tenho que seguir comendo na urdidura do tempo, na seqüência do interminável, na escassez. Quando a fome, onde a fome.

Devo inventar motivos como uma guitarra.

(Quando chove. A janela, a mesa, o charuto aceso e o fósforo em repouso, donos de um silêncio cíclico, sem dores) Estou à deriva no meio das águas, do dia cinza, quando escapo para fora das horas e volto na imediatez da tinta negra, do pouso da pena na página. É nessa hora que lembro do que ainda não veio, de um passado fugaz e sinuoso que, de minha cegueira, já não posso ver. O futuro é essa folha sendo virada, e do outro lado já está o agora. Lá fora tudo é úmido e passa gente apressada, tão dentro do tempo como os relógios. Não tenho mapa dos dias assim e me extravio. Vejo rastros de tudo, vejo traços dispostos ao acaso no desenho da tarde, o preto no branco como pegadas, um tigre perdido pelas trilhas, restos de animais devorados.

Olho a janela e tudo está enquadrado de forma oblíqua, sem roteiros. Volto a procurar uma imagem na memória, volto a garimpar e a escavar o deserto no rumo de uma pedra, de uma cor preciosa. As luzes começam a acender mais cedo na umidade da noite, dentro da névoa. E há um brilho oculto por detrás das coisas, e a passagem está vedada. No silêncio, conto o ritmo do corpo e seu ruído como o de um coiote. Escuto uivos. Dentro da noite lenta.

E tudo pesa, como páginas de chumbo - e é por isso que você, com sua pintura, voa acima da linha d'água na mira do peixe veloz, na urgência da fome. De novo eu volto como a gaivota em seu percurso de fissuras e acasos, ao redor de ilhas. E passeio por mim na gramatura do instante, dentro da voz baixa, falando com a promessa de nada, com o vazio repleto, com os olhos abertos para o outro lado da rua, de dentro da janela e da alma. Quando chove).

(Um cheiro de cartas frescas, de papel leve e claro, virgem, cada folha como regaço e ameaça. De novo o sonho, mas desta vez você acende o fósforo perto das cartas, dos papéis. Você olha para tudo com desconfiança, indaga sobre a sua pintura e sobre essas cartas que envia, que recebe na noite atroz, no cinza da memória, quando a sede.

Você atravessa o atelier com o fósforo na mão, dona do tempo. Lá fora é sempre frio, e você se aquece na iminência do fogo. Tantas palavras à margem do dia, tantos rabiscos empilhados sobre horas dispersas, e você, de seu olhar felino sobre a impossibilidade, prevê o fogo derradeiro. Vejo você nua, descalça sobre o piso com a promessa das chamas. Você prevê que a pergunta é insólita, perdida.

Não há vitória no gesto do ataque, no agarrar o pincel ou a pena: seus olhos percebem o movimento do tempo, que é amigo do pó e do deserto que varia, imutável. Na trama de um diálogo perdido, você se exaspera e pede coragem. Você pensa no álcool como artifício, embriaguez e vício que desatam o fogo com a velocidade do agora. Seus olhos querem ser donos do fato, donos da lembrança: você se adianta às ruínas, constrói os escombros que virão.

É a hora do gesto violento, fora da espera. Você acende o fósforo e espalha o calor de seu corpo por panos e papéis. Seus olhos trazem o brilho de uma ação dourada pelo espelho, no calor das chamas. Manchas, cores, frases jogadas no tempo começam a transformar-se em mera fugacidade sem testemunhas. O fogo tem fome. Seu corpo estremece na temperatura. Você busca as cinzas, como uma arqueóloga nos desertos imensos. E depois será o grau zero, o dia seguinte que é anterior a tudo.

Quando tudo já é chama, e seu corpo treme diante do irremediável, seus olhos refletem uma imagem trêmula pela presença da lágrima. E então você parte para a noite imprevisível).

Desperto e não vejo nada. A imagem-devaneio me agarra e a luz mortiça do dia me confunde. Vejo aos poucos a insipidez das coisas, a sombra dos objetos, o frescor da chuva batendo sobre o chão, as folhas das árvores imóveis.

Há algo incompreensível lá fora. Aqui dentro me movo entre tropeços, longe de um dia já esquecido. Lembro de um discurso perdido, de falas opacas dentro da noite, de um desenho de sílabas confusas. Minha memória falha, fala, e eu vagando pela casa me distraio pelos móveis, por papéis.

Estou perdido num deserto de lembranças, nada é seguro e procuro a fixidez do momento. Agora tudo me parece um alívio, como depois de um sonho longo e exaustivo quando sou saturado de imagens e todas são irreais. Bebo o café de sempre, como o pão já conhecido e a manteiga disposta ao acaso sobre a mesa branca, a xícara branca, o brilho do metal na faca, o clima cinzento como a noite. Percebo aos poucos o equívoco das horas, não sei se é cedo ou tarde, mas saboreio um redemoinho de cenas translúcidas, como detrás dos panos.

Penso em tantas cartas e não vejo nenhuma, como fantasmas que se foram. Imagino você e seu olhar de gata e não lembro de sua face, de seu corpo. Parece que não há nenhum gesto impresso, não há nada, apenas a impressão noturna de um tempo que teria sido longo, mas coube numa noite de sonhos.

Vasculho meus gestos dos dias anteriores e tudo é ausência. Sobre a mesa, o vinho inacabado, os dois terços fumados do charuto, os papéis dispersos, avulsos em sua brancura, os envelopes virgens. Tudo está calmo como no dia de um desastre.

Sinto a textura dos acontecimentos no corpo, na língua, mas esse sabor me escapa como se tudo tivesse sido apenas virtual, dentro de outro tempo noturno, quando a embriaguez detona imagens.

Como tudo, você também parece um fantasma que vagueia pelas paredes dessa casa, como falas perdidas, vozes roucas. Remexo esses papéis em busca de uma frase inexistente, uma resposta nula.

Tomo meu café e vejo, sob os envelopes, umas sílabas pretas. Ali está o seu endereço como uma palavra mágica, um amuleto. Descreio dessa cena e me imagino no deserto, onde as máscaras caem. Mas torno a olhar esse endereço e é como se eu estivesse preparando uma armadilha para mim mesmo, na burla que distrai os solitários. Além do mais, esse "seu" endereço tinha a minha letra, a mesma letra dessas páginas inviáveis, desse percurso vão por uma correspondência alheia, falsa, sem matéria, na caligrafia rápida de quem só sente ausências.

Para não perder o que me restava de tempo, para desfrutar desse final de ficção que me arma jogos dúbios - que, depois da tarde, volta a apagar-se para afundar-me de novo na vida real, nessa que não cabe no sonho -, para seguir na mágica da qual se sabe o truque, mas queremos sempre ser enganados no mesmo - como a criança que quer ouvir sempre a mesma história -, agarrei com força esse endereço e parti para o engano.

Na chuva, no gris da tarde, meus passos cambaleavam depois de um sono cansado feito de vinho, imagens e horas acumuladas.

Parei diante de uma porta na calçada, numa casa antiga com janelas que pareciam estar fechadas desde e para sempre. Ali não morava ninguém, mas uma aldrava me atraía como a corda pendurada de um sino, como o pássaro do qual me aproximo e não se espanta.

Reli o endereço e bati com a aldrava na porta, com força. Olhava para a rua deserta no mormaço e sua quietude de janelas ocultas. Quando estava para partir, na desistência de prolongar um jogo inútil, a porta se abriu.

Olhei para aquele espaço se entreabrindo com sede, olhei para ali com a crença ridícula de quem se espera visto pelo outro, pelo olhar de alguém na tessitura dos dias.

Busquei você com os olhos e com o corpo. A porta se abriu por completo e pude ver, sem espanto nem surpresa, uma senhora encarquilhada por tantos movimentos ensaiados ao longo dos anos, na placidez de um tempo contínuo e igual, de olhos insignificantes e estatura diminuta, alheia a qualquer coisa que não fosse esse espaço encenado onde tudo se compunha de sombras e de tédio.

Fiquei feliz como quem descobre que é uma farsa, aliviado pelo fim de um jogo perigoso que me leva ao exercício do insano, à caça de fantasmas pela noite insone, à contagem de sílabas em papéis alvos de tanto nada, tanto tudo.

Medi a força de engano do sonho e me inibi diante daquela senhora intacta, pura em sua fala sem perguntas, dentro da paz e do horror das certezas. Era hora da despedida, do fracasso.

E não pude compreender quando, ao querer virar-lhe as costas e murmurar "até logo, foi engano", ela abriu ainda mais a porta sem deixar de fixar-me. Ali parada escancarou a porta junto ao rumor de uma fala longínqua, ruídos dispersos de uma voz que soava mais alto, uma voz que articulava algo como se a velha fosse objeto de um ventríloquo.

Não pude entender quando essa voz chegou de um outro corpo, uma figura que aparecia nas sombras da entrada da casa e dizia num som claro como a luz que saía detrás das nuvens: "Pode entrar."

Foi quando me deparei com aqueles intensos olhos de ágata - e ela sorriu.