Palavras na penumbra

Renato Tapado



E a nossa voz é um som que se prolonga

através da noite.

Um som que só tem sentido na noite.

Um som que aprende, da noite,

a ser o absoluto silêncio.

Cecília Meireles, Doze noturnos da Holanda.






1

Escrevo a noite, sua lunar brancura

a iluminar as margens dos instantes,

a noite clara, sem depois nem antes,

que se desdobra, amante, na escritura.

Pressinto o gume dessa negra artéria

a alimentar o sonho da vigília,

seiva que salva o dia da armadilha

de perecer sem alma e sem matéria.

Escrevo o avesso do clareado dia -

com o vício de suas falas sem sabor -

numa impaciência que o papel adia.

Escrevo o escuro que o verso vislumbra:

o gesto urgente e puro de uma flor

colhendo sua existência na penumbra.







2

Noite clara, silencioso começo

de uma espera que traz uma brancura

tingindo as horas com seu véu espesso:

um ócio que distrai, mas não me cura.

Noite inerte, com o clima de um deserto,

que trama um recomeço, mas não fala.

Voz de felino anunciando perto

a negra esfinge dessa hora que cala.

Noite insone: sua máscara sutil

me envolve como o caçador a presa

dentro das horas como num ardil.

Noite infinita, de matiz perverso,

que à mesa, a essa hora, hipnotiza,

aquele que procura o último verso.







3

A página, o silêncio, um homem só:

este é o assunto que a palavra escande

no dorso de uma espera que se expande

pra dentro, devolvendo o tempo ao pó.

As sílabas mesclando-se no branco

nada dizem, somente o sacrifício

de se impor ao papel que, inerte e franco,

ignora o tempo gasto neste ofício.

É noite. Tudo quieto. Só uma fala

desata solidão em versos mudos

como essa lua que em meu corpo cala.

Agora em minha volta já amanhece.

E aqui, dentro do verso, resta o escuro

compondo um tempo que jamais se esquece.







4

Escuto esse piano e me entristeço

como a chuva que cai neste domingo.

Escuto, e vibra em mim o que não esqueço:

uma dor que me abraça, e eu não me vingo.

O som da chuva, estranha melodia,

sem um compasso, só silêncio e espera,

dilui nas horas minha melancolia

como o andar furtivo da pantera.

Escuto esse piano e então escrevo

na página fugaz, com alguma pressa,

algo que não tem nome nem relevo:

apenas essa dor que me distrai

como águas caindo rumo ao mar -

chuva que sempre chega, nunca sai.







5

Tudo o que ofereço é esta grafia

inscrita neste corpo em celulose.

E a acolhes em tua língua essa dose

que bem sabe, mas o seu fim se adia.

Saber e dor dentro da clara falta

é o que te entrego na brancura lisa,

a superfície de uma pele-pauta

e melodia, como ave e brisa.

Disponho traços negros no papel -

são grãos sutis dessa necessidade

que te entrego, nutrindo nossas falas.

Então, disperso sílabas no céu,

e nelas saboreias a verdade

incômoda, que sabes e que calas.







6

O deserto é um lugar aconchegante.

Só mínimas gramíneas algo ralas.

Ali o tempo impera sem rompante -

não há razão, filosofia ou falas.

Sua beleza cresce sem surpresa,

em meio a um pé-de-vento ou a um cacto.

De dia, vê-se a lebre, fugaz presa.

À noite, o puma e seu corpo compacto.

Não há nada a fazer. O tempo espera

algum gesto vazio, sem compromisso,

diante de um rochedo ou uma cratera.

Fazer uma fogueira de um graveto:

é igual a escrever - gesto mortiço:

deserto que transborda este soneto.







7

Há um silêncio leve sobre as ruas.

Esconde-se em sua tênue vaidade.

Ninguém o escuta. Vai pela cidade

compondo um vento de palavras nuas.

Foge do tempo, foge dessa urgência

de dizer tanto, e tudo, e não ser nada,

e encolhe-se no oco de uma ausência,

como uma ave oculta a face alada.

Há um silêncio vivo como a pele,

que pulsa sob um têxtil desatino,

disposto a seduzir o que o impele

ao devaneio. E o impulso vence-o

e abre uma outra face em seu destino:

pois dentro do silêncio há outro silêncio.







8

A lancinante espera e o doce espanto

convergem em meu espírito com sede.

Cada minuto vasto é um acalanto

que dói e me aprisiona como rede.

A folha virgem, hóspede da fome,

degusta a concisão dessa paciência.

Essa clara vertigem não tem nome,

mas do seu vil papel me dá ciência.

Tempo senil, horas em desalinho,

que varrem do meu corpo a tez serena

e levam-me à procura de outro vinho.

E o brinde faz-se, sílaba calada,

sabendo a amarga e duradoura pena:

palavra escrita, vida derramada.







9

Lançar palavras: gestos à deriva

de alguém perdido em meio à tempestade.

Compor com elas a verdade esquiva,

sem som nem sombra, muda vaidade.

Garrafas que viajam, mas vazias,

decepcionando os náufragos sedentos.

Tábuas sem lei, sem peso, só avarias,

que se desfazem com a fúria dos ventos.

Letras na areia, versos de armadilha

capturando algum passante adepto

de um jogo marinheiro numa ilha.

Papel mordaz, caligrafia escura

que traz à solidão a falsa vela

a iluminar o breu dessa brancura.







10

Agir, correr, sair do sobressalto

em que me encontro, nesta vã espera.

De um ponto de onde possa haver um salto

a algum lugar, a alguma outra quimera,

não onde estou, não esta que se instala

nas frestas do minuto ensandecido

como a sílaba que me fere e cala

a corroer o ser e o já ter sido.

Sair, sumir do mundo, transgredir

o avesso de um avesso tão fechado

dentro de um dia disposto a partir.

Fugir, romper o lacre ensimesmado,

à outra margem, longe de um devir,

onde me espera o ainda não criado.







11

Duro, cansado, raro, tropeçado,

este soneto sai como um instante

inquieto, inerte, sem nada empolgante,

um paralelepípedo truncado.

Um ritmo de cascos de cavalo

numa rua repleta de reflexos

de sons, de luz, sem lógicas, nem nexos,

e em cada passo torturante, um calo.

Carro-de-boi, este soneto avança

aos trancos e barrancos numa estrada

que é só poeira e que ninguém alcança.

Travado o som, caindo de uma escada,

qual uma sílaba que então se lança,

este poema é a pedra em cada entrada.







12

Tarde sem fim, atividades vãs,

nenhuma pluma de beleza pousa

em minha mesa. Como essas maçãs

sem seu Cézanne - ninguém aqui ousa

o gesto puro e ávido de olhá-las.

Contando as horas, busco uma matéria

(sei que não há, também sabes e calas)

que torne esta tarde menos etérea.

Esqueço o dia. Perco-me na espera

de um olhar que me devolva a pureza

de fitar essas maçãs como uma fera.

Mas meus olhos se perdem numa espuma

de afazeres, de tédios e incerteza,

e tudo se enovela numa bruma.







13

Do que lembrar para enfrentar o instante,

esse tempo farpado que me escolta,

e armar-se de uma febre delirante

que distraia essa abafada revolta?

Como buscar no poço da memória

a matéria de ser, já tendo sido,

envolto na artimanha que é a história,

esse presente que já é tempo ido?

São frios os dias. Nada me cativa.

Tudo é um presente neutro e sem decência.

Quero esquecer - e minha memória ativa.

Fecho meus olhos. Vislumbro a cadência

do fogo em sua dança. E o meu corpo

procura em cada sílaba uma ardência.






14

Busco o silêncio oculto

por trás das falas claras,

um inefável vulto

de mudez e voz raras.

O silêncio inaudito,

que não cabe na boca,

algo vão e infinito,

uma palavra oca.

Brancura sobre branco,

o nada soletrado,

um mentiroso franco

escondendo a verdade:

silêncio solitário

de um alguém nesta tarde.







15

Caçar palavras, exercício inútil

nessa espera maciça que é a cidade.

No entanto, cada palavra arde

nesse deserto de horizonte fútil.

Buscar a sílaba que feche a rima

quando lá fora tudo desmorona,

mais do que insanidade vindo à tona,

é permitir que alguma coisa exprima

a dura ausência. Cada verso tece

a falta exasperada desses dias

em alguma fábula que não se esquece.

Ataco as horas. Fustigo a camada

sob a pele de tantas agonias.

Escrevo o fogo e sua paixão: o nada.






16

Diante do mar, esqueço a gramatura

dessas horas tão ásperas, sem véu

que cubra essa imensa e vil secura

disposta a castigar a terra e o céu.

Mirando a trajetória da gaivota

o meu olvido infla e reverbera,

fugindo da manhã, ganhando a cota

de sonho que meu gasto corpo espera.

Diante do mar o dia se esfumaça

em meus olhos cansados da cidade -

caçador que abandona a sua caça.

E em sua vaga eterna, mas fugaz,

percebo que no instante se concentra

o agora, o amanhã, anos atrás.







17

Outono, céu cinzento, névoa fina.

Há um aconchego perto da lagoa.

Tudo se cala nessa hora à toa

em que meu corpo à lassidão se inclina.

Há uma aranha tecendo sua espera,

à cata de uma distraída presa.

Há um gato que me olha sem surpresa

de sua tênue e enovelada esfera.

Nada a fazer. Do meio do aconchego

um tédio se insinua. Sem apego

ao dia componho uma imagem pura.

No meio do silêncio desta casa

me lanço ao tempo, pássaro sem asa,

neste caderno de fugaz brancura.








18

Um vento suave, em cálida passagem,

afaga lentamente minha pele.

Esqueço as horas nessa breve aragem,

antes que o tempo envolva a vida e a sele.

Nada a fazer, nenhuma ação pensada

neste instante em que tudo está adiado.

Apenas essa mínima tourada

que o vento faz com meu corpo cansado.

São três da tarde. Apuro o meu olhar

neste calor que só me traz miragens

e busco a fresca imensidão do mar.

Mas o vento, que a espuma azul evola,

me lembra que o calor ainda resiste,

o tempo impera - e tudo vai embora.







19

De quanta alma necessito

para guardar-me do presente,

essa estação fugaz e ausente,

num caminhar vago e finito?

Como grafar a minha fome

em algum formato de beleza

se em mim se ausenta essa destreza

em transformá-la em algum nome?

Vivo escrevendo e não esqueço

a alma faminta que não dorme

sempre que, insone, eu amanheço.

E dentro da ampla madrugada -

o tempo com seu peso enorme -

eu teço uma palavra alada.








20

Outono. Escuto o passo de um riacho

em meio à noite fria e cristalina.

Escuto esse vazio que desatina

onde procuro algo e nada acho.

As folhas caem, tudo cai no escuro,

nesses dias de verticalidade.

E quando me deparo com outra tarde,

o horizonte é um desgastado muro.

O céu é cinza. É fria a água do lago -

espelho opaco que nada reflete -,

mas aqui dentro trago as mãos de um mago:

invento sílabas que o tempo esquece

- nesse papel em branco em que me vejo -

e finjo que essa página me aquece.








21

Barco chegando. De onde terá vindo

essa mancha amarela sobre a água

que, calma, vem de algum trabalho findo

e me lembra - por quê? - alguma mágoa?

Na praia azul e branca, pousa o barco

de velas claras contra o céu cinzento,

como um poema que retesa o arco

contra o tédio feroz deste momento.

Distrai-me o vôo de uma gaivota

em sua alva e fria indiferença -

ignora a praia, o barco e a sua rota.

E eu, caderno aberto a esperar,

aceito o barco sem nenhuma crença,

arrisco e lanço palavras ao mar.








22

Entrego-me à passagem dessa hora

em que estás silenciosa e um tanto ausente.

Contemplo o longe que teu corpo sente

e envolve esse momento sem demora.

Não há nada a fazer. Tudo se adia

no instante em que teus olhos se distraem:

são pérolas escuras que me atraem

brilhando na penumbra desse dia.

É tarde. Sinto frio. A noite avança

e sonhas com o aconchego de um abraço

numa infinita e inebriante dança.

É quando teu olhar desperta e brilha -

centelha que me aquece num regaço:

a fome unindo o lobo à sua matilha.







23

É um parco adeus esse que reverbera

em meu corpo cansado e afeito ao rio.

Adeus que se despede em desvario,

mas vai ficando, porque o tempo impera.

A cada instante, um gesto se prepara

como se fosse a fonte da partida.

Mas o que era, alguma volta ou ida,

depois que o tempo ao gesto se curvara?

Tudo é passagem, pressa do não-ser,

contaminando as horas já vazias

de algum minuto por acontecer.

Tudo é espera. Pátina que traz

camadas de um adeus que se desfia

em branco e preto: página fugaz.







24

Um café com a varanda para a rua,

uma mesinha escura de madeira.

Em frente, a praia e sua paisagem nua.

Dentro do bar, ter uma tarde inteira.

Frio e chuvisco, um copo de conhaque,

não ter nada a fazer senão olhar

a gaivota e seu bico de ataque

rasgando a escura página do mar.

Ninguém ali. Silêncio que se escuta

como se houvesse a noite sem cidade

e o tempo não movesse a roda bruta.

Um café com a varanda para a rua.

Tudo se acende num instante insone

nessa lisura da página nua.







25

Um gato na caixinha se entretém

com um ínfimo brinquedo, quase nada,

algo que não se mostra, mas contém

a graça e o risco de alguma jogada.

Não sei o que ele busca no vazio

desse espaço sem uso, limitado,

que o faz se deliciar num rodopio

sem fim, sem objeto, só agrado.

O pouco com que o gato se contenta

criando desse oco uma vertigem -

brincar com a solidão como uma bola.

Tento aprender o que meu gesto inventa

copiando o gato na página virgem -

caixinha onde minha solidão se evola.








26

Um gato se contorce quando dorme:

sonhando alguma caça noutro espaço,

se enrola como se um novelo enorme

rolasse no intervalo de um abraço.

Tem a respiração pousada e suave

de um fole descansando na lareira;

suspira às vezes como se uma ave

pousasse sua delicadeza inteira.

É noite. O dia inteiro, ele dormiu

guardando a força e a sábia rapidez

para a hora da caça por um fio:

o instante em que a garra se apodera

daquilo que sacia a sua fome.

É noite. E estamos - ambos - à espera.








27

Vagando nessas ilhas tão longínquas,

o albatroz distrai-se do seu bando,

sobrevoando as águas tão profícuas

de azul e de cardumes - até quando?

Desenha com o seu corpo a linha cálida

da queda, do desvio, de alguma curva

que traça, vê do peixe a mancha pálida

e então mergulha na vertigem turva.

Saciada a fome, pousa nos rochedos.

Dilata o espaço observando o nada,

que se estende, leste a oeste, norte a sul.

E agora, nesse tempo entre penedos,

sede, sal, uma solidão alada,

ele imagina um alimento azul.







28

Preso ao instante, hóspede do eterno,

me apego à tessitura de um segundo,

tempo em que apago a dureza do mundo

diante de um tênue movimento interno.

Dentro do dia imóvel e da espera

disparo a dúvida como quem grita,

e em cada verso ou sílaba se agita

esta inquieta e solitária esfera.

Na noite imensa, busco uma matéria

que me lance a esse sólido mistério

em que cada palavra é bruta e etérea.

E tudo pende desse espaço alto

onde me entrego à minha sina febril -

o instante preparado para o salto.








29

Aconteceu que ser me foi pesando

como a gota monótona dos dias,

sem começo que fosse terminando

qualquer coisa entre essas horas tão frias.

Ser e ser, como escapar dessa febre

sem remédio, acúmulo de sede

que me agarra como a pantera a lebre,

diante do mar com sua imensa rede?

Cresce a sombra - do quê? Não sei dizer.

Alguma coisa tece a sua textura

com um fio que se estende e não tem fim.

Abro o caderno. Encontro o que fazer

com essas sílabas, manchas na brancura:

um caminho para sair de mim.








30

Eu sonho com um instante que não dura,

vazio de tudo, pleno de outras vozes,

espaço em que me atenho a essa brancura

sem presente, sem bípedes velozes

a despejar suas frases pelas ruas.

Sonho com a consistência do silêncio

qual neve a embranquecer paredes nuas,

num texto cujas letras, ponte pênsil,

deixam passar a vaga de um tumulto.

Escuto: o tempo inteiro é um desvario

coberto pelo ruído de algum vulto.

Espero: e essa sina se apodera

de meu corpo. Pertenço a outra vida,

a um silêncio, a uma outra era.








31

Chove todo o dia. Névoa no jardim.

Em toda a mata, a cor cinza se instala.

O amanhecer se adia, tudo cala,

menos essa impaciência que há em mim.

Escuto os pássaros, e os sons diversos

não param nesse frio, nessa umidade,

vencendo o dia quase sem alarde,

apenas música, como alguns versos.

A chuva segue. A noite se aproxima.

Os pássaros preparam seu repouso,

e eu volto a perseguir aquela rima.

Faz frio. Diante da lareira acesa,

também componho um canto contra o tempo.

Ser pássaro é minha única certeza.








32

Áspero jasmim, queda de uma estrela,

escuro tato nesse lento ocaso,

tal primavera, nada a entretê-la,

e nenhum rastro, só o riacho raso.

Este é o tempo que tudo devora,

como névoa noturna sem enleio:

esse perfume que, roçando, agora,

dilata este presente que receio.

Os pássaros me avisam que já fui.

A coruja, que nada há amanhã.

Essa espera que pára (e tudo flui)

rola suas pedras num mutante leito.

Só eu lanço no rio, num vago afã,

um poema que faço - e em que sou feito.








33

Num tempo circular, mas sem retorno,

as sílabas que sonho já existiram.

Fugazes almas, pássaros do entorno,

formam palavras que não desistiram.

Enlaçam-se no caos dessa matéria

ávida de abandono e de sentido

e tentam um rancor contra a miséria

destes dias, o nada compartido.

É noite: o instante em que alimento,

fora da frase, fora da poesia,

a loucura de ser um contratempo.

É mar: esse sem-fim de um amuleto

vazio. E essa espera, sem magia,

não cabe na estrutura de um soneto.








34

O som da cachoeira e sua sina,

a chuva que começa e não tem pausa,

os pássaros que cantam lá em cima

e não têm horas, nem sentido ou causa.

Nada se cria. Tudo em si já é,

sem fim e sem origem. Tudo cala

quando quero buscar nessa maré

um signo naufragado. Nada fala

no dorso deste instante sem demora.

Só a cigarra com sua voz acende

o ocaso sonoro desta hora.

É noite. Tanta coisa aqui se tece -

na mata sem ninguém - que me surpreende.

Escrevo porque nada me acontece.







35

Esse rio que me cobre sempre passa,

em sua distância feita de abandono.

É como o tigre que em algum outono

ignora a presença de uma caça.

Eu permaneço nele, mas me isolo,

sonhando seu percurso, como um seixo.

Ele parte sem sonhos, e eu me deixo

ficar como uma ausência presa ao solo.

Aonde irá o rio, do que ele foge,

querendo sempre ser e já ter sido,

sem ter quem o distraia ou o aloje?

Enigma. Claro instante que vislumbra

meu ser: só uma passagem, mas o rio

é eterno. A resposta é uma penumbra.








36

Um lago azul se faz em minha memória.

Sua clara paciência me ilumina.

Num instante em que já não há história,

a névoa se dissipa na retina.

A fina transparência de seu dorso

convida a uma carícia que demora,

sem causa de um desejo, sem esforço,

como a manhã que há fora de hora.

Fechando os olhos, vejo o que não tive:

a lânguida pureza de uma lâmina,

o sonhado rastro onde não estive.

Um lago me perturba a consciência.

Saber que, sob o sonho, ele se esconde

na opaca concisão de sua ausência.







37

Há sempre um limiar inacabado,

um horizonte sem projeto ou fim,

como se o tempo estivesse adiado

em sua alvura aguda de marfim.

Há sempre um pórtico que desconheço

atrás da pérgula cuja textura

parece esse tecido que eu esqueço

para escapar da realidade impura.

Há essa janela, um peitoril disperso

onde minhas mãos não encontram descanso,

nem meus olhos divisam o universo.

E há essa porta sem trégua ou fechadura

entreaberta, levando a algum remanso,

por onde passa, sedenta, essa escritura.








38

Pulsão sem sono, febre sem estaca,

é o que move meu corpo pela rua.

Há sempre essa premência que me ataca

diante do tempo e sua certeza nua.

Viajo como se meu corpo ousasse

partir tal qual a ave migratória.

Mas ele me acomoda num impasse:

levar-me junto em sanha compulsória.

Navegar é preciso, mas me esqueço

em cada porto, como uma encomenda

sem dono, e já não me reconheço.

A cada passo longe da cidade,

estou em casa. Cada nova senda

já prepara de mim uma saudade.








39

Dizer essa beleza que me escapa.

Tal o dilema de um exercício insano.

Buscar palavras - e o papel solapa

o verde rio e as cores do tucano.

Querer grafar a força de um espanto

com o tucano e sua presença pura.

Tecer todas as cores, vendo tanto,

e ter só o papel em sua brancura.

Dessa loucura, vive o que se afasta

do mundo abarrotado das imagens -

para quem somente um inseto basta.

Também uma palavra é suficiente,

mais colorida do que mil miragens,

para pintar este tucano em frente.







40

Nenhum lugar. Silêncio. Corpo mudo.

Distante qualquer forma de presença.

Total disposição, nenhuma crença.

Um simples gesto abarca quase tudo.

Tudo a fazer: na curva de um instante,

criar a tessitura de um acaso.

Da mínima noção, de um solo raso,

quase falar um signo balbuciante.

Ante esse nada branco de marfim,

repleto de potências escondidas,

indago essa memória que há em mim.

Fim de poema. Lembro-me de algum

lugar que, outrora, trazia perdidas

palavras, e seu sentido: nenhum.








41

Uma gota de chuva numa folha

exibe sua feição tremeluzente.

Ela não cai, não há quem a recolha,

e se agarra ao momento tenazmente.

A chuva já passou. Ela, no entanto,

sozinha nessa mini-superfície,

distrai-se, e para ela o espaço é tanto

que parece uma infinita planície.

Sua existência é curta. Não importa.

Experimenta o gosto do perigo,

da vertigem da folha que a transporta.

Também vive do instante o meu olhar.

E do efêmero evento que persigo

faz sua folha, pronta a perdurar.







42

Depois da chuva, vem o sol poente

alaranjando parte da montanha.

Na outra parte, o céu cinza e morrente

reflete minha tristeza e me acompanha.

O fim de tarde agora se refresca.

A lua ainda demora, mas virá.

À beira-rio, existe alguém que pesca.

O canto das cigarras soará.

A noite envolve tudo. Fico à espera

da sílaba que acabe com a saudade

que tenho de outro espaço e de outra era.

Escuro. Papel branco. Acendo a luz.

Dissipo essa tristeza que me invade.

Findo o poema - e ele me conduz.








43

Caminho a esmo pela estrada afora

e só o que tenho é minha sombra andante.

Não me deparo com nenhum viajante,

e tudo o que estou vendo vai embora.

Os pássaros, eu não posso tocá-los.

Escuto algum ruído, não conheço.

O mato à minha frente é tão espesso,

e o chão é perigoso em seus resvalos.

No entanto, a caminhada cria um vício

certeiro como o bico do tucano:

recomeçar a estrada desde o início.

Agora, a lua avança pelo céu.

E eu, viciado, pratico um insano

gesto: fixar vertigens no papel.







44

Fim de tarde. Um horário propício

para esquecer o que não vale a pena.

Fixar a minha memória neste início

de noite, hora em que nasce o poema.

E tudo escoa nesse rio veloz,

a chuva fina, o cinza deste dia.

Só eu e o tempo ficamos a sós

marcando o rastro na estrada vazia.

Na noite azul, o canto da cigarra

faz companhia à minha voz miúda

dizendo essa vertigem que me agarra:

em meio à cachoeira e seu estrondo,

grafando a falta com a garganta muda,

um grito silencioso vou compondo.








45

Dizer o meu sujeito só na página:

de ser assim meu peito se esquecera.

Decerto seja o branco impura esfera,

deserto onde se suja dentro e fora.

Impune, a alma grafa sua afasia,

cravando a dor na pele, e não perdoa

a fome intacta, sua acidez vazia

diante da palavra sem demora:

a solidão de um verso na sacada.

Disponho no papel a espessura

de cada falta e cada voz calada.

Diante do mar, opero na secura.

Toda a sede perversa, e não há nada.

Alma que geme diante da água impura.







46

Tanto ruído nesse bar, e eu não escuto

uma palavra disposta ao desconcerto.

Tanta mudez de almas, tanto luto

em meio a um nada que não tem conserto.

Noite sem fim, à espera de uma espera

que traga algum instante ensandecido.

Noite vazia, aérea, uma cratera

em que me oculto como um perseguido.

Então, nesse tumulto, abro o caderno,

e o branco do papel é silencioso

como um barco vazio no mar eterno.

Escuto esse silêncio como um tema

que alguém me lança, âncora noturna,

a procurar no náufrago um poema.








47

O que escrever quando a chuva me encontra

na curva que se estende pela mata,

quando entrevejo o mergulho da lontra

ou o fogaréu que o pôr-do-sol desata?

Como gravar na página essa espera

crescendo com o azul entardecer,

a fome que na noite imensa opera

essa paisagem que persiste em ser?

Ouço o silêncio. Escuto a correnteza

entre as árvores e as pedras que fascinam

como o olhar do felino sobre a presa.

Nada escrevi. Não pensei nada. Tudo

em meio à neve e ao campo me estremece.

Diante da montanha fiquei mudo.








48

Escrever como indo rumo à neve,

às voltas com um veículo precário,

disposto à aventura - quem se atreve

a abandonar seu ritmo ordinário?

Escrever, ver o lobo em sua pegada,

a fome que traceja o gelo eterno;

um jogo sem ninguém, sem regras, nada,

apenas o vazio rondando o inverno.

Escrever e pensar na caça rubra,

tingida pelos lábios saciados

com a presa antes que um outro alguém descubra.

Escrever com os dentes afiados

à espera de uma imagem na penumbra -

e a última mordida lança os dados.








49

Há uma passante, vejo-a tão veloz

na noite lenta, areia e oceano,

e como nave avança, sem um plano

nem bússola. O tempo é um algoz.

Aquele verso que eu lhe entregaria

ficou intacto, seco como a pluma

do albatroz ao sol. E essa calmaria

em mar aberto, âncora nenhuma.

Há uma passante, tenho-a na memória.

Fugaz desejo de tê-la abordado

como a manhã sem sonho e sem história.

Mas me calei. O vento sopra agora

nessas folhas de outono, ressequidas.

E grafo essa palavra indo embora.







50

Um bando de flamingos sobrevoa

o pântano de ásperos arbustos.

Com sua plumagem rosa, deram sustos

em meu olhar descolorido e à-toa.

Estão migrando. Vêm de algum lugar

que ignoro, do amplo frio do sul,

onde há uma constelação de azul,

e os desertos são como um seco mar.

Seus corpos, como flâmulas, aquecem

o caminho, que tece suas cores.

Flamingos nômades jamais esquecem.

E eu, vendo esses pássaros agora,

esqueço num segundo as minhas dores.

Mas, noutro instante, a imagem vai embora.







51

Partir é minha sina - para onde?

Tudo o que vejo falta, tudo amplia

a solidão que expande essa agonia,

e quanto mais me ensina, mais me esconde.

À noite, esta cidade é um labirinto,

e eu, um falso cego, vejo às claras

esse vazio na terra, essas mil taras

sem desejo, só meu olhar faminto.

Um bar me pára. Bebo uma matéria

sem dor, sem a voragem que se instala

no interior dessa geral miséria.

Encaro a página: ela me fala,

de dentro de sua brancura séria,

o que é partir - e assim ela se cala.








52

Página perversa a que me acompanha.

Sempre vazia, quase um abandono,

e quando aberta, com fome tamanha,

parece um grito a perturbar meu sono.

Cada palavra muda que articula

se desfaz na brancura de sua pele.

E um silêncio de sutil textura

dilacera esse gesto que me impele

ao seu convívio. Vivo a insensatez

do vício, entre a escrita e o dia-a-dia,

buscando algum tipo de embriaguez.

E quando tento, em verso, dar meus ais,

esse papel, qual corvo branco, diz

de minhas tentativas: "Sempre mais".








53

Eis o caderno aberto. A face escura

de um tempo acelerado me prepara

o gesto lento. Caio na brancura

de toda esfera perigosa e clara:

a página fugaz. Esse exercício

é seu silêncio. Tudo ali emudece

no instante embevecido pelo vício,

e nada na palavra se esclarece.

O ciclo solitário se completa.

O grito ecoa como um corvo cego

voando sobre a mesa do poeta.

E tudo volta à paz, menos a vida,

grafada num deserto de papel

como a ave lambendo a asa ferida.







54

Um pálido esplendor, superficial,

é o que se espraia desta era morta.

As ruas e seu ruído infernal

me paralisam, e já nada importa.

As falas podres caem, já maduras,

e os olhares, pesados, dão vertigem,

a crença ergue o horror até as alturas -

me perco em meio a imagens de fuligem.

Tudo rui. Nenhuma arte se impõe

a essa massa de discursos vis,

nem nada negativo se compõe.

Abro o caderno. Fecho os olhos. Vejo,

em meio à opacidade sem fulgor,

o risco da palavra num lampejo.








55

Não persigo a grafia da beleza,

nem espero a degustação comum

daquilo que eu escrevo sem destreza.

Meu exercício é sem poder nenhum.

Avesso à falsa e vã profundidade

e aos truques acadêmicos, banais,

rejeito as já antigas novidades.

Procuro as minhas sombras - nada mais.

Minha escritura é este instante-açoite

golpeando essa vazia realidade

com palavras que têm gosto de noite.

Silêncio. A noite cala. Espero a hora

em que o tempo diurno dê uma trégua -

e a escritura noturna não demora.








56

O céu cinzento, a praia, doze graus.

Uma neblina fria, inalterável.

Nada se mexe, só o siri mutável

e a imagem de incomensuráveis naus

em minha memória. Vaga densidade

a dessa areia e desse aroma frio,

rochas distantes, ilhas sem perfil

a flutuar na invisibilidade.

O vento invade, vergastando a face,

colhendo da umidade o seu silêncio:

a violência muda de um enlace.

Nenhum passante, apenas a promessa

sem fim do mar e seu bailado pênsil,

antes que a dor do corpo se despeça.








57

Quero escrever, mas vejo um passarinho

e me distraio. Cisca, sem projeto,

seu alimento diário e volta ao ninho -

vida que passa assim, sem objeto.

E quanto mais o vejo, mais delícia

eu sinto nessa fome apaziguada.

Viver dia após dia com a perícia

de desdenhar o tempo e sua cilada.

Volto ao caderno, faço a tentativa

de urdir, como a ave faz com suas asas,

um texto cuja apreensão é esquiva.

Termino. Driblo o tempo em meu ofício,

e os pássaros retornam a suas casas.

Mas tremo: amanhã há outro início.







58

Lá fora, o frio prepara a sua geada,

a noite clara, os pássaros dormindo.
A lenha rubra em fogo se esvaindo,

um poema tecendo a sua meada.

Algo se foi. A casa está vazia.

As tábuas gastas de tantos andares

têm a memória plena de cantares

a desfiar o tempo que se adia.

Tudo é silêncio. Salvo a melodia

do fogo afugentando com urgência

a nota surda da melancolia.

Tudo é fugaz. Apenas permanece

a brasa em sua adiada despedida -

e o poema, agora cálido, se tece.







59

Um forno enegrecido em seus tijolos.

A casa faz cem anos neste inverno.

O fogo não é de nenhum averno,

só assa um pão. Somos assim dois pólos

cozendo o tempo em lenta gramatura.

O forno ardendo em sua textura clara,

eu tecendo algum verso na brancura.

Agora chove. Alguma coisa rara

vai se formando enquanto o ar se aquece.

Cresce o silêncio. Um verso se insinua.

Lá fora, a fruta que a ave não esquece.

Chopin parou. Somente a lenha estala.

O pão se fez. Minha solidão está nua -

mas o poema a aquece, e ela se cala.








60

A casa em que nasci, não lembro mais.

Meu quarto, o pátio com sua pitangueira,

A rua e os cinamomos são sinais

de algo perdido. Meu tempo se esgueira

por entre as pedras do caminho e vai,

acompanhando o vento e a vaidade,

e nada permanece. Tudo cai:

minha memória vã, esta cidade,

a espera de um diálogo sutil

e substancioso. Sem uma lembrança,

o meu passado é vítima do ardil

que a realidade arma sem censura.

Mas tenho uma palavra e sua dança

que fazem minha memória ainda mais pura.







61

Esse bolero de outro tempo, eu sei,

não é pra mim, me lembra o que não tive,

aquela praia que não freqüentei,

uma mulher partindo... Onde eu estive

todo esse tempo afoito e sem futuro?

Por onde andei, distante, distraído,

sem ver estrelas, sem um amor puro

que me alçasse desse agora puído?

A Lua, algum hotel, um daiquiri,

alguém com quem dançar, o mar aberto...

São coisas que sonhei. São o que quero,

etéreas, fantasmais, assim fugazes,

coisas que imaginei um dia, há muito,

que tornam a viver nesse bolero.








62

Acendo a cigarrilha e me preparo,

diante desse mar azul e frio,

para enfrentar o tempo sem amparo,

só um caminho, instável como um rio.

Abro o caderno, a página vazada

de esperas e de ausências, desmesura

sem essa estrela que, na noite, alada,

disponha sua marca negra e impura.

Grafo sinais, me esqueço nessa hora

que se estende, inexoravelmente,

sobre mim, a jogar sílabas fora.

Olho o horizonte, um albatroz vislumbra

o peixe que saciará sua fome -

e eu devoro palavras na penumbra.