Viagens

Renato Tapado


De ningún viaje se vuelve.

Roberto Juarroz, Poesía Vertical.





APARTAMENTO

Escutei o chiado como uma espécie de silêncio áspero e arredio, desde o princípio.

O apartamento trazia sua antigüidade nas frestas, no assoalho, no espaço entre a tinta já desgastada e a parede. Cru, quase sem móveis, os únicos ruídos que se escutavam eram o da movimentação equívoca e soturna da rua e aquele ínfimo chuvisco. Sem cortinas, desamparado, o espaço se tornava quase opressivo de tão amplo. Resolvi alugá-lo mesmo assim.

À noite é que, com a diminuição do tráfego lá fora, eu percebia mais intensamente o chiado.

Nos primeiros dias, imaginei uma televisão ligada ao lado, esquecida por algum vizinho apressado e tonto. Com o tempo percebi que o som se pressentia na sala, como um tapete inerte, mas com suas cerdas sempre a postos, emitindo impulsos. Era como uma televisão acesa sem programa, sem imagens, apenas sua ausência infinita, mas presente, um som compondo o mobiliário.

Então, depois de alguns meses, consegui um gato para em fazer companhia e afastar de minha memória o ruído quase onipresente. Mas o felino circulava na sala, arrepiava o pêlo, lançava miados diferentes dos que eu reconhecia - para pedir comida ou carinho -, suspeitando de algum ser estranho em seu pequeno território. Resolvi doá-lo.

Foi nesse dia, quando voltei para casa já sem o gato, que pensei que ambos podiam ser semelhantes, rivais a seu modo, e talvez eu devesse me dedicar, de alguma forma, a esse ruído para que ele sossegasse, como um gato que se aquieta, sonolento, em nosso colo.

Assim me pus na sala, diante da parede amarelada e velha, onde, possivelmente, houvera um dia uma tevê. Apaguei as luzes depois do jantar e me entreguei a esse torpor que o tédio e as horas lentas da noite alimentavam.

Com o passar das semanas fui dormindo ali mesmo, sentado, sem me dar conta da incômoda poltrona, do ar frio, do adiantado da hora.

E o chiado silenciou.









MÃOS

Que as coisas não estão no lugar é ponto pacífico: não reclamo dessa utopicidade, mas da crença em situá-las em algum lugar. Por exemplo: minha mão não deveria estar sobre este papel, mas sobre aquela coxa, ou sob um tecido suave.

Não me interpretem mal: também poderia estar sobre a testa, ou envolvendo uns braços, mas porque não estar lá? Assim, as coisas mudam de lugar a todo instante - "a única coisa imutável é a mudança", diziam os chineses - e esse deslocamento me provoca a um nível que chega à irritação.

Mas logo volto ao normal pensando naquele seio debaixo da blusa na mesa ao lado que desconheço, bem como nessa mão que agora, quem sabe, vai virar a página, arremessar o livro longe, abrir uma garrafa, masturbar-se diante do vídeo, e que não reconheço.









OLHAR

Não há nada que se possa fazer. O poste está ali, a esquina pesada, imóvel, e a luz que se acenderá ao final da tarde antes que alguém ou algum carro passe, e o círculo de luz formado aos poucos no chão permanecerá vazio.

Mas não a lâmpada no alto, no terceiro andar. Não essas mãos que abrem a cortina e espiam, diante da noite, uma estrela perdida. E olham para trás, para um corpo que se estende no chão e que há pouco tempo se exauriu em gozo por algo que nem bem conhece, mas que vale - pode ser - um último olhar, talvez um presságio, uns passos em direção à rua deserta.









JARDINS

Quando essa porta se abrir, quando um mínimo facho de luz se estender mais do que a ínfima linha aparente por debaixo da porta fechada - e um ruído indicar que, então, algo aconteceu, e meus pés não têm mais porque permanecer onde estão, e as coisas em seu lugar sobre o balcão, a pia, a mesa ou as estantes insistirem em ficar até a exaustão -, então, me resta o sonho de imaginar um jardim e uma palavra, ou nem isso, mas um suspiro surdo de uma presença qualquer, uma temperatura, uma sombra esguia, antes que amanheça e a porta se abra de vez para o que nem vale a pena narrar.









ESPELHOS

Então, você me olhou como um cristal e, embora noite, percebeu a minha fuga lenta e intermitente, os meus olhos buscando regiões sombrias, onde houvesse pouca luz e ninguém, apenas uma ausência que nem sequer prometia, como se eu temesse que seus olhos fossem um espelho ou uma interrogação vertiginosa, tácita, em direção ao que nem sei se posso adivinhar, aquilo que desliza como lágrimas ou como vinho nesse cálice que minha mão aquece e reflete, quando em movimento, uma ação quase imperceptível, mas que, se não me engano, pode ter a força de quebrar um espelho.









PEDRAS

Tento não ser como a pedra: tento abraçar o vento e incorporá-lo, massa, nessa teia que é minha e que persiste todo dia. Mas tudo pára e se congela, resiste, e tenho, então, que me apaixonar, olhar o cardume saltando pelo perigo do boto próximo, olhar sem medo para a lua, tocar a cerâmica. Nessa trajetória me perco, e é aí, precisamente nesse ponto em que tudo é exposto, que encontro os passos - para onde? -, em que tento ser o peixe sem medo do boto, o galho sem medo do vento, o barro sem medo do fogo, a pedra não mais eternamente pedra.









HÁBITOS

Vejo pelo espelho: de um lado, a madeira da janela, a ferrugem da dobradiça, o tempo nublado, a praça vazia que não conheço, o restaurante da esquina fechado, um velho de chapéu no banco de cimento, imóvel. De outro lado, a cama, a mesinha com uma cadeira, o armário aberto sem roupas, a cabeceira com o abajur vermelho, o cabide de parede, o caderno fechado e a caneta.

E vejo, então, entre esses lados, o que não posso ver - de pé, parado diante deles, em meio ao frio e a um ruído longínquo de água e de algum empregado do hotel -, o que não sei se há, se espreita por essa fenda das horas, se chegará, enfim, a instalar-se ou romper um ritmo, um hábito, antes que algo comece ou se desfaça, e só reste a possibilidade de abrir o caderno outra vez.









SERRA

À beira do rio, durante todo o caminho, há algo incompreensível. Casas isoladas quilômetros uma da outra, uma presença esparsa de uma mulher ou um homem trabalhando, a imagem de pequenos animais ou fornos, utensílios de madeira pendurados, o ruído das águas correndo por entre as pedras, um silêncio maciço vindo dos bosques, e alguns pássaros indicando uma sinuosidade no tempo, como se tudo isso fosse um cenário prestes a explodir, ou apenas uma vida parada, imune, mas aberta a todo o imprevisível, a um amanhã secreto, que pode incitar a algum desejo ou a algum perigo.









TRENS

O trem chegava pelos meus ouvidos, mas eu mal o via. Ao meu lado, a mala marrom desbotada. Atrás, um botequim semi-aberto com um copo vazio e uma garrafa pela metade sobre a mesinha. De outro lado uma galinha movendo o pescoço e, em frente, os trilhos que já deveriam estar vibrando naquele momento em que olhei para as montanhas próximas, para as plantações de fumo e milho mais além, para o silêncio que recém agora era cortado pelo trem que avançava, e o relógio antigo da parede do bar marcava dezesseis horas e trinta e quatro minutos, quase trinta e cinco.

Embora eu tivesse o dinheiro necessário no bolso, não tinha nenhum projeto a desenvolver a partir da passagem do trem, nem sabia em qual lugarejo poderia parar, já que tudo era viável.

Então, enxerguei meus pés empoeirados, já a frente do trem e o vulto do maquinista, o barulho aumentando, a massa de ferro deslizando sobre os trilhos agora com certeza aquecidos, quando alguém lá de trás da cortina de bambu do botequim gritou: "O trem!".

E as montanhas me pareceram mais firmes, quase azuis, e o milho e o fumo ardiam no verdor da tarde, algum boi pastando me lembrava algo distante, e ainda havia metade da garrafa que, seguramente, duraria até as oito ou nove horas da noite, quando, então, não haveria mais trens, como esse que, sacudindo e refletindo o sol, fazia uma nova curva a cem metros do bar para desaparecer.









VELAS

A vela acesa e as figuras trêmulas que cobriam os móveis ou manchas na parede, sem que eu soubesse o que significavam, diante do pão que sobrava na tábua e o vinho pela metade.

O limite que me parecia inexorável era o apagar da vela sem que nenhuma rajada de vento penetrasse. Apenas a espera até que a chama morresse por si. Então, haveria um outro tempo, o da escuridão, e eu não sei se me moveria com maior liberdade ou não do que agora que tenho a faca na mão, e ao meu alcance estão o pão, a vela e minha mão que escreve.









CAMINHOS

Necessariamente há quatro caminhos.

O primeiro, que se vai por detrás da pequena casa de tijolos com grossos troncos de madeira e telhado inclinado demais; o segundo, uma alameda ao lado de uma hospedaria que nunca recebe ninguém, perdida que está nesse lugar sem visitantes; o terceiro - na verdade uma estrada, mas de terra batida, muitos animais atravessando e quase nenhum veículo; e, finalmente, o quarto, que ninguém sabe onde é, mas que, com certeza, é o único que pode tirar todos daqui (até o padre que me confessou ser o único a querer abandonar o lugar) sem que haja nenhum trauma, nenhuma marca, a não ser, talvez, essa que vislumbro agora pelo vidro, e que se aproxima com tal rapidez que não vejo a hora de, eu também, descer as escadas levando meus papéis comigo.









ESTRADAS

Eu não podia enxergar muito bem por causa da neblina, mas pressenti o automóvel chegando do centro daquela noite escura e houve um momento em que ele parou e desceu alguém, mas o carro permaneceu ligado.

Irritado, eu avancei um pouco sem poder distinguir nada na minha frente a não ser o que me pareceu ser o movimento de uma lanterna.

"Aí não há nada! Não há nada!" - gritei, com tal irritação que eu mesmo fiquei surpreso e me detive.

A lanterna se apagou e, antes que o carro partisse, pude ver sob a névoa que eu deixara, de algum modo, as luzes da casa apagadas, o que me fez voltar depressa para aproveitar ainda a manobra do veículo que já partia, me deixando ali naquele vasto campo, me abandonando com tal ousadia que eu seria capaz de persegui-lo até o fim, se não fosse por alguém que me esperava na casa há tempos, há tanto tempo que até poderia - agora, pensando bem -, até poderia me causar medo.









HOTÉIS

"É aqui?" - perguntei, um pouco surpreso.

O homem não respondeu. Apenas esticou a mão rumo à enorme porta de madeira escura com aldrava de ferro, aberta, e uma escada entre dois corredores.

Não sei por que não estava carregando nenhum pertence, nenhuma valise, e pensei no verdadeiro sentido daquela estada ao subir aqueles lances pesados, sem que houvesse alguém me esperando, ou uma placa indicando "Hotel", algo que se parecesse a uma cidade e uma viagem como qualquer outra.

Abri a porta do que deveria ser um quarto. Então, a luz do sol que entrava pela janela me ofuscou a visão, pois tudo naquele interior era branco, e não havia armário, nem cabeceira, nem uma mesa para escrever, apenas a cama e uma pia.

E ainda pude olhar lá embaixo, quando o homem se afastava e o cocheiro chicoteava o cavalo com fúria, o que me repugnou a ponto de virar-me e ver minha imagem no espelho.

Nesse instante, com uma rapidez vertiginosa, comecei a compreender.









TELAS

À memória de Iberê Camargo

O tempo me agarra é diante dessa brancura: essas pegadas que retrocedem, rastros vazios buscando uma presença azulada ou lilás em minha memória, esse vinho que não termina e uma febre se instalando - tela -, fundo têxtil que não exala nada, a não ser uma premência cega, uma mancha que não chega a encontrar espaço.

É quando meu corpo se abala, como esses pincéis. E dentro da noite clara, na insônia aberta e riscada de tantos gestos, o que se desenha é uma angústia veloz, que não pára quando já amanhece, a textura do café me acende e meus braços ainda tremem.

Temo esse dia que recomeça, pois tudo pode desabar de novo. E amanhã, diante dos escombros, terei agarrado os pincéis com tal força que não me restará outra saída que partir, mais uma vez, para o centro dessa teia escura.









CRIMES

Levantei pela segunda vez deixando a caneca de metal dourada pelo reflexo do fogo, fumegando café, sobre a tábua grossa da mesa, a lenha acesa me aquecendo e as janelas fechadas.

O ruído de respiração me atraía de novo para o outro lado da parede de madeira, lá onde não havia nada, apenas palha e ferramentas. Fui até o armário do canto, peguei a garrafa de rum e me servi um pouco na própria caneca de café. Novamente ouvi.

Vesti o casaco de lã e abri a porta. Ali, sobre um colchão de penas um pouco torto em meio à palha, uma mulher jovem - bem mais do que eu - parecia estar sonhando, mexendo-se e respirando forte, talvez até dizendo alguma coisa.

Me aproximei e levantei a manta aos poucos, e o que eu fui vendo, à medida que ela parecia despertar, o que me maltratava era poder ver aquele corpo - sem nenhuma falha, sem nenhuma mancha, branco e arrepiado de frio, convulsionado - erguer-se até mim aos gritos:

"Jamais faça aquilo de novo!" - disse, apontando para uma espingarda encostada nos arreios. "Jamais repita isso!" - berrou, e eu sem compreender até que, num acesso de fúria, ela puxou com força a cintura das minhas calças, arrancando os botões e, com a cabeça à altura de minhas coxas, começou aquilo que seria o verdadeiro crime.









CRIADOS

Quando ela passou por mim senti a ponta de seus dedos roçando minhas calças, um pouco escondidos pela manga fofa da blusa que usava, de acordo com a roupa elegante e cara que tinha vestido, provavelmente para tomar um daqueles chás numa mansão qualquer dos arredores da cidade. E sujo por todas as partes, com as botas cheias de lama e os cabelos desarrumados, descansei o machado sobre um tronco decepado e olhei para ela para dizer: "Boa tarde, senhora".

Foi quando o marido abriu a porta do carro - que nem sei de que marca era - para esperá-la, olhando para as nuvens, e ela se deteve um instante na minha frente para me dar alguma ordem, que se relacionava - para minha surpresa e medo - com a afiação das ferramentas.

Isso um pouco antes de o marido finalmente entrar no carro e ela, de olhos enormes, pôr a língua para fora e esfregá-la pelos lábios, enquanto eu voltava ao trabalho, com o sol fazendo brilhar os brincos dela e a lâmina do machado no ar.









REFEIÇÕES

Sempre desci as mesmas escadas e saí pela mesma porta rumo à ruazinha intacta há muitos anos, na qual alguns poucos vendedores ambulantes sofriam o frio daquela época. Na esquina, havia um bar onde eu tomava um trago antes de voltar para casa e instalar-me em meu quarto à luz da lamparina, na janela que dava para o armazém da outra esquina, quando eu me punha a imaginar os próximos dias e suas conseqüências.

Mas naquela manhã, quando tomei a rua à esquerda - o bar ainda estava fechado -, me deparei com um espaço vazio como se fosse feriado e todos tivessem viajado, embora o comércio estivesse aberto e o sol brilhasse, o que me fez dar meia-volta e buscar a outra rua que dava para um bairro escuro e úmido, onde outro bar já estaria aberto àquela hora com sua cerveja fria e suas lingüiças fritas já a partir das dez horas.

Então, ao chegar lá, alguém me olhou por detrás da porta envidraçada e gritou: "Fechado! Fechado!", batendo no vidro para que eu me afastasse como se houvesse trazido uma peste. Atônito, voltei pelo mesmo caminho para o meu velho edifício - já disposto a "matar" aquele maldito trabalho, abrir a garrafa de uísque e retomar os papéis de ontem à noite - quando, ao dobrar a esquina, estaquei antes de atravessar a rua - aliás, vazia.

O edifício, de uma cor branca e tenebrosa que reluzia ao sol com aberturas novas e porta moderna de ferro, acabava de abrir as portas para receber os novos clientes nos seus três andares, o primeiro deles destinado a refeições, o que me fez, sem muita convicção, atravessar finalmente o asfalto e entrar para pedir, pelo amor de Deus, uma cerveja fria e umas lingüiças fritas.









BARES

O que me lembro é que chovia como eu nunca tinha visto em meus vinte anos naquele lugar, quando procurei - afinal, era uma noite fria - uma cantina aberta para poder beber uma caneca de vinho forte e comer uma torta de bacon.

Com os pés encharcados, o sobretudo úmido por dentro e um chapéu já velho demais para proteger-me de maneira eficaz, bati numa porta que me pareceu ser de um desses lugares de beira de estrada que permanecem atendendo até tarde. O homem abriu e entrei.

Havia sem dúvida algumas mesas com canecas vazias e duas ou três pessoas encostadas num canto ou no balcão, mas não senti cheiro algum de comida.

"O senhor chegou tarde demais. Muito tarde", disse o homem, não sei se querendo dizer que a cantina já fechara, ou se eu havia perdido algo irremediavelmente.

"Tem algo para comer com o vinho?", perguntei, e os homens se remexeram inquietos nos cantos. Eu olhei para eles, e o homem que eu tinha diante de mim arregalou os olhos. "Há sempre alguma coisa para o senhor", falou, num sorriso irônico. "Venha", me puxou pela manga do casaco até uma porta semi-aberta dos fundos, que dava para uma peça totalmente escura.

Quando quis perguntar qualquer coisa e me virei para trás, os outros homens já me empurravam violentamente para o outro lado, onde conheci algo verdadeiramente horrível, inenarrável, mas que - agora me é dado confessá-lo, depois de anos de andanças onde nunca me identifiquei, nem fiquei jamais uma semana numa mesma cidadezinha - superam a expectativa que eu tivera - humana, enfim - do vinho e da torta de bacon.









CHAMADAS

Corri escadas abaixo para não perder de maneira nenhuma - o que seria imperdoável, naquelas circunstâncias extremas - a voz que, do outro lado da chamada telefônica, me colocaria de frente para aquilo que eu tanto esperava, inquieto, tantos dias e horas, nesse mistério que me prende a essa casa, a esse terreno.

Quase caí temendo que aquele som fosse o último, imaginando desaparecer a última possibilidade, uma chave que abriria, talvez, um labirinto - ou, pelo menos, a sua imagem.

Agarrei o telefone com o barulho estridente em meus ouvidos e atendi. "Alô! Alô!", gritei.

O que eu ouvi, aterrado, foi uma voz cujo timbre e intensidade ninguém reconheceria, nem ousaria contestar, mas que me revelava, mesmo que sem palavras, mesmo na iminência gritante de um desastre gigantesco avançando como uma enorme sombra, minha condição solidária, gregária, prestes a romper meu isolamento naquela casa que, dentro de pouco, se arrastaria com todos os seus segredos com a chegada - nessa cidade já deserta pelos avisos intermitentes há meses - do dia seguinte.









PRAIAS

A praia estava vazia, numa neblina imensa e uma temperatura de dez ou onze graus, quando eu ouvi os gritos de pássaros deslocando-se em direção ao norte.

Não podia vê-los pelo acinzentado de tudo - areias, águas, nuvens. Depois, caminhei um pouco no mesmo sentido dos pássaros, em meio à bruma e alguns siris fugindo, conchas quebradas e restos de barcos. Alguém gritou. Parecia vir do mar, embora ninguém pudesse estar na água com aquele frio - pensei.

Avancei um pouco, chegando próximo das ondas que morriam, cuidando para não molhar minhas botas. Uma figura geométrica balançava no oceano, talvez fosse um barco. Novamente os gritos - um afogamento, um pescador que caíra, ou um bicho com uma voz parecida com a nossa.

Tirei rapidamente as botas, arregacei as calças para entrar na água - já sentia o frio como agulhas nas minhas pernas, começando a deixar pesadas as roupas, meu corpo tremendo incontrolavelmente - quando, entre o barulho histérico de um bando de pássaros rondando como se buscasse alimento e o desespero de alguém lá fora, pude escutar: "Me deixa em paz! Me deixa em paz!", então, voltei correndo para a areia, esfregando com as mãos as canelas para não ter uma cãibra, me movimentando todo para me reaquecer, enquanto olhava para o mar e via uma figura apagada deslizando para lugar nenhum.









PORTAS

O automóvel estava parado ali. Era como uma escultura à espera de alguém, irremediavelmente intacta. Eu contemplava-o de cima, como nuvem, sem decifrar seu conteúdo humano.

O escuro do quarto incomodava, e eu queria escutar alguma voz, sentir um ar qualquer se deslocando, quando a porta do carro se abriu.

A porta do quarto se abriu. Alguém de chapéu olhou para cima, mas não para mim, que já sentia o abraço.









VAGÕES

No trem, depois de horas de sono, a cabina ficou vazia. O vidro da janela gelado, o silêncio composto de noite e trilhos. Saí ao corredor. Olhei o número na minha porta: 23.

Percorri a escuridão intermitente dos vagões, quase todos vazios, ou não, as cabinas fechadas, então, eu não podia ter a resposta. Já não sabia se avançava ou se voltava, mas me detive frente ao número 23. Abri a porta. Alguém abriu os olhos, dizendo: "Por que a demora?".









BEIRA-MAR

A murada da avenida à beira-mar era extensa como a linha do horizonte, naquele mar quase infinito, sem ondas, de um azul sem matizes. Eram duas linhas paralelas e não havia árvores nem postes. O céu mantinha-se também azul. A murada era de pedra gasta. Embaixo, entre ela e o mar, as pedras recortadas e dentadas, salpicadas de espuma.

Era difícil abandonar aquele nicho tão imenso. A não ser que fosse necessário, como o que empurra o mergulhão, verticalmente, para o fundo, em busca de algo que o mantenha voando.









AVES

O corpo pesado - uma massa de curvas e partes duras, densas, aquecido -, dançando sobre mim com maleável fúria num delírio concentrado, suspirava ou gemia - eu não posso me lembrar, já me escapa seu olhar, sua umidade-ímã, os pêlos pretos.

E não acabava, o tempo não passava, até que alguém gritou para um recuo, trégua, um movimento suave sem parada.

Eu sufocava não do peso ou da respiração, mas de uma sensação intensa, como se eu não pudesse sair - e não quisesse - de um lugar tão forte e de uma violência terna como aqueles braços, aquele peito. A onda começava lá pelos seus pés, e eu recebia inteira pelo corpo, até o pescoço, os lábios. Não tínhamos parado. Tudo era sem pressa, como o rio.

Então, ouvi o ruído ondulado da chuva e prossegui, enquanto a água caía até um ponto em que já não sentia a chuva, nem o corpo.

Não sei o que eu mordia. Já não recordo quem estava ali, à beira de um abismo esperado, sobre mim.

Pensei na morte: nós buscávamos esse tempo, ali, naquele movimento que não terminava nunca, como o vento ou a chuva.

Num instante que não posso fixar, onde o cenário fugaz dava voltas e tudo se molhava, lembro - do fundo da memória, essa mancha borrada - um grito, algo lá fora num percurso arrebatado que passava, uma ave que fugia do trovão e do dia cinzento.

Então, voei.









QUARTOS

Foi por acaso que achei uma chave que servia para aquele quarto proibido, sempre interditado - com a desculpa de que lá dentro era a desordem.

Ela tinha partido naquela manhã e aproveitei para entrar no quarto praticamente vazio, com um enorme espelho de moldura dourada.

Por sorte, cheguei a ver a fuga do rato passando desesperado na frente da moldura - mas não dentro, não do outro lado do espelho.









RELÓGIOS

Quando todos os relógios silenciaram, eles acenderam o abajur e abriram as gavetas - com as armas já carregadas.









BRINCADEIRAS

Os dois irmãos brigavam desde sempre. Alex era a cara do pai, Pedro era passivo como a mãe.

Uma noite, Pedro não suportou mais quando encontrou todas as suas cartas e os seus diários queimados. Alucinado, foi subir as escadas atrás do irmão maior. Alex estava lá em cima, no último degrau. "Foi você, não foi? Foi você!", gritou Pedro avermelhado.

"Sempre fui eu, Pedro" sua voz era calma, rouca. "Sempre fui eu", disse Alex que, visto lá de baixo, já parecia um idoso.









CASAS

Dentro da casa abandonada não fazia tanto frio. Lá fora, o imenso deserto: nenhuma árvore, nenhuma casa num raio de 500 km. O vento e a poeira agrediam. O caminho de terra ficava longe. Aqui era o fim do mundo.

Exausto, deitei num estrado de madeira no chão, fechei os olhos e o tempo parou. Escutava o vento e mais nada, apenas esse silêncio infinito de um lugar fora de tudo.

Me imaginava diferente, com roupas decentes e barba feita, mais gordo, me apresentando para os outros como alguém razoável, viável. Eu via meu corpo circulando pelas pessoas e me olhava avançando para algo incompreensível, terrível, para o qual talvez eu não fosse capaz, e senti um pavor imenso: eu me dirigia para um abismo, tudo estava prestes a acontecer.

Eu tremia, quando a porta se abriu.









PARTIDAS

Naquele exato momento ele abriu os braços. Nunca tinha se lançado ao que realmente buscava, nunca tinha abraçado o próprio desejo. Aquele instante era o ponto final de tantos dias de tédio, a partida rumo a algo novo. De lá de cima ele via o mar esverdeado que brilhava.

Então, sentiu o abraço do vento, do céu, da velocidade.









SEXOS

Ele agarrou a menina por trás, pôs a mordaça, amarrou seus pulsos juntos e os tornozelos separados. Com pressa deixou-a nua, separou suas nádegas branquinhas e lubrificou lá dentro com óleo.

Começou enfiando o pênis devagar, mas não pode agüentar mais a espera e sacudiu o corpo com violência - ela balançava e a cama onde se apoiava rangia -, embriagado com o cheiro adolescente da pele e dos cabelos dela.

Soltou-a. As pernas da garota ainda tremiam, o rosto estava avermelhado, a boca ainda muda pela mordaça.

Por fim, ela estendeu-lhe a mão, ele agarrou os cem dólares e partiu.









VÔOS

Tanto ela insistiu que ele a acompanhou àquele bar desconhecido de portas de madeira envelhecidas e grossas cortinas. Não havia ninguém. Pediram um vinho tinto. A garçonete e a senhora atrás do balcão olhavam fixamente para ele. Já era noite quando terminaram a primeira garrafa. Mais uma mulher saiu de dentro da cozinha e pôs-se a olhá-lo.

"Você arriscaria entrar num avião sem saber o destino?", ela perguntou. "Você não sonha com uma surpresa assim?"

"Sim", ele disse. "Não vejo a hora."

Ela chamou a garçonete e, retribuindo o olhar às mulheres, ordenou: "Podem fechar o bar".









CAFÉS

Sonho com esse instante, o piso cinza, úmido, os vidros embaçados do café, a porta fria, o outro lado dessas lajes, as cadeiras art nouveau, o conhaque aquecido, a falta: quando estico as pernas depois de ter andado tanto, e a fala: aqueles que me olham e se dirigem a mim como quem tem fome, os copos, a lareira acesa, depois desse passo rumo à estrada, do outro lado da temperatura, do outro lado da fala: quando escuto, rebato, e rimos, nessa tarde que nada promete a não ser a própria tarde, tão longe, a um passo dessa porta fria, de uma mão quente, do vinho tinto, papéis e palavras, daquele lado, este, o passo que sonho em dar, agora, frente a este café deserto.









MEMÓRIAS

Acordei num quarto desconhecido. Vesti roupas estranhas e saí. Eu tinha que trabalhar, mas não lembrava onde.

Entrei numa loja qualquer e fiz de conta que eu era um empregado. Todos sorriam e, ao meio-dia, saí para almoçar em algum lugar - não lembrava mais quais eram os restaurantes baratos. Voltei ao trabalho - mas qual? Dessa vez escolhi um escritório num edifício novo.

Tentei fazer alguma coisa, os outros empregados me ajudavam, eu acho. Ao anoitecer tomei um café na esquina e quis ir embora. Do ônibus vi uma casa que me pareceu simpática e desci. Entrei sem bater. Uma mulher de uns 45 anos sorriu.

"Pode começar a contar", ela disse.

"Mas... Desculpe, é que eu não lembro de nada..."

Ela mostrou a pistola.

"Então, invente", ordenou.









DESENCONTROS

Entrei no café e me servi, pois estava vazio. Fui à estação de trens, mas não havia ninguém. Caminhei pelas ruas sozinho. Quando passava por um escritório, tocou um telefone. Entrei e atendi. "É você?". "Eu, quem?", perguntei. "Renato", disse a voz. "Fique aí. Vamos buscar você imediatamente. Não vai se arrepender."

Não havia mais gasolina, então, peguei uma bicicleta abandonada e parti.









DIÁLOGOS

"Tire a roupa."

Ela tirou.

"Abra as pernas."

Ela abriu.

"Agora minta."









PESCARIAS

Lançamos a baleeira ao mar às sete horas. Tinha uma neblina compacta, fazia muito frio, a umidade era imensa. O mar estava verde-escuro, quase cinza.

Lá fora jogamos a âncora, enquanto o barco girava muito lentamente. Muita corda desceu ao fundo e não acabava mais de descer. "A âncora!", alguém gritou, quando sofremos o impacto. Não havia mais corda, e a âncora ainda não atingira o fundo. O barco girava lentamente, tivemos medo - não se via nada em volta -, e decidimos voltar.

A bússola não funcionava, o vento começava a atacar, e ligamos o motor rapidamente. Em silêncio observávamos o mar escuro, o tempo completamente fechado. Aos poucos, vimos a areia de uma praia. Mas... Era a mesma! Voltamos ao mesmo lugar.

Não, o lugar não era o mesmo. Todos reconhecemos os barcos, as poucas casas, o bar. Mas era uma praia abandonada há séculos.









CRÍTICAS

Jogou a primeira pedra. Depois, se jogou.








SONHOS

O tédio com que despertou, voltou a dormir e percebeu que o sonho continuava o mesmo.









PAPÉIS

Nunca mais fui o mesmo depois que o vento começou a balançar as cortinas entrando no quarto e a porta se abriu com um empurrão invisível. A eletricidade do ar fustigava os metais, minhas mãos suavam sobre o papel em branco, o metal da caneta cintilava, a noite pesava em sua umidade, os ruídos de coisas batendo e a rajada de vento espalhando papéis - menos o meu, menos esta página que, de tanta fricção, começava a incendiar-se.








RETIROS

O homem insistia, desesperado, em entrar no cárcere e viver lá.

Foi arrastado para fora e expulso a pontapés.









SOLIDÃO

Era uma busca angustiada, livre de tudo, no mais absoluto deserto. Queria vencer a si mesmo, encontrar-se sozinho num limite. Viu a poça d'água - ou a imagem de uma poça - e correu para lá, para a liberdade de sua necessidade única, para o fim, quando tropeçou num corpo e caiu desmaiado.









PALAVRAS

Todos os pássaros se tornaram visíveis e me encaravam. Quando eu disse a palavra vôo, desapareceram.









LEITURAS

Pulei o muro e, com um arame, abri a porta. Lá dentro havia outra porta, mas de vidro, que rompi a pontapés. Então, me vi no espelho. Quebrei-o a marteladas, e atrás dele me deparei com uma espécie de câmara coberta com tecidos: rasguei-os com raiva e encontrei o volume.

Grosso, de capa dura, mas amassada, rota. Daí, me aproximei da janela, onde batia o sol fortíssimo, e abri o livro.

O branco de suas páginas feria meus olhos. Tive que fechá-lo e imaginar, e sonhar com a palavra que ele poderia conter.









CARONAS

Eu viajava a pé pela estrada deserta vendo as gramíneas e os pequenos arbustos ao longe. Resolvi pegar um caminho secundário de terra.

Caminhei uns vinte quilômetros, eu acho. Mas, quando percebi, estava de novo no asfalto. Então, decidi um desvio por uma trilha de terra entre os arbustos e a poeira.

Exausto, quase noite, constatei que tinha voltado mais uma vez à estrada. Acabei permanecendo nela, resignado. Foi quando aproveitei a carona de uma velha caminhonete e seguimos em frente.

Quando despertei de manhã estávamos num lugar irreconhecível, escuro, cheio de uma densa vegetação oblíqua e de ruídos, e o horizonte se mostrava cor-de-ferrugem.

"Mas... Aonde viemos parar?"

"Ora, mas se é a mesma estrada!"

Foi o que disse o velho da caminhonete, sem me olhar, sorrindo.









BARCOS

Era uma chuva tão intensa e infinita que tive que abandonar o barco no cais. Não havia como partir. Caminhei por ruas desertas e frias, ainda um pouco tonto do vinho, até chegar a meu endereço. Havia uma densa névoa. Empurrei a porta e vislumbrei a casa que me parecia estranha. Cruzei o corredor, entrei na cozinha, abri a porta que dava para o pátio - por quê? -, parei: o mar avançava sobre mim, cinzento, negro até, onde eu via, em meio à bruma, um barco familiar abandonado.









IMAGENS

Não havia como crer naquela imagem, deformada, por certo, por sucessivas manobras do hábito. Vulgar, grotesca, quase sinistra, como gestos vãos e devaneios ávidos, medíocre em sua neutralidade. Mas tinha a força de uma prova. Por fim, acreditei - tive que acreditar - e esqueci toda a razão, toda a vaidade. Então, resignado, cruzei o espelho.









SÓTÃOS

Tateei, como sempre. Deslizei a quase-passos, sombra dentro da sombra imaginária, na escuridão sem frestas. Ia soletrando a mínima voragem por aqueles volumes, aquelas texturas que não acabavam. Cada temperatura me atirava a algum prazer não previsto. Uma aspereza, uma lisura me fixavam no instante.

Parei. Rocei em algo grosso e quente, como a pele de um búfalo. Tive medo. Medo de que alguma coisa viva pudesse ter sobrevivido ali depois de tanta inércia, tanto nada.

Fechei e abri os olhos. Era tudo negro, e um silêncio de sótão de entreouvia. Senti um pudor como se eu não estivesse ali sozinha, mas também a febre, a pele trêmula, a urgência.

Agarrei aquela coisa, e ela pulsava, látego suave, entre meus dedos.

Descia saia, me esqueci de mim mesma e sentei no objeto cálido, latente, até a vertigem.

Na outra noite voltei, e nas outras, e nos outros meses, até de dia ousei meus passos nessa peça insólita e obscura, mas sem vê-lo, esse volume que deixei escapar de meu tato, para nunca mais.









TRILHAS

Para mim o caminho estaria pronto, traçado com a destreza de quem sabe, como eu, que ele levará até lá, além das montanhas, além da dúvida, como se esse imenso parque natural fosse um sonho. Eu ouvira falar do cervo e, com muita sorte, era possível avistar um puma. Tudo o que eu buscava se concentrava lá, entre lagos e florestas com poucas espécies de árvores, em meio ao frio e à umidade, onde cada passo é, de certo modo, irreversível.

Enquanto olhava a neve nas montanhas, e o vento me empurrava como se quisesse me apresar rumo à trilha para a qual eu me preparara durante um ano, vi um velho sentado ao lado de um refúgio - uma minúscula e precária cabana, velha como ele, pertencendo a outra época, a outro espaço.

Fui até ele e perguntei onde começava o caminho. Ali estava o lago gélido, as copas das árvores se inclinavam, as pequenas pedras rolavam com a fúria do tempo. O velho permaneceu inerte.

Cheguei mais perto - o ruído de tudo preenchia o ar - e falei mais alto para o velho. Seu olhar era de quem parecia já ter percorrido todos os lugares ou, talvez, de alguém que tudo perdera. Com certeza era surdo e mudo, ou já não lhe interessava falar.

"O senhor não conhece a trilha?", insisti. O velho olhou para a direita. "Não há caminho", ele disse, "mas, se quiser, é por aqui", apontou com o braço para frente, sem me olhar.

Irritado, comecei a caminhar. Tinha biscoitos e frutas suficientes na mochila, assim poderia andar bastante tempo com autonomia, além da água abundante e potável do caminho que - eu imaginava - margeava o lago.

A não ser que o caminho fosse muito ruim, como este, que mal podia ver, confundindo meu olhar entre pedras e musgos. A não ser que o tempo se tornasse espesso, como agora, com essa névoa repentina e seu silêncio escuro e úmido, que se ouvia como algo difuso, longínquo, feito de uma memória perdida.









VIAGENS

Tentei explicar a ele que sua idéia de viagem era outra ilusão como tantas de que ele se alimentava, como fazer uma horta e se nutrir exclusivamente dela para o resto da vida sem ter que conversar com nenhum comerciante, e assim, de alguma maneira, salvar-se. Ou apaixonar-se e continuar apaixonado por alguém que ele escolhesse de antemão, a distância, e com quem viveria até seus últimos dias, num espaço pleno. Ou escrever um livro que seria lido por muitos anos, tantos que todos os de sua cidade se lembrariam dele e de suas histórias e o cumprimentariam nas ruas.

Ele sorria de modo singular, não irônico, nem sarcástico, apenas tranqüilo.

Tentei, como sempre, abalar as crenças que ele tinha em si mesmo e, pior, nos outros, nos que o ajudariam a preparar a viagem e os que encontraria pelo caminho - todos, sem exceção, pouco confiáveis. Ele baixou a cabeça, não de vergonha, não de arrependimento, mas com essa quase imperceptível superioridade que os crentes pensam ter e vivem apoiados em suas idéias, e morrem impassíveis.

Já irritado, meu último passo foi preparar-lhe uma armadilha, uma espécie de chantagem que o demovesse da idéia inútil, quase utópica, de viajar, que me aborrecia como se essa viagem, mais do que a ele, me perturbasse de um modo inacreditável.

Ele fechou o sorriso - agora sim, parecia duro - e, impaciente, levantou-se.

"Vamos", ele disse, enérgico.

Então, partimos.